Opinião

A dupla fase de absolvição sumária no rito do júri

Autores

  • Almir Santos Reis Junior

    é doutor em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) professor do Curso de Doutorado em Direito Público da Universidade Católica de Moçambique docente do curso de Mestrado em Direito Penal na Universidade Católica de Moçambique professor Adjunto TIDE do curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM) ex-presidente da Comissão de Advogados Criminalistas da Ordem dos Advogados do Brasil na subseção de Maringá.

  • Ivan Aparecido Ruiz

    é mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) professor associado da Universidade Estadual de Maringá (UEM-PR) e professor pesquisador visitante sob orientação na Universidade de Camerino – UNICAM (Università degli Studi di Camerino).

17 de janeiro de 2022, 17h11

A instituição do júri, reconhecida constitucionalmente como direito e garantia fundamental (artigo 5°, inciso XXXVIII, da CR/88), com competência mínima para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (consumados ou tentados), adota procedimento marcado por peculiaridades próprias. O Código de Processo Penal dá especial atenção a esse procedimento, já que quase uma centena de artigos (artigos 406 ao 497, CPP) disciplina-o, desde a fase nominada como "sumário da culpa" até a sentença proferida, pelo juiz-presidente, com observância à plenitude de defesa, ao sigilo das votações, à soberania dos veredictos e, evidentemente, com arrimo na vontade popular, emanada pelo conselho de sentença.

Em tal rito processual, após o oferecimento da denúncia ou da queixa substitutiva da denúncia, o juiz, ao verificar que há justa causa para início da ação penal, que estão presentes as condições para o exercício da ação e seus pressupostos processuais, bem como concluindo pela presença dos requisitos constantes do artigo 41 do CPP, receberá a inicial e determinará a citação do acusado para apresentação de resposta à acusação, na forma do artigo 406 do CPP. Após a apresentação da resposta do acusado, por meio de seu defensor, o magistrado ouvirá o representante do Ministério Público sobre o conteúdo da resposta do réu (artigo 409, CPP) e, em seguida, proferirá decisão interlocutória sobre os requerimentos apresentados e, por fim, designará audiência de instrução.

Essa narrativa apresenta uma importante distinção entre a primeira fase do rito do júri e a fase inicial do rito ordinário, disciplinado nos artigos 396 ao 405 do CPP. Isso porque, no rito ordinário, o juiz, ao receber a resposta do réu com seus argumentos de mérito poderá absolvê-lo, desde logo, sumariamente, ou seja, sem a necessidade da realização da instrução probatória. Tal conjectura ocorre nas hipóteses delineadas no artigo 397 do CPP, que dispõe:

"Artigo 397  Após o cumprimento do disposto no artigo 396-A, e parágrafos, deste Código, o juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando verificar:
I
a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato;
II
a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade;
III
que o fato narrado evidentemente não constitui crime; ou
IV
extinta a punibilidade do agente" [1].

Em sentido díspar, no procedimento do júri a fase de absolvição sumária é procrastinada para o estágio posterior à instrução criminal. Melhor dizendo, após tomar as declarações da vítima (se sobrevivente), a oitiva das testemunhas arroladas pelas partes, os esclarecimentos de peritos, as acareações, o reconhecimento de pessoas e coisas, o interrogatório do acusado e a apresentação das alegações finais, o magistrado poderá absolver o réu sumariamente [2], nas hipóteses elencadas pelo artigo 415 do CPP, que dispõe:

"Artigo 415  O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado, quando:
I
provada a inexistência do fato;
II
provado não ser ele autor ou partícipe do fato;
III
o fato não constituir infração penal;
IV
demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime".

Em que pese tal previsão legal, não se pode olvidar a relevância e a incidência do artigo 397 do CPP, a todos os procedimentos penais de primeiro grau, porquanto é essa a determinação contida no artigo 394, §4º, do CPP, ao dispor que: "As disposições dos artigos 395 a 398 deste Código aplicam-se a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados neste Código". Nessa senda, a resposta do réu (artigo 406, CPP), no procedimento do júri, não pode ser genérica e alusiva somente a questões relacionadas a produção probatória e as exceções processuais, sem ingressar no mérito da causa. É, outrossim, o momento oportuno do acusado expor suas teses de defesa que possam levar o magistrado a absolvê-lo sumariamente, como se ordinário fosse o procedimento, independente da instrução probatória preliminar do rito do júri. Isso se dá, em razão da previsão legal contida no artigo 394, §4º, do CPP. Portanto, não cabe ao magistrado, no rito especial do júri, ao receber a resposta do acusado, seguir automaticamente a providência abarcada nos artigos 410 ss do CPP, pois deve antes, em submissão ao artigo 394, §4º, do CPP, debruçar sobre as teses de mérito [3] que a defesa tenha apresentado em sua resposta e, se entender pertinentes, absolverá sumariamente o acusado na forma do artigo 397 do CPP. Esta, aliás, é a tendência moderna do Direito Processual [4], seja no Direito Processual Penal, seja no Direito Processual Civil como um todo, atenta ao direito e a garantia fundamental do acesso à Justiça (artigo 5°, inciso XXXV, da CF/88), entendido como um acesso ao processo que traga uma resposta tempestiva, útil e adequada ao conflito de interesses, porquanto o processo deve ser instrumento de resultados que sejam justos, ou melhor, que haja uma justa composição do conflito de interesses submetido ao Poder Judiciário.

