Opinião

Radiação ionizante: um olhar técnico e isento sobre seu tratamento jurídico

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28 de fevereiro de 2022, 6h33

São corriqueiras as discussões científicas e de políticas de Estado em torno de benefícios e de riscos associados à radiação ocupacional. Como tudo, o tema não escapa ao exame do Poder Judiciário, em avaliações abstratas ou concretas.

O assunto ganhou holofote com o acórdão prolatado em 2021 que denegou o mandado de segurança [1] impetrado pela Indústria Nucleares do Brasil S.A. (INB) contra a decisão do juiz da 20ª Vara do Trabalho de São Paulo-Zona Sul, prolatada nos autos da ação civil pública ajuizada pela Associação Nacional dos Trabalhadores da Produção de Energia Nuclear-Brasil (ANTPEN) em face da empresa Nuclemon.

Para contextualizar, em primeiro grau, ainda sem produção de provas, em especial de necessária e imprescindível perícia técnica, foi parcialmente deferida tutela de urgência para que a Nuclemon (incorporada pelas Indústrias Nucleares do Brasil  INB) fornecesse e custeasse, de forma integral, plano de saúde aos ex-empregados. É interessante observar, da decisão liminar prolatada pelo juiz singular, a referência ao elemento externo do contexto atual de pandemia da Covid-19, que inspiraria maiores cuidados e atenção com a saúde:

"(…) Nesse passo, diante das peculiaridades do Covid–19 e, sobretudo, ciente de que a maior parte dos trabalhadores conta com mais de 50 anos, bem como padece de alguma enfermidade de fundo respiratório e/ou de alguma outra patologia que os tornam vulneráveis devido à fragilidade do sistema imunológico, o caso dos autos se torna ainda mais delicado, principalmente no que se relaciona à necessidade desses trabalhadores quanto à concessão e manutenção de assistência médica por meio da presente medida.
Os sérios impactos causados pela exposição a material radioativo, aliados ao contexto atual de epidemia, revelam a necessidade urgente de se assegurar assistência médica a esses trabalhadores".

Por sua vez, quando da insurgência da INB, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (E.TRT-2ª Região) denegou a segurança, sob o entendimento de que a documentação dos autos traria indícios de verossimilhança das alegações (fumus boni iuris), notadamente de que as enfermidades apontadas possuiriam relação com a exposição dos ex-empregados da Nuclemon à radiação ionizante, sobretudo porque os efeitos deletérios daí decorrentes podem eclodir tardiamente.

Não parece ser discussão isolada. É sabido que o meio ocupacional e as lides dele decorrentes têm fartos exemplos de polêmicas envolvendo: 1) critérios para uso seguro de produtos químicos ou minerais; e 2) questões atreladas à radiação, fruto de históricos e traumáticos episódios como os de Goiânia, Chernobyl ou Fukushima.

Por essa razão, e em vista da forte pressão popular, alguns desses elementos, como a radiação, foram abordados nas normas regulamentadoras (Portaria 3.214/1.978), de modo a lhes garantir tratamento diferenciado.

Em 2005, o então Ministério do Trabalho e Emprego (atual Ministério do Trabalho e Previdência) publicou norma específica para serviços na área da saúde, a NR-32, visando a estabelecer diretrizes básicas para a implementação de medidas de proteção à segurança e à saúde dos trabalhadores dos serviços de saúde. A norma, além dos regulamentos da CNEN e Anvisa, orienta o uso e controle das fontes de radiação, bem como o controle dos equipamentos emissores de radiação; atribui responsabilidades e estabelece procedimentos de fiscalização para seus respectivos agentes.

De acordo com a NR-32, em razão de o período de latência de algumas moléstias relacionadas a eventual exposição à radiação, é dever do empregador manter o registro individual atualizado, com o prontuário médico, de cada trabalhador por 30 anos após o término de sua ocupação [2]. A cautela seria justificada diante dos efeitos maléficos da radiação no corpo, principalmente o potencial cancerígeno da radiação [3], sem a necessária e adequada proteção.

