Opinião

A esfinge do Direito Administrativo Sancionador como metanorma

Autor

  • Fernando Ferreira dos Santos

    é professor de Direito Constitucional da Universidade Federal do Piauí doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco promotor de Justiça aposentado e autor do livro "Direitos Fundamentais e Democracia — O Debate Habermas - Alexy" (Juruá Editora 2010).

11 de janeiro de 2022, 16h07

A nova Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021) tem suscitado um forte debate quanto à sua adequada compreensão, mormente à sua criminalização, vale dizer, a equiparação à ação penal em institutos como dolo, tipicidade e prescrição intercorrente. Neste artigo, queremos discutir a relação entre improbidade e Direito Administrativo Sancionador, expressamente consignada no parágrafo 4º do artigo 1º: "Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador". Mostraremos que se apresenta como uma esfinge.

O sistema de improbidade não integra o Direito Administrativo Sancionador

Numa primeira leitura, infere-se que, para o legislador, o sistema de improbidade não integra o Direito Administrativo Sancionador (DAS), pois, de outra forma, seria desnecessária a referência. Além de ser a mais plausível, essa é a interpretação adequada, tendo em vista que, em alguns países europeus, o DAS é "aparato técnico e jurídico da potestade sancionadora dos órgãos administrativos", em contraposição ao monopólio judicial do jus puniendi estatal.

Com efeito, enquanto na Espanha, Áustria e Suíça a passagem do Estado absolutista para o liberal não afetou a competência sancionadora da Administração, na Alemanha, França e Itália houve, com a aplicação do princípio da separação dos poderes, uma progressiva abolição daquela potestade mediante a jurisdicionalização dos ilícitos administrativos. Assim, uma potestade sancionadora da Administração constituía exceção ou anomalia [1], porquanto numa concepção estrita da teoria da separação dos poderes enquanto especialização das funções, somente o Poder Judiciário pode(ria) impor sanções aos cidadãos [2]. Como resumiu o Tribunal Constitucional Espanhol (TCE): "Não há dúvida de que em um sistema em que a divisão dos poderes do Estado é regida de maneira estrita e sem fissuras, a potestade sancionadora deveria constituir um monopólio judicial e jamais poderia estar nas mãos da Administração" [3].

Nessa ótica, o DAS é o ramo do Direito Administrativo que regula o exercício da potestade sancionadora da Administração e as correspondentes garantias dos cidadãos [4]. É porque existe uma potestade sancionadora e um ordenamento jurídico sancionador que se pode falar em DAS, como sintetiza Aleandro Nieto [5].

Ora, como é sabido, o modelo brasileiro, de um lado, alinha-se à versão tradicional da separação dos poderes, conferindo ao Poder Judiciário o monopólio da sanção por atos de improbidade administrativa. De outro, as sanções são, numa expressão ampla, extrapenais, eis que o legislador constituinte, instituindo um duplo sistema de responsabilidade, consignou que seriam impostas "sem prejuízo da ação penal cabível", possibilitando, em consequência, o bis in idem: julgamento e punição múltiplos pelo mesmo fato.

Ou seja, não adotamos nem o modelo francês de separação das autoridades administrativas e judiciárias com uma jurisdição administrativa própria, sem as garantias dos magistrados e vinculada formalmente ao Poder Executivo, nem o modelo das demais sanções administrativas, decididas e impostas pela própria Administração e submetidas ao controle pelo Poder Judiciário.

Em síntese: sendo monopólio do Poder Judiciário, o sistema de improbidade não integra o DAS, que, como demonstramos, há de ser entendido enquanto expressão da potestade sancionadora da Administração.

Se é assim, como vincular o sistema de improbidade administrativa aos princípios constitucionais do DAS? Ou, noutras palavras, como depender o processo judicial dos princípios do procedimento administrativo? Este não é caracterizado justamente por possuir garantias mais flexíveis e tênues [6]? Pela inexistência de "um corpo dogmático sólido" [7]? "Como um direito repressivo primário e arcaico" [8]? Recorde-se, por exemplo, a Súmula Vinculante nº 5, no qual o STF pontificou que "a falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição".

