Passaporte de vacinação: questões sobre constitucionalidade (Parte 2)
6 de janeiro de 2022, 9h11
Continuação da Parte 1
5) Uma realidade de fato a enfrentar: liberdade privada que impacta nas liberdades públicas
Sob o ponto de vista prático, não há dúvida de que a exigência de apresentação de certificado ou passaporte de vacinação há de restringir a livre circulação de pessoas e, consequentemente, acabará por elevar o nível de segurança e de prevenção do coronavírus. Tanto é que diversos estados federados, conforme informação da Agência CNN [10], já optaram por exigir em eventos, por exemplo, a apresentação de "certificado de vacinação" ou a sua substituição por exames negativos de infecção. Por sua vez, o Parlamento Europeu e outros 30 países já adotaram o uso de "passaporte da vacina", "certificado verde" ou "coronapass", seja para o ingresso nesses países, ou para ter acesso a ambientes fechados [11]. O Conselho Constitucional Francês, por exemplo, pela Decisão nº 2021-824 DC, de 5 de outubro de 2021, afirmou que tais restrições são válidas exclusivamente por estarmos diante de um estado de urgência sanitária [12].
Sobre o tema, a nossa Suprema Corte, em decisão monocrática recentemente proferida pelo ministro Roberto Barroso, nos autos da ADPF 898 MC/DF [14], decidiu por suspender os efeitos da Portaria MTPS nº 620/2021, que proibia o empregador de exigir documentos comprobatórios de vacinação para a contratação ou manutenção da relação de emprego, pois a portaria equiparava a exigência de documentos a práticas discriminatórias em razão de sexo, origem, raça, entre outros. O ministro Barroso entendeu não haver falar em discriminação quando o que está em jogo é a saúde coletiva. Por outro lado, pela ADPF 756, em 31 de dezembro de 2021, o ministro Lewandowski suspendeu o "despacho de 29 de dezembro de 2021 do Ministério da Educação, que aprovou o Parecer 01169/2021/CONJURMEC/CGU/AGU, proibindo a exigência de vacinação contra a Covid-19 como condicionante ao retorno das atividades acadêmicas presenciais".
Em resumo: não pode haver discriminação negativa de acesso a cargos e empregos por questão sanitária, mas existe, sim, a possibilidade de se exigir comprovantes sanitários para fins de garantia de proteção da comunidade de trabalhadores, como por exemplos os professores. O passaporte vacinal para entrar e sair dos países nada mais é do que o correlato documental do mesmo fenômeno.
Se por um lado não existe vacinação à força, a exemplo do que ocorreu na revolta da vacina da varíola em 1904, as cortes de Justiça têm rechaçado medidas públicas que impeçam os corpos intermediários e as categorias profissionais públicas e privadas de se autoprotegerem. O mundo pós-Covid é um novo cenário no qual vacinados e não vacinados irão, sim, conviver, sem que os segundos imponham seu contato aos primeiros sem um mínimo de garantias sanitárias. Não existe o privilégio de ir e vir para qualquer lugar se e quando isto puder gerar riscos para a coletividade presente. O poder público não é segurador universal, mas tem o dever de fornecer os mecanismos de proteção e informação que melhor protejam a população no estado da arte para o momento presente. A exigência de passaporte vacinal é medida juridicamente válida que se contém nos limites da Constituição do Brasil.
6) Conclusões
Não há dúvida de que, qualquer que seja o resultado em termos normativos, o resultado deve levar em consideração três objetivos: realizar controle sanitário, a fim de garantir o direito à saúde da população; reduzir o tempo de vida da pandemia; e evitar que haja a necessidade de serem adotadas medidas ainda mais restritivas de direitos fundamentais, como é o caso do lockdown.
