Opinião

O que diz a lei penal sobre o 'caso Robinho'

Autor

  • Camila de Assis Santana Silva

    é advogada criminalista do escritório