Opinião

A colisão entre direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade

Autor

  • Bruna Mirella Fiore Braghetto

    é especialista em Direito Corporativo e Compliance pós-graduada em Processo Civil e Direito Civil pela Escola Paulista de Direito graduada em Direito pela Universidade Católica de Santos sócia e advogada no escritório Pallotta Martins palestrante instrutora in company autora de artigos e professora convidada para cursos e eventos.

17 de janeiro de 2022, 11h12

Os direitos fundamentais não são absolutos, pois podem, sim, sofrer algum tipo de limitação.

Quando precisamos aplicar os direitos fundamentais para solucionar um caso concreto, chega-se à conclusão de que um direito fundamental muitas vezes tem maior importância do que outro.

Um exemplo dessa colisão de princípios recentemente julgada pelo STJ trouxe o tema da privacidade dos exames para a detecção do HIV versus o direito à vida, à saúde e à coletividade. Nesse caso [1], um cidadão entrou com pedido de indenização contra um hospital porque este, ao realizar vários exames, acabou fazendo também, por engano, o teste de HIV, que não havia sido solicitado. O resultado, positivo, foi comunicado reservadamente ao médico.

No voto que prevaleceu no julgamento, o ministro Massami Uyeda (aposentado) considerou que a causa do abalo psicológico era o vírus, não a conduta do hospital. Para o magistrado, o alegado direito de a pessoa não saber que é portadora do HIV contraria o interesse coletivo, por favorecer a disseminação da doença. Segue trecho do voto:

"O direito à intimidade, não é absoluto, aliás, como todo e qualquer direito individual. Na verdade, é de se admitir, excepcionalmente, a tangibilidade ao direito à intimidade, em hipóteses em que esta se revele necessária à preservação de um direito maior, seja sob o prisma individual, seja sob o enfoque do interesse público. Tal exame, é certo, não prescinde, em hipótese alguma, da adoção do princípio da dignidade da pessoa humana, como princípio basilar e norteador do Estado Democrático de Direito, e da razoabilidade, como critério axiológico; II – Sob o prisma individual, o direito de o indivíduo não saber que é portador do vírus HIV (caso se entenda que este seja um direito seu, decorrente da sua intimidade), sucumbe, é suplantado por um direito maior, qual seja, o direito à vida, o direito à vida com mais saúde, o direito à vida mais longeva e saudável".

A colisão entre direitos fundamentais deve ser solucionada pela mesma lógica da colisão entre princípios, o que significa dizer que não deve ser aplicada a lógica da colisão entre regras.

Os direitos fundamentais são normas com alta carga valorativa e forte conteúdo axiológico. Em outras palavras, direitos fundamentais têm a natureza de princípios e, nessa senda, a colisão entre os direitos fundamentais deve seguir a mesma lógica para solução de colisão entre princípios.

É fundamental que se entenda a diferença entre regras e princípios. Vejamos que uma norma pode ser uma regra ou um princípio.

Quando no artigo 5º, inciso I, da CF é dito que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição", estamos diante de um princípio, com alto grau de abstração, ao contrário de uma regra, que estabelece um comando direto, com diminuto grau de abstração.

Na solução de conflitos entre regras, resolve-se com "tudo ou nada", ou seja, apenas uma regra prevalecerá, pois não é possível harmonizá-las. Já em relação aos princípios, a depender das circunstâncias, um direito fundamental terá mais ou menos importância do que outro.

Para realizar essa ponderação, utiliza-se o princípio da proporcionalidade e a teoria dos limites dos limites. O princípio da proporcionalidade estabelece a definição de peso para cada um dos direitos fundamentais e estabelece que essa definição deve se dar de maneira proporcional para encontrar-se o equilíbrio correto entre os direitos fundamentais: devemos analisar se o benefício alcançado com o sacrifício da aplicação de um direito fundamental não causa um prejuízo desnecessário.

Este é o fundamento da teoria dos limites dos limites, a qual impõe que a restrição deve ser abstrata. Nesses termos, a lei que venha a limitar o direito fundamental não pode ser casuística, discriminatória, sob pena de ofensa aos princípios da igualdade material e da segurança jurídica.

O direito fundamental que deva ser aplicado deve causar o mínimo de prejuízo possível ao outro direito fundamental de menor peso. A solução alcançada deve se dar no exato limite do necessário, nem excessiva, nem insuficiente.