Isso ocorre, também, motivado pela disposição topográfica dos parágrafos apresentados pelo artigo 394 do CPP, já que, ao dispor sobre as diretrizes legais que o rito do júri deve seguir, tal dispositivo legal o faz no §3º deste artigo, ao determinar que: "Nos processos de competência do Tribunal do Júri, o procedimento observará as disposições estabelecidas nos artigos 406 a 497 deste Código" e, no parágrafo subsequente (§4°), dispõe o regramento geral aplicável a todos os procedimentos penais de primeiro grau [5]. Portanto, o conteúdo do §4º deve ter maior força hierárquica que as normativas descritas nos parágrafos antecedentes.

A interpretação acima exposta leva em consideração a técnica da redação das normas jurídicas, como orienta a Lei Complementar nº 95/98, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do artigo 59 da CRF. Segundo tal normativa, especialmente seu artigo 10, os artigos do texto legal serão desdobrados em parágrafos (§) ou em incisos; os incisos em alíneas e as alíneas em itens. A norma jurídica contém, portanto, a regra geral e as exceções; no caput do artigo vem expressa a regra geral e em seus parágrafos estão previstas as exceções, que são os desdobramentos à regra, tendo força hierárquica maior o mais recente sobre o antecedente.

Em outras palavras, na disposição topográfica dos parágrafos apresentados em um dispositivo deve-se observar que o parágrafo posterior tem maior força hierárquica que os antecedentes a ele. Portanto, o conteúdo descrito no §4º do artigo 394 do CPP tem incidência ampla e geral, cuja robustez sobrepaira ao conteúdo dos parágrafos anteriores. Em síntese, em submissão à interpretação sistemática do mencionado dispositivo, o juiz está autorizado a proferir sentença de absolvição sumária após a resposta do réu.

Nessa senda, não se pretende desprezar o conteúdo normativo do artigo 415 do CPP. Absolutamente. Contudo, sua incidência temporal se dá após as alegações finais da primeira fase do rito do júri. Em outros termos, pode-se concluir que no rito especial do júri, na fase do sumário da culpa, há dois momentos processuais que permitem a análise do mérito e o reconhecimento da absolvição sumária, pelo julgador: o primeiro, após o recebimento da resposta do acusado, com esteio no artigo 397 c/c 394, §4º, todos do CPP; e, o segundo, após a instrução probatória, na forma do artigo 415 do CPP; ambos obstam que a causa seja apreciada pelo tribunal popular.

 


[1] Embora o texto legal apresente o reconhecimento de causa extintiva de punibilidade como motivo justificador da absolvição sumária, é importante esclarecer que o reconhecimento, pelo juiz, de causa que extinga a punibilidade como a prescrição, por exemplo, trata-se de decisão terminativa de mérito e, portanto, pode ser reconhecida pelo julgador em qualquer momento processual, pois afeta matéria de ordem pública.

[2] Sem prejuízo a hipótese de absolvição sumária, no rito do júri, quando o magistrado concluir pela presença da materialidade delitiva dolosa contra a vida e seus indícios de autoria ou participação criminosa, pronunciará o acusado, na forma do artigo 413, do CPP. Por outro lado, não havendo, por exemplo, indícios suficientes de autoria ou participação delitiva o juiz impronunciará o acusado (artigo 414, CPP). Por fim, concluindo o juiz pela materialidade e pelos indícios de autoria, porém, de crime diverso do doloso contra vida, seguirá o mandamento determinado pelo artigo 419, do CPP, ou seja, desclassificará a infração penal e remeterá os autos ao juízo competente caso ele não o seja.

[3] Não se pode olvidar, também, que, atualmente, deve-se observar o princípio da primazia da decisão do mérito, ao defender a possibilidade da análise do mérito, com resolução do conflito de interesses. Tal princípio está voltado à superação dos vícios processuais sanáveis (artigo 396-A, caput, do CPP), permitindo ao julgador abrir oportunidade as partes para que façam as correções necessárias, possibilitando a análise do mérito e, consequentemente, a solução do conflito por meio da decisão judicial.

[4] Confira-se, a propósito, a título meramente exemplificativo, os artigos 4° e 6° do CPC.

[5] É evidente que somente serão aplicadas as normativas descritas no §4º, do artigo 394, que não tenham também previsão legal nos dispositivos que tratam do rito do júri. Então, a resposta do réu, por exemplo, embora encontre amparo legal geral nos 396 e 396-A, do CPP, quando envolver o rito do júri seu fundamento legal será o artigo 406, do CPP.

Autores

  • é doutor em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor do curso de doutorado em Direito Público da Universidade Católica de Moçambique, docente do curso de mestrado em Direito Penal na Universidade Católica de Moçambique, professor adjunto Tide do curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e advogado.

  • é mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), professor associado da Universidade Estadual de Maringá (UEM-PR) e professor pesquisador visitante sob orientação na Universidade de Camerino – UNICAM (Università degli Studi di Camerino).

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