Aqueles autores, que, na doutrina, entendem o contrário, isto é, que o sistema de improbidade integra o DAS, o fazem, não apenas elastecendo "a compreensão da identidade do DAS", mas mudando o próprio objeto do DAS. Em vez do estudo da potestade sancionadora da Administração, centra-se na sanção, "porque há sanções de DAS editadas por órgãos e entes da Administração Pública Direta e Indireta do Poder Executivo, pelo Poder Legislativo, pelo Poder Judiciário, pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Contas" [9].

Assim, defende-se que as "sanções de DAS" hão de ser conceituadas "a partir do campo de incidência do Direito Administrativo, formal e material" [10], alargando-se o seu campo de abrangência, inclusive no plano judicial.

Porém, a colocação sob o mesmo guarda-chuva de duas realidades, por natureza, distintas e díspares, qual seja o processo judicial e o procedimento administrativo, traz em si o desafio de demonstrar como o instituto da sanção unifica-as, ao ponto de transformarem-nas em um único objeto do DAS. De outro lado, obriga a esclarecer como se dá o transplante da doutrina estrangeira, principalmente a espanhola, que, ante uma concepção estrita do princípio da separação dos poderes, conceitua o DAS como expressão da potestade sancionadora da Administração.

A pretensão do Direito Penal como a solução do enigma
Em verdade, a equação sistema de improbidade administrativa versus Direito Administrativo Sancionador, proposta pelos defensores da integração, se ilumina trazendo à tona um terceiro elemento que, embora ausente, tem a pretensão de impor a solução: o Direito Penal. Assim, ambiciona-se que os direitos e garantias deste aplicar-se-iam ao DAS, que, por sua vez, aplicar-se-iam ao sistema de improbidade administrativa.

Subjaz a essa pretensão a premissa de que, sendo as infrações/sanções penais e administrativas manifestações de um único jus puniendi do Estado, os princípios do Direito Penal impor-se-iam por decorrência lógica ao DAS. Haveria uma identidade ontológica (metafísica) a determinar a "colonização" (Nieto, p.168) deste por aquele. Aqui, o oráculo sempre citado é o administrativista espanhol Garcia de Enterria, para quem os "princípios do Direito Administrativo Sancionador são, e não podem deixar de ser, os que se sistematizam no Direito Penal de aplicação judicial" [11], inexistindo, assim, "uma substantividade de princípios do Direito Administrativo Sancionador com respeito ao Direito Penal" [12]. Nessa ótica, o enigma estaria solucionado, quase que como num passe de mágica.

Ocorre que, além da premissa da identidade ontológica ser uma falácia, as jurisprudências do TCE e do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) não autorizam a transposição automática dos princípios de Direito Penal ao DAS, e, muito menos, à improbidade administrativa. Pelo contrário, reforçam o enigma e deixa o doutrinador nacional por conta própria, a buscar o próprio caminho, a construir uma doutrina brasileira do sistema de improbidade administrativa.

Inicialmente, na Espanha, toda a construção doutrinária e jurisprudencial parte da conceituação do DAS como a regulação do exercício da potestade sancionadora da Administração.

Segundo, porque o TCE sustenta, na Sentencia 18/1981, que "os princípios inspiradores da ordem penal são aplicáveis, com certos matizes, ao direito administrativo Sancionador (..) tal como reflete a própria Constituição (art 25, princípio da legalidade" [13]. Ou seja: a aplicação dos princípios do Direito Penal ao DAS dar-se-á "com certos matizes", não havendo, portanto, uma simples transposição das garantias penais para o âmbito administrativo. Ilustrando tal processo de matização, Alejandro Nieto cita decisões do Tribunal Supremo alertando que a transferência automática de institutos previstos no Código Penal para o campo sancionador da Administração apresenta "dificuldades inerentes à diversa estrutura de ambos ordenamentos", que a aplicação dos critérios de Direito Penal pelo pelo DAS "não é absoluta" e, fundamentalmente, que "a existência de princípios comuns a todo Direito de caráter Sancionador (…) não pode significar o desconhecimento das singularidades concorrentes nos ilícitos tipificados nos distintos ordenamentos" [14].