Deve-se ter em mente, contudo, que, ao contrário do que se concebe na visão trivial, a mera exposição à radiação não significa, necessariamente, desenvolvimento de mazelas ocupacionais. O doutor Robert Peter Gale, em seu notável livro "Radiation: What it is, What you need to know", desmitifica o assunto com uma série de didáticos exemplos:

"(…) Quando um jogador joga uma bola de basquete na cesta, o número de pontos ganhos pode variar. Um arremesso livre vale um ponto, um arremesso de dentro do garrafão vale dois pontos e um de fora dessa área vale três. O placar da equipe em um jogo não é o número de vezes que a bola passa pela cesta, mas o total de pontos concedidos por essas cestas. O mesmo vale para a medição da radioatividade: a quantidade a que você é exposto não é necessariamente a quantidade que absorverá, e isso não está necessariamente correlacionado de forma direta à quantidade de danos. Determinar o placar final dos danos significa ponderar e equilibrar vários fatores.
Se houver uma correlação direta entre a quantidade específica de exposição e o aparecimento da doença, um gráfico simples pode esclarecer as coisas para você. Porém a relação entre radiação e doença não é tão simples" [4].

Esclarece, ainda, o especialista com incomparável experiência internacional que, ao versar sobre radioatividade, é preciso levar em consideração não somente a dose de eventual exposição, mas também as características pessoais, genéticas e pregressas do indivíduo:

"(…) Porém as coisas não são simples assim. Para qualquer dose de radiação, o risco de contrair câncer também depende da idade da pessoa no momento da exposição, tempo de vida remanescente estimada, exposição a outros agentes causadores de câncer (como fumantes), problemas de saúde existentes que podem ser exacerbados pela radiação e outras variáveis complicadas. De maneira simples, as implicações para um idoso de oitenta anos exposto a uma dada dose de radiação são inteiramente diferentes daquelas da exposição de uma criança de três anos à mesma dose" [5].

A questão prática enfrentada por várias empresas que utilizam substâncias especiais em seu processo produtivo se dá justamente quando o assunto é judicializado. A recorrente desinformação técnica, aliada à ausência de peritos e especialistas preparados, prejudicada por preconceitos e receios, acaba muitas vezes por resultar em perícias incompletas e equivocadas. Nessa toada, alerta o doutor Robert Peter Gale:

"Tais informações, dadas às pessoas que não sejam cientistas ou físicos especializados, não acrescentam muito, na melhor das hipóteses, ou são enganosas, na pior, e são, ao mesmo tempo, confusas e simplistas" [6].

Logo se vê que o debate acerca da radiação deve situar-se na esfera técnica, distanciando-se de meras ideologias e teorias incompatíveis com a sua própria natureza, tal como a falácia do risco zero.

Em seu papel de pacificador de agruras, o Poder Judiciário deve estar preparado e contar com peritos e auxiliares técnicos altamente especializados e capacitados que, ao analisar o caso concreto, façam uma análise completa e baseada na ciência para, somente assim, possibilitar um resultado preciso e isento, proporcionando a entrega da tutela, em sua melhor medida, aos jurisdicionados.

Em tempos incertos e de crescente polarização, a ciência mais uma vez é a chama que deve prevalecer como meio concreto de evolução tecnocientífica. Mas não só. Ao lado da ciência, é dever a conscientização e a educação continuada dentro das instituições e empresas acerca dos riscos e das práticas cotidianas para o desempenho de atividades que envolvam esses elementos, permitindo um conhecimento suficiente que se transforme em ações seguras de prevenção e cuidado, o que, em um só tempo, será responsável por otimizar processos produtivos e mitigar consequências ocupacionais.

 


[1] Mandado de Segurança nº 1001082-72.2020.5.02.0000, desembargador relator Marcos César Amador Alves integrante da Seção Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. DJE. 17.12.2020.

[2] "32.4.7. Cada trabalhador da instalação radiativa deve ter um registro individual atualizado, o qual deve ser conservado por 30 anos após o término de sua ocupação, contendo as seguintes informações:
 a) identificação (Nome, DN, Registro, CPF), endereço e nível de instrução;

b) datas de admissão e de saída do emprego;
c) nome e endereço do responsável pela proteção radiológica de cada período trabalhado;
d) funções associadas às fontes de radiação com as respectivas áreas de trabalho, os riscos radiológicos a que está ou esteve exposto, data de início e término da atividade com radiação, horários e períodos de ocupação;
e) tipos de dosímetros individuais utilizados;
f) registro de doses mensais e anuais (12 meses consecutivos) recebidas e relatórios de investigação de doses;
g) capacitações realizadas;
h) estimativas de incorporações;
i) relatórios sobre exposições de emergência e de acidente;
j) exposições ocupacionais anteriores a fonte de radiação".

[4] Robert Peter Gale, MD e Eric Lax. Radiation: What is? What you need to know. SCIENCE. Pg. 808. Tradução juramentada Cristina Gonzales. Tradução 7776.

[5] Bis in idem.

[6] Bis in idem.

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