Opinião

Exigência de práticas ESG e negativa de contratar: cautelas para um futuro próximo

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19 de janeiro de 2022, 20h14

Com a COP26, a pauta ESG entrou com força no noticiário e no debate público nacional e mundial. Contudo, ela não é nova e vem sendo objeto de painéis e discussões mais setorizadas desde pelo menos o início de 2021. Após os primeiros sinais de controle ou, ao menos, de atenuação da pandemia da Covid-19, a atenção global se voltou sobre os valores ESG, inclusive com sua adoção por parte de empresas multinacionais.

Diversos pontos da ESG guardam intersecção com a legislação positiva, sobretudo no Brasil, onde as questões ambiental e social são fortemente reguladas. Não obstante, o grande apelo da pauta ESG é a adoção de medidas que vão além da mera exigência legal, que perpassam os valores, missão e objetivos das empresas e frutificam em normas internas, treinamentos e na chamada "cultura corporativa". Se a ESG pudesse ser reduzida a uma ideia, seria a de a empresa ou instituição estar proativamente à frente da legislação e antenada com as demandas da sociedade ou até, quiçá, transformada em agente de mudança social. 

Esse processo de modificação estrutural e organizacional tem seus próprios desafios, que não trataremos aqui. Nosso interesse é verificar os potenciais impactos de eventuais desdobramentos da exigência de uma orientação ESG por parte de parceiros comerciais da empresa.

Isso porque não basta à empresa a adoção de medidas para conscientização sobre as pautas ESG internamente, se esta fecha parcerias com terceiros que não estão alinhados com esses valores, ainda que suas práticas não estejam propriamente no terreno na ilegalidade. Além da coerência interna, a própria reputação da empresa, que está em jogo, leva a esse tipo de demanda. Faz parte desse esforço, portanto, a exigência, feita no processo de contratação e de prorrogação de contratos com parceiros externos, a exigência de alinhamento a diretrizes ESG para além do meramente exigido por lei.

Prática comum no mercado, há de se ter, porém, cautelas quanto a tais exigências, para que o zelo pelo avanço da pauta ESG e proteção da reputação empresarial não descambe num ilícito antitruste de negativa de contratar.

A negativa de contratação, como o nome diz, é a recusa a fornecer produtos ou serviços ou, ainda, de associar-se a terceiro em contrato tipicamente fabril ou empresarial. Ninguém ignora, é claro, que a liberdade de iniciativa, na sua vertente contratual, é regra em nosso ordenamento jurídico. Logo, a esmagadora maioria das negativas de contratar não são fatos juridicamente relevantes, por traduzirem um mero exercício de direito e liberdade contratual.

Algumas circunstâncias especiais, porém, podem atrair limitações a essa liberdade de recusar o contrato ou a prorrogação contratual, como as regras de defesa da concorrência contidas na Lei nº 12.529/2011, em especial no artigo 36, §3º, incisos XI e XII, do referido diploma legal.

A primeira circunstância especial a se verificar é que a recusa a contratar tenha ocorrido "dentro das condições de pagamento normais aos usos e costumes comerciais", conforme redação do próprio artigo mencionado. Isso porque, obviamente, se as condições de pagamento (incluindo preço) e costumes comerciais estiverem fora do normal ou usualmente aceito, a recusa à contratação estaria justificada. Em outras palavras, é preciso que a recusa não possa ser atribuída a elementos comuns dos negócios e que fazem parte da racionalidade econômica normal.

Sem dúvida alguma, a exigência de cumprimento de certos patamares ou metas relacionadas à pauta ESG foge às condições normais do comércio e dos negócios, pois não obedecem  ao menos não intrinsecamente  à racionalidade comercial usual. Por outro lado, o próprio artigo 36 já citado exige que a conduta investigada e eventualmente punida seja apropriada a alcançar certos objetivos ou efeitos anticoncorrenciais, ainda que de forma meramente potencial, tais como: limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; dominar mercado relevante de bens ou serviços; aumentar arbitrariamente os lucros; e exercer de forma abusiva posição dominante.

Assim, seria necessário que a recusa a contratar ou a imposição de condições contratuais fundadas em valores e diretrizes ESG tenha como objetivo ou efeito tais finalidades anticompetitivas.

Isso não quer dizer que, em eventual processo ou investigação, a intenção da empresa de alcançar tais objetos ou efeitos deva estar comprovada para além de qualquer dúvida. Busca-se, aqui, uma relação objetiva de causa e efeito, de adequação entre condutas e resultados, desde que obedeçam a uma racionalidade anticompetitiva  em outras palavras, desde que visem a eliminar concorrentes diretos ou agentes na cadeia vertical (a jusante ou a montante, pouco importa), com o objetivo, por exemplo, de favorecer agentes do mesmo grupo econômico ou outros parceiros. Seria o caso, para ilustrar, de uma conduta excludente preparatória para a verticalização de uma atuação empresarial, que se serve de exigências alinhadas à pauta ESG como mera ocasião para práticas abusivas sob um verniz de preocupação socioambiental.

A doutrina especializada proveniente do Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (Ibrac) registra que, na prática, a recusa a contratar está intimamente relacionada à posição dominante combinada com relação de dependência absoluta e/ou a facilidades essenciais, isto é, elementos sob o domínio de uma só empresa ou conjunto de empresas que devem ser acessíveis a seus concorrentes, sob pena de eliminação da própria concorrência. 

Dessa forma, as empresas que estejam em posição dominante, e em especial aquelas que tenham domínio de facilidades essenciais ou das quais outras dependam de forma absoluta, devem usar cautela redobrada ao planejar e implementar exigências de adoção de políticas ESG por parceiros comerciais na cadeia vertical ou concorrentes que pleiteiem o acesso a facilidades essenciais, se não quiserem se expor, no mínimo, a acusações judiciais ou administrativas e, possivelmente, a eventuais averiguações preliminares e inquéritos a respeito de recusa de contratar e imposição de condições contratuais anormais do ponto de vista dos usos e costumes comerciais. O mesmo é aplicável a agentes que gozem de posição dominante e que estejam planejando ou implementando a verticalização dos negócios, já que a recusa de contratar pode vir a ser interpretada como atuação preventiva de exclusão de concorrentes futuros.

No geral, recomenda-se ter em vista a razoabilidade e a proporcionalidade na exigência de adoção de políticas ESG por parceiros comerciais, devendo-se levar em conta, por exemplo, a essencialidade do produto ou serviço fornecido, o tamanho do contratante ou pleiteante e, em todo o caso, eventuais ajustes necessários entre a política adotada internamente pelo agente dominante e as exigências feitas a terceiros alheios à organização empresarial. Em todo caso, apenas diante das circunstâncias concretas a adoção de certas exigências e cláusulas pode ser avaliada quanto a seus riscos anticoncorrenciais.

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