Temos, assim, uma intensa relativização da regra do único jus puniendi e, consequentemente da regra da transposição, pois, como alerta Raul Letelier Wartenberg [15], o processo de matização costuma ser de tal magnitude que torna irreconhecível a garantia penal que supostamente se qualifica a ponto de que "não se sabe se o essencial é a aplicação de princípios e critérios ou, antes, as matizações com que deve ser realizada" [16].

Desfaz-se, assim, a pretendida equação e o sonho de decifrar a esfinge do parágrafo 4º do artigo 1º da Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021.

O conceito material de infração e sanção penal do Tribunal Europeu de Direitos Humanos
Ante o reconhecimento e crescimento da potestade sancionadora da Administração, e a fim de controlar a tentação das autoridades nacionais em manipular a qualificação das infrações e sanções como penais ou administrativas, e, assim, escapar das garantias exigidas pelo Direito Penal e Processual [17], o TEDH desenvolveu um conceito autônomo (em relação ao Direito positivo dos países) e material de infração e sanção penal, erigindo os chamados critérios Engel [18].

Com o objetivo de garantir aos cidadãos europeus o direito ao processo equitativo, previsto no artigo 6º da CEDH, o TEDH estabeleceu o teste de três etapas para determinar o que vale como "acusação criminal": a) a qualificação dada à infração; b) a natureza da infração; c) a gravidade da sanção. Os dois últimos critérios são alternativos e não cumulativos.

O TEDH, portanto, a fim de avaliar se as garantias previstas no artigo 6º da CEDH aplicam-se ou não a uma determinada infração/sanção administrativa, analisa, em primeiro lugar, como condito sine qua non, se aquela enquadra-se nos critérios Engel. No caso Grande Stevens and Other v. Italy, por exemplo, o TEDH considerou que "embora a sanção fosse qualificada como 'administrativa' no Direito italiano, a gravidade das multas aplicadas aos requerentes significava que eram de natureza criminal", concluindo, "nos termos do artigo 6º, que havia, de fato, fundamentos para considerar que o procedimento perante a Consob dizia respeito a uma 'acusação criminal'" [19]. Assim, o novo processo no âmbito criminal constituía uma violação do ne bis in idem, eis que a sanção administrativa fora qualificada como penal, atraindo a aplicação do artigo 6º da CEDH.

Porém, no caso A e B v Noruega, o TEDH mudou seu entendimento, permitindo a ocorrência de um duplo regime de responsabilidade, acentuando que não há violação ao ne bis in idem quando os dois procedimentos sancionatórios possuem uma "conexão substancial e temporal suficientemente estreita" e constituem "um sistema integrado que permite que os vários aspectos da ofensa sejam tratados de forma previsível e proporcional no âmbito de uma estratégia unificada" [20].

Em síntese, para decifrar a esfinge do DAS como metanorma, estamos sós e devemos construir uma doutrina brasileira do sistema de improbidade administrativa.


[1] GUYOMAR, Mattias. Les sanctions administratives. Paris: LGDF: 2014.

[2] O princípio da separação dos poderes é composto de três regras: a) a regra da especialização, segundo o qual cada poder exerce especializadamente uma função, sem a intervenção ou controle de outro. Nesta ótica, o exercício de uma potestade Sancionadora pela Administração constitui uma exceção; daí também, o modelo dualista de jurisdição, ordinária e administrativa, existente em países como a França e a Itália; b) a regra dos freios e contrapesos, em quem um poder controla o outro; c) a regra das funções atípicas, pela qual um poder exerce funções que, por natureza, pertencem a um outro. Daí porque os poderes legislativo e judiciário aplicam sanções administrativas.

