Opinião

Arquitetura regulatória das finanças sustentáveis na UE: uma breve introdução

Autor

  • Vinicius Diniz Vizzotto

    é advogado corporativo mestre em Direito Internacional Econômico pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e LL.M em Law and Economics (Bologna/Ghent/Hamburg).

7 de janeiro de 2022, 17h18

Introdução
Os próximos anos serão de muita atividade e adaptação regulatória no âmbito do sistema financeiro europeu e dos respectivos participantes deste mercado, tendo em vista a cada vez maior relevância das denominadas finanças sustentáveis. Ainda em 2018, a Comissão Europeia lançou o Plano de Ação de Finanças Sustentáveis, o qual possui três objetivos específicos: 1) reorientar fluxos de capital em investimentos sustentáveis, a fim de se alcançar crescimento inclusivo e sustentável; 2) gerenciar riscos financeiros oriundos das mudanças climáticas, degradação ambiental e questões sociais; e 3) incentivar transparência e uma perspectiva de investimento de longo prazo nas atividades financeiras e econômicas.

Como consequência desse plano, um grande número de ações e regulações em nível europeu foram promulgadas ou atualizadas. Os elementos desse marco regulatório foram baseados nos objetivos gerais do Acordo de Paris de 2015 e também no recente Acordo Verde Europeu (European Green Deal, de 2019), o qual visa a alcançar uma redução em até 55% nas emissões de gases que colaboram com efeito estufa até 2030 (comparados com valores históricos década de 1990). A maior ambição do acordo é de que até 2050 a União Europeia seja climaticamente neutra.

Marco Regulatório das Finanças Sustentáveis na UE
Existem três principais instrumentos legais que orbitam e se interrelacionam no contexto europeu das finanças sustentáveis. Esses instrumentos possuem como principais objetivos: 1) aumentar a transparência de companhias em relações às suas práticas de governança e sustentabilidade (Diretiva (EU) 2014/95  NFRD  Non Financial Reporting Directive [1], já em reformulação para se transformar na CSRD —  Corporate Sustainability Reporting Directive [2], aumentando assim o número de empresas dentro de seu escopo); 2) padronizar o nível de informação referente a companhias e instrumentos financeiros que se denominam  verdes ou sustentáveis, a fim de evitar a denominada prática de greenwashing, isto é, a divulgação de informação ambiental que induz investidores ou consumidores a erro, seja pela omissão ou pelo falseamento de dados ou performance (Regulação (EU) 2019/2088 — SFDR — Sustainable Finance Disclosure Regulation [3]); e 3) implementar um sistema de classificação que possa definir o quanto uma atividade econômica é sustentável, por meio de um processo de avaliação específico (Regulação (EU) 2020/852  EU Taxonomy [4]).

As obrigações contidas nessas regulações e diretivas possuem reflexos que começam a ser sentidos de modo concreto pelos participantes do mercado (bancos, seguradoras, fundos de investimento, fundos de pensão) a partir de janeiro de 2022. Estas obrigações tornar-se-ão, gradativamente, mais robustas ao longo dos anos. O arcabouço legal é extremamente complexo e rico e pode certamente influenciar jurisdições e autoridades regulatórias de outros países e regiões, um fenômeno que já foi denominado de "efeito Bruxelas" e que também já se aplicou, por exemplo, quando da promulgação da Regulação Geral de Proteção de Dados (GDPR). A legislação europeia acabou por inspirar outros países (inclusive o Brasil, que promulgou a Lei Geral de Proteção de Dados em 2018).

Escopo e função  dos instrumentos legais das finanças sustentáveis na UE
A NFRD traz obrigações para algumas empresas europeias, sejam financeiras ou não (os denominados undertakings), tais como divulgar dados referentes a seu modelo de negócios, existência de práticas anticorrupção, política de remuneração, não discriminação em posições de comando etc. A NFRD encontra-se em processo de revisão e será substituída pela CSRD, aumentando o número de companhias que devem reportar determinados dados e práticas em seus relatórios e balanços corporativos.

A SFDR, por seu turno, introduz regras para os participantes do mercado e assessores financeiros divulgarem informações em como integram riscos vinculados à sustentabilidade em seu modelo de negócios, com objetivo de reduzir assimetrias informacionais, trazendo mais transparência ao mercado. O regramento aplica-se tanto em nível de entidade (requerendo que companhias financeiras participantes do mercado informem em como a organização como um todo encara estes riscos) e também em nível de produto (companhias devem reportar como seus produtos financeiros são afetados por tais riscos, inclusive o processo de decisão de investimento). Esses riscos englobam de um lado os riscos oriundos de mudanças climáticas (normalmente subdivididos em riscos físicos e de transição), além de considerações de ESG (aspectos ambientais, sociais e de governança).

