Direitos na balança

Justiça dos EUA pesa privilégio advogado-cliente contra liberdade de imprensa

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1 de janeiro de 2022, 16h48

O juiz Charles Wood, de um tribunal do Condado de Westchester no estado de Nova York, tomou uma decisão sem precedentes: mandou o jornal The New York Times devolver as cópias físicas e destruir quaisquer versões eletrônicas de alguns memorandos escritos por uma advogada para os dirigentes do grupo conservador Project Veritas — depois de já haver decidido, no início de dezembro, proibir o jornal de publicá-los, temporariamente.

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A decisão abriu um confronto, que deverá percorrer todas as instâncias da Justiça no estado, entre os direitos dos jornalistas e os direitos dos advogados. O juiz se posicionou a favor do direito dos advogados de preservar a confidencialidade de suas relações com os clientes e o respeito ao privilégio advogado-cliente, como reclamou o Project Veritas.

O New York Times pediu ao juiz para rever a decisão anterior de proibir a publicação dos documentos, alegando que a censura viola o direito dos jornalistas à liberdade de expressão, previsto na Primeira Emenda da Constituição, bem como a liberdade da imprensa. Em vez disso, o juiz mandou devolver os memorandos e instruiu o jornal a "cessar quaisquer esforços para solicitar ou adquirir" tais documentos.

Para entender a disputa
O Project Veritas processou o New York Times em 2020 por difamação. O jornal havia exposto, em uma reportagem, o que chamou de "táticas enganosas" do Project Veritas, um grupo conservador-republicano, para desmoralizar a mídia liberal, campanhas democráticas, organizações trabalhistas e outras entidades. Tais táticas incluíam gravações secretas de áudio e produção de vídeos para divulgação, além do uso de identidades falsas.

Na reportagem, o jornal informou que os memorandos jurídicos mostravam como os dirigentes da organização trabalhavam com seus advogados, para "avaliar até onde poderiam ir em suas práticas enganosas, sem entrar em conflito com leis federais", segundo o próprio NY Times.

O Project Veritas se declarou uma organização jornalística, protegida pelos direitos assegurados aos órgãos de imprensa pela Primeira Emenda da Constituição — declaração que foi contestada pela American Civil Liberties Union (ACLU), segundo o NY Times.

Argumentos contraditórios
O jornal argumentou que os memorandos foram obtidos no processo normal de coleta de informações para reportagens — e não dos autos do processo judicial, nem do processo de discovery, em que as partes produzem provas antecipadamente. Assim, segundo o jornal, não houve violação do privilégio advogado-cliente.

O juiz contestou: "Não se pode permitir que a fidelidade firme e a vigilância para proteger as liberdades da Primeira Emenda revoguem as proteções fundamentais do privilégio advogado-cliente ou o direito básico à privacidade".

O NY Times defendeu o direito do público de ser informado. "Quando uma corte silencia o jornalismo, ela mina o direito de saber dos cidadãos. A Suprema Corte decidiu, no caso do Pentagon Papers, que não se pode bloquear a publicação do jornalismo noticioso". O caso se refere a uma ação movida pelo ex-presidente Nixon contra o NY Times, em 1971, para impedir a divulgação de documentos do Pentágono que detalhavam o envolvimento militar dos EUA no Vietnã.

Para o juiz, os memorandos do Project Veritas não são matéria de interesse público e que o grupo tem o direito de mantê-los em sua esfera privada, o que sobrepuja as preocupações sobre a liberdade de imprensa. "Sem dúvida, a imprensa acredita que tudo o que publica é de interesse público. Mas algumas coisas não são destinadas à consideração e ao consumo do público."

"O NY Times é perfeitamente livre para investigar, revelar, pesquisar, entrevistar, fotografar, gravar, relatar, publicar, opinar, expor ou ignorar quaisquer aspectos do Project Veritas que seus editores considerarem, a seu único critério, notícia valiosa, sem utilizar memorandos protegidos pelo privilégio advogado-cliente do Project Veritas", escreveu o juiz.

O editor do NY Times, A.G. Sulzberger, declarou que a decisão do juiz de obrigar o jornal a devolver as cópias físicas e as versões digitais dos memorandos e de proibir o jornal de tentar obter mais documentos dos Project Veritas para suas reportagens não tem precedentes. O jornal anunciou que irá recorrer a um tribunal de recursos do estado.

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