[3] TCE, STC 77/1983: "No cabe duda que en un sistema en que rigiera de manera estricta y sin fisuras la división de los poderes del Estado, la potestad Sancionadora debería constituir un monopolio judicial y no podría estar nunca en manos de la Administración…". In http://hj.tribunalconstitucional.es/en-US/Resolucion/Show/205.

[4] EBOLLO PUIG, Manuel; CARBONELL PORRAS, ELOÍSA. Derecho Administrativo. Tomo II. 3ª ed. Madrid: Tecnos, 2017, p. 242.

[5] NIETO, Alejandro. 2ª ed. ampl. Derecho Administrativo Sancionador. Madrid: Tecnos, 1994, p. 85.

[6] CORDERO, Quinzacara. Derecho Administrativo Sancionador, Bases y Principios en el Derecho Chileno. Santiago: Thomson Reuters, 2014, p. 101.

[7] ROMÁN, Cristián. El Derecho Administrativo Sancionador em Chile, in Revista de Derecho Universidad de Montevideo, vol 16 (2009, p. 99.

[8] ENTERRIA, Eduardo Garcia e FERNANDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: RT, 1991. p. 891.

[9] PIMENTA OLIVEIRA, José Roberto; GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. In Direito administrativo Sancionador brasileiro: breve evolução, identidade, abrangência e funcionalidades. Disponível em https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/CEJUR%20-%20PGM/CEJUR%20Clipping/5%C2%AA%20Edi%C3%A7%C3%A3o/Artigos/3.pdf, visita 1/12/2021. p. 97.

[10] OSÓRIO, FÁBIO MEDINA, Direito Administrativo Sancionador. 5ª ed. rev e atual e ampl. São Paulo: RT, 2015.P. 90. Esquece-se, aqui, que, na concepção brasileira do princípio da separação dos poderes, a legitimidade do Poder Legislativo, Poder Judiciário e Ministério Público para imporem sanções se dá pelo exercício da função atípica administrativa. Quanto ao Tribunal de Contas, temos um modelo híbrido, eis que há, no tocante às contas de gestão, uma típica jurisdição administrativa como no modelo francês, mas que, ao contrário deste, se submete ao controle do Poder Judiciário, ainda que de forma limitada.

[11] ENTERRIA, Eduardo Garcia;FERNANDEZ, Tomás-Ramón. ob. cit., p. 894.

[12] Idem, p. 885.

[13] Disponível em http://hj.tribunalconstitucional.es/es-ES/Resolucion/Show/18. Consulta em 20/12/2020.

[14] NIETO, Alejandro, ob. cit., p. 169./170.

[15] WARTENBERG, Raul Letelier. Garantias penales y sanciones administrativas, in http://www.politicacriminal.cl/Vol_12/n_24/Vol12N24A1.pdf. Visita 28/12/2020.

[16] NIETO, Alejandro, ob. cit., p. 171. tradução livre.

[17] MARTINI, Giovanni. Procedural and Judicial Guarantees against the punitive power of public bodies. Disponível em https://www.degruyter.com/document/doi/10.1515/gj-2020-0030/html, consulta em 21/12/2020.

[19] Disponível em file:///C:/Users/Fernando/Downloads/003-4687386-5686720.pdf, consulta 28/12/2020. Tradução livre

[20] Disponível em https://lovdata.no/static/EMDN/emd-2011-024130.pdf, consulta em 28/12/2020. Tradução livre.

Autores

  • é professor de Direito Constitucional da Universidade Federal do Piauí, doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, promotor de Justiça aposentado e autor do livro "Direitos Fundamentais e Democracia — O Debate Habermas - Alexy" (Juruá Editora, 2010).

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