Por fim, a EU Taxonomy, ou Taxonomia Verde, busca implementar uma lingua franca, um sistema de classificação a fim de se definir se uma atividade econômica é ambientalmente sustentável. A fim de uma atividade econômica ser considerada ambientalmente sustentável ela deve ser submetida a um teste que envolve quatro fases: 1) contribuir substancialmente a um objetivo ambiental; 2) não causar dano significante a nenhum dos outros objetivos ambientais; 3) atender a critérios sociais mínimos; e 4) se adequar aos critérios técnicos de avaliação. Os seis objetivos ambientais são os seguintes: 1) mitigação climática; 2) adaptação climática; 3) uso sustentável e proteção da água; 4) economia circular; 5) prevenção e controle de poluição; e 6) proteção e restauração da biodiversidade e ecossistemas. A Taxonomia Verde estabelece basicamente três tipos de atividades econômicas que podem colaborar com os objetivos ambientais mencionados: 1) atividades de baixo carbono, que per se colaboram para os objetivos de redução de emissão de gases de efeito estufa (por exemplo: parques eólicos e solares); 2) atividades capacitantes (ou seja, atividades que auxiliam diretamente outra atividade que é ambientalmente sustentável, por exemplo: redes de distribuição de energia, os smart grids); e 3) atividades de transição, das quais se espera o maior impacto em termos de  fluxo de investimento. A EU Taxonomy se aplica a companhias tanto financeiras como pertencentes a outros setores econômicos. Pequenas empresas também podem, de modo voluntário, reportar dentro da metodologia já mencionada.

Regulações das finanças dustentáveis como um 'documento vivo'
Estas regulações e diretivas  com o perdão do cliché   são apenas a ponta do iceberg de um processo constante e que alcança gradativas e consistentes obrigações de divulgação de informações (seja em relação a práticas de governança, características de produtos financeiros e alinhamento de atividades econômicas à taxonomia verde) com horizonte de implementação até pelo menos o ano de 2026. Para além dessa tríade de documentos fundantes e com base no Plano de Finanças Sustentáveis de 2018, a Autoridade Bancária Européia (e suas respectivas contrapartes para o mercado de capitais, seguros e pensões), por meio de atos delegados submetidos ao crivo da Comissão Europeia e depois ao Parlamento Europeu, podem emitir uma série de documentos complementares, em especial: 1) normas técnicas regulatórias, ou RTS  Regulatory Technical Standard;  e 2)  critérios técnicos de avaliação, ou TSC  Technical Screening Criteria), a fim de detalhar e trazer mais especifidades, alinhamento e padronização em relação aos elementos, conteúdo e metodologia vinculados à divulgação de dados (transparência) e ao processo de classificação das atividades econômicas como sustentáveis.

No âmbito da SFDR, em fevereiro de 2021 a Autoridade Bancária Europeia, em conjunto com suas outras entidades-espelho, publicou um relatório conjunto contendo padrões regulatórios técnicos em relação ao conteúdo, metodologia e apresentação dos relatórios para os fins da SFDR (JC 2021 03 [5]). Para a EU Taxonomy foi publicado o ato delegado para o clima, adotado em junho de 2021 [C(2021) 2800/3 [6]], contendo a lista de atividades relativas aos dois primeiros objetivos ambientais, id est, a mitigação e adaptação climática. Os documentos são extensos (são dois anexos ao documento principal), e as atividades econômicas são catalogadas com o uso do Nomenclature of Economic Activities (Nace), que basicamente é o sistema europeu de classificação estatística de atividades econômicas. Riscos físicos relativos a eventos climáticos são também listados no documento.

Ainda no âmbito da EU Taxonomy, em julho de 2021 foi emitido um ato delegado [C(2021) 4987 final [7]que descreve em maior detalhe as obrigações constantes do artigo 8 e que se aplica tanto a empresas financeiras e não financeiras, no âmbito da NFRD, e aos participantes do mercado, em relação à SFRD. Nesse ato delegado obrigações de divulgação de dados (reporting) que se aplicam a um número de participantes do mercado, tais como instituições de crédito, gerentes de fundos, seguradoras, são detalhados. Assim, para o ano de 2022, com base no exercício financeiro de 2021, algumas instituições financeiras deverão informar a proporção de exposição de seu portfólio em relação à atividades elegíveis da  taxonomia verde, o denominado Green Asset Ratio.

Com o objetivo de congregar a maior parte dos atores desse ecossistema, foi criada a Plataforma de Finanças Sustentáveis, um órgão consultivo vinculado à Comissão Europeia que possui participantes do mercado e do setor público e que tem papel importante na coordenação das discussões no âmbito das finanças sustentáveis. É importante realçar que as discussões que ocorrem na Plataforma de Finanças Sustentáveis visam a aprimorar o aspecto de supervisão do mercado financeiro. Os aspectos de regulação prudencial também tem importante papel, porém existem iniaciativas no âmbito do Banco Central Europeu, assim como nos Bancos Centrais nacionais, com o objetivo de regular e manter a estabilidade do mercado financeiro europeu. Ambos pilares regulatórios se complementam, e o presente arcabouço regulatório pode ter reflexos também no pilar regulatório.