Há outros argumentos metajurídicos que o Direito precisa considerar. A decisão de uma pessoa de não se vacinar não impõe riscos somente a si mesma. Isso porque, como se sabe, algumas vacinas previnem a infecção sintomática a níveis que podem chegar a 95% dos casos [15]. Em relação aos não vacinados, essa decisão, em verdade, também gera efeitos coletivos [16] ao colocar em risco até mesmo os vacinados, que podem acabar se reinfectando [17].
Alguns poderiam, por outro lado, afirmar: a porcentagem dos vacinados de serem infectados por não vacinados é mínima e, por isso, seria desproporcional impedir os não vacinados de gozarem suas liberdades constitucionais, como o direito à liberdade de ir e vir, de exercer atividade econômica, atividade laboral e até mesmo de participar de cultos. Ocorre que se centenas de milhões de indivíduos forem rotineiramente expostos a indivíduos não vacinados, muitos — provavelmente muitos milhares de pessoas — acabarão por ser infectados e, então, uma considerável fração daqueles poderão sofrer efeitos colaterais graves que poderão levá-los à morte.
Não se olvide, ainda, que quando os não vacinados transmitem o vírus para outras pessoas, a pandemia acaba por se prolongar, aumentando até mesmo a probabilidade de que haja o desenvolvimento de novas variantes. E isso tudo ocasionando nefastas consequências econômicas, que continuam a estrangular a vida das pessoas e os cofres públicos. Daí nossa preocupação sobre como compatibilizar as liberdades públicas de locomoção e saúde de vacinados e não vacinados.
A nova portaria interministerial, que consolida e cumpre importantes decisões judiciais sobre o tema, consagra o estado da arte, mas não garante que a restrição de locomoção não possa gerar problemas econômicos adicionais que influenciem transversalmente no combate à pandemia. A vacinação obrigatória precisa ser operacionalizada, estimulada e fiscalizada como meio de ampliar a retomada das atividades econômicas, sociais e culturais, e ao mesmo tempo preservar a saúde pública e o direito fundamental à saúde e à vida de cada um dos cidadãos brasileiros.
[10] Vide matéria disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/covid-19-o-que-voce-precisa-saber-sobre-o-passaporte-da-vacina/. Acesso em 20.11.2021.
[11] Exemplos, vide, matéria disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/saiba-que-paises-estao-adotando-passaporte-da-vacina-para-suspender-restricoes/. Aceso em 20.11.2021.
[12] Dizem os comentários que integram o referido acórdão do Conselho de Estado: "Le Conseil a également relevé que ces mesures ne peuvent être prononcées et mises en oeuvre que dans le cadre de l’état d’urgence sanitaire.". Disponível em chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/viewer.html?pdfurl=https%3A%2F%2Fwww.conseil-constitutionnel.fr%2Fsites%2Fdefault%2Ffiles%2Fas%2Froot%2Fbank_mm%2Fdecisions%2F2021824dc%2F2021824dc_ccc.pdf&clen=582990&chunk=true. Acesso em 08.12.2021.
[13] Documento emitido em 28 de maio de 2021. Disponível em https://www.eeoc.gov/newsroom/eeoc-issues-updated-covid-19-technical-assistance. Acesso em 21.11.2021.