O conflito também exsurge no debate sobre o dever de fornecimento pelo Estado de medicamentos de alto custo:

"Tais excessos e inconsistências não são apenas problemáticos em si. Eles põem em risco a própria continuidade das políticas de saúde pública, desorganizando a atividade administrativa e impedindo a alocação racional dos escassos recursos públicos. No limite, o casuísmo da jurisprudência brasileira pode impedir que políticas coletivas, dirigidas à promoção da saúde pública, sejam devidamente implementadas. Trata-se de hipótese típica em que o excesso de judicialização das decisões políticas pode levar à não realização prática da Constituição Federal. Em muitos casos, o que se revela é a concessão de privilégios a alguns jurisdicionados em detrimento da generalidade da cidadania, que continua dependente das políticas universalistas implementadas pelo Poder Executivo" (Barroso, 2007) [2].

A concessão desses medicamentos causa impactos significativos no orçamento público, afetando um todo em detrimento daqueles que buscam o Judiciário. Ou seja, é o direito fundamental à saúde de um indivíduo em conflito com o mesmo direito, porém, de toda uma coletividade.

O princípio da proporcionalidade orienta que a solução é aquela que alcança a finalidade pretendida, mas sem prejudicar desnecessariamente o direito das demais pessoas que também dependem da saúde pública. Por exemplo, se houver um medicamento mais barato, que atenda ao problema de saúde daquele indivíduo, embora em menos amplitude e eficácia, este deverá ser utilizado.

Nesse mesmo tema, é muito utilizada em defesa do Estado a teoria da reserva do possível, segundo a qual não é possível exigir do Estado o que não é razoável ou proporcional diante dos limites de ordem prática, pois o poder público somente pode ser obrigado a atender aos direitos fundamentais dos indivíduos dentro das possibilidades reais.

Segundo essa teoria, existem limitações de ordem prática que impedem o Estado de atender a todos os direitos fundamentais.

Paralelamente, existe a teoria do mínimo existencial, segundo a qual toda e qualquer pessoa tem o direito de receber do Estado o mínimo necessário para uma existência digna, em outras palavras, ao menos a dignidade humana deve ser respeitada.

Esses argumentos foram utilizados em processo em que foi determinada a interdição de presídio que não apresentava condições de ocupação pela população carcerária:

"PROCESSO PENAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA AUSÊNCIA DE OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. REVISÃO DO JULGADO. IMPOSSIBILIDADE. PREQUESTIONAMENTO DE PRECEITOS CONSTITUCIONAIS. INCOMPETÊNCIA. EMBARGOS REJEITADOS.
(…)
3. No julgamento do RE 592.581/RS, com repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a supremacia dos postulados da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial legitima a imposição, ao Poder Executivo, de medidas em estabelecimentos prisionais destinadas a assegurar aos detentos o respeito à sua integridade física e moral, não sendo oponível à decisão o argumento da reserva do possível.
4. Não afronta o princípio da separação dos poderes a interdição, total ou parcial, de unidade penitenciária que estiver funcionando em condições inadequadas, uma vez que se trata de função atípica conferida ao Poder Judiciário pelo art. 66, VIII, da Lei de Execução Penal. Precedentes desta Corte Superior. (…)" 
(EDcl no RMS 45.212/MG, rel. ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 22/5/2018, DJe 30/5/2018)".

Por fim, não parece simples a tarefa de sopesar dois direitos fundamentais, portanto, a técnica de balizamento entre o fornecimento do mínimo necessário e o menor impacto possível ao direito subjugado oferece um direcionamento nesta ponderação.


[1] RECURSO ESPECIAL Nº 1.195.995 — SP (2010/0098186-7). RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI R.P/ACÓRDÃO : MINISTRO MASSAMI UYEDA. Acórdão publicado no DJE em 11/10/211.

[2] Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/saude/Saude_-_judicializacao_-_Luis_Roberto_Barroso.pdf/view. Acesso em: 14/1/2022.

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  • é advogada, pós-graduada em Processo Civil e Direito Civil pela Escola Paulista de Direito, sócia no escritório Pallotta Martins, palestrante e instrutora In company, autora de artigos e professora convidada para cursos e eventos.

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