Existem ainda outros instrumentos jurídicos relevantes para o assunto em tela, tais como a Lei Europeia do Clima (Regulação 2021/1119), vigente desde julho de 2021, e também o Regulamento (EU) 2019/2089, que traz um quadro regulamentar na tentativa de estabelecer requisitos mínimos para os índices de referência da União Europeia para a transição climática e os índices de referência da União Europeia alinhados com o Acordo de Paris a nível da União.

Iluminando o longo caminho ou tornando-o (ainda) mais tortuoso?
O  caminho a ser percorrido por essas regulações, diretivas e documentações técnicas, a fim de que se alcancem seus objetivos de sustentabilidade financeira e transição energética, é longo. Afinal, qual a efetiva função, o alcance e os limites de todo este arcabouço regulatório? Entre as questões que tornam a temática ainda mais complexa, podem ser citadas: 1) a existência de obrigações diversas e variadas  em nível de legislação dos países-membros no campo da sustentabilidade, o que pode causar arbitragem regulatória  id est, participantes do mercado financeiro podem mudar de território em busca de obrigações regulatórias mais leves, inclusive para fora da União Europeia; 2) a potencial existência de abuso regulatório, com consequencias não previstas ou não desejadas, id est, ao invés de um maior fluxo de recursos financeiros a  instrumentos e atividades econômicas qualificadas como ambientalmente sustentáveis, um aumento extraordinário em termos de custos de implementação regulatória, concentrando-se assim o mercado a poucos participantes; 3) a existência de custos sociais e políticos para a implementação de mudanças regulatórias que afetam não apenas o sistema financeiro, mas também outras empresas que fazem parte de outros sub-sistemas econômicos e também o consumidor, especialmente no campo da energia, neste sentido sendo importante papel a discussão a respeito de fontes de energia relativamente não sustentáveis, como a nuclear e o gás natural; 4) o papel da denominada captura regulatória: quanto mais complexa e extensa as regulações, melhor para os atuais participantes do mercado, que podem se adequar rapidamente e, assim, evitam novos entrantes; e, por fim, 5) a atual inexistência de punição para participantes do mercado que não se adequem ao arcabouço regulatório das finanças sustentáveis, ficando essa atribuição sob responsabilidade dos países membros, sendo, atualmente, o aspecto de punição reputacional o mais tangível e observável.  

Com os países ainda sofrendo com a crise pandêmica do SARS-Cov2 e respectivos impactos em seus sistemas de saúde, além do aumento do preço da energia e com inflação crescente na Europa e no mundo, é importante ter-se em mente que todo o marco regulatório das finanças sustentáveis respeita os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos em particular pela Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia. Este pode ser inclusive um princípio basilar também quando analisamos a situação brasileira em relação à sustentabilidade  e que é diferente da europeia, tendo em vista níveis diversos de maturidade institucional bem como de exercício de direitos fundamentais (saúde, habitação, saneamento básico, segurança alimentar). Meu entendimento é o de que prioridades locais devem possuir maior relevância do que abordagems extremamente amplas  a intuição de que harmonização, convergência regulatória e padronização legislativa leva a eficiências alocativas ou comportamentos planejados/desejados dos atores de determinado ecossistema não se aplica a todos setores ou nichos do mercado, muito menos a  países e regiões diferentes, seja devido a path dependence institucional e/ou a um princípio do direito do comércio internacional que também tem aplicação na área da sustentabilidade, qual seja, o princípio das responsabilidades compartilhadas porém diferenciadas. Se desejamos uma transição energética inclusiva, todos estes aspectos deverão ser levados em conta, sob pena do lema da Comissão Europeia de "não deixar ninguém para trás" ser simples expressão jogada ao vento, sem consequência prática.

 


[1] Disponível em EUR-Lex – 32014L0095 – EN – EUR-Lex (europa.eu) Acesso em 05 jan. 2022.

[2] Disponível em EUR-Lex – 52021PC0189 – EN – EUR-Lex (europa.eu) Acesso em 05 jan. 2022.

[3] Disponível em EUR-Lex – 32019R2088 – EN – EUR-Lex (europa.eu) Acesso em 05 jan. 2022.

[4] Disponível em EUR-Lex – 32020R0852 – EN – EUR-Lex (europa.eu) Acesso em 05 jan. 2022.

[5] Disponível em: JC 2021 03 – Joint ESAs Final Report on RTS under SFDR.pdf (europa.eu) Data de Acesso: 05 de janeiro de 2022.

[6] Disponível em EUR-Lex – C(2021)2800 – EN – EUR-Lex (europa.eu) Data de Acesso: 05 de janeiro de 2022.

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