[14] DIREITO CONSTITUCIONAL DO TRABALHO. DIREITO À SAÚDE. ARGUIÇÕES DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. PANDEMIA DE Covid-19. PORTARIA MTPS Nº 620/2021. VEDAÇÃO À EXIGÊNCIA DE VACINAÇÃO. ATO INFRALEGAL. INCONSTITUCIONALIDADE. 1. A Portaria MTPS nº 620/2021 proíbe o empregador de exigir documentos comprobatórios de vacinação para a contratação ou manutenção da relação de emprego, equiparando a medida a práticas discriminatórias em razão de sexo, origem, raça, entre outros. No entanto, a exigência de vacinação não é equiparável às referidas práticas, uma vez que se volta à proteção da saúde e da vida dos demais empregados e do público em geral. 2. Existe consenso médico-científico quanto à importância da vacinação para reduzir o risco de contágio por Covid-19, bem como para aumentar a capacidade de resistência de pessoas que venham a ser infectadas. Por essa razão, o Supremo Tribunal Federal considerou legítima a vacinação compulsória, não por sua aplicação forçada, mas pela adoção de medidas de coerção indiretas. Nesse sentido: ARE 1.267.879, Rel. Min. Luís Roberto Barroso; ADIs 6.586 e 6.587, Rel. Min. Ricardo Lewandowski. 3. É da natureza das relações de trabalho o poder de direção do empregador e a subordinação jurídica do empregado (CF, artigo 7º c/c CLT, arts. 2º e 3º). O descumprimento, por parte do empregado, de determinação legítima do empregador configura justa causa para a rescisão do contrato de trabalho (CLT, artigo 482, h). É importante enfatizar que constitui direito dos empregados e dever do empregador a garantia de um ambiente de trabalho seguro e saudável (CF/1988, artigo 7º, XXII, e artigo 225). 4. Acrescente-se, ainda, que a extinção da relação de trabalho, mesmo sem justa causa, é um direito potestativo do empregador, desde que indenize o empregado na forma da lei (CF/88, artigo 7º, I). Do mesmo modo, a atividade empresarial sujeita-se à livre iniciativa e à liberdade de contratar, competindo ao empregador estabelecer estratégias negociais e decidir sobre os critérios de contratação mais adequados para sua empresa (CF, artigo 170). 5. Ato infralegal, como é o caso de uma portaria, não é instrumento apto a inovar na ordem jurídica, criando direitos e obrigações trabalhistas (CF, artigo 5º, II). Tampouco pode limitar o sentido e alcance de normas constitucionais. Até mesmo a lei encontra limites na restrição de princípios e direitos fundamentais. 6. Note-se, por fim, que o reconhecimento da inconstitucionalidade de dispositivos da portaria apenas restabelece o direito do empregador de rescindir o contrato de trabalho. Não significa, porém, que ele deva necessariamente fazê-lo, cabendo-lhe ponderar adequadamente as circunstâncias do caso concreto. 7. Deferimento da cautelar, para suspender os dispositivos impugnados. Fica ressalvada a situação das pessoas que têm expressa contraindicação médica à vacinação, fundada no Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19 ou em consenso científico, hipótese em que se deve admitir a testagem periódica.
[15] O que significa que cerca de 5% das doenças sintomáticas não são prevenidas, cf. Estudo científico denominado "Covid-19 Vaccines and Vaccination, CDC (July 27, 2021)". Disponível em: https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/science/science-briefs/fully-vaccinated-people.html. Acesso em 20.11.2021.
[16] "Os cidadãos precisam sentir segurança no atuar da Administração Pública. Se estão em situação de emergência, é legítima a expectativa de que alguém vá agir em seu socorro com as forças de propriedade da coletividade. A emergência pode gerar atropelos e desrespeito a direitos, no afã de bem curar do interesse coletivo. Os prejudicados terão sua indenização e os infratores serão responsabilizados no caso de abuso. Tudo para que os carentes sejam socorridos rapidamente." Cf. Georghio Tomelin, em "Escassez geral nas catástrofes: cidadãos sufocados pelas prerrogativas da administração pública", na obra coletiva "As consequências da Covid-19 no Direito Brasileiro", coord. Warde e Valim, Editora ContraCorrente, 2020.
[17] Aliás, conforme estudo desenvolvido por cientistas britânicos da Universidade de Oxford, as pessoas que foram vacinadas contra o Covid-19 possuem muito menos probabilidade de espalhar o vírus, ainda que se encontrem infectadas. Vide estudo denominado "Impact of vaccination on household transmission of SARS-COV-2 in England": Disponível em https://khub.net/documents/135939561/390853656/Impact+of+vaccination+on+household+transmission+of+SARS-COV-2+in+England.pdf/35bf4bb1-6ade-d3eb-a39e-9c9b25a8122a?t=1619601878136. Acesso em 20.11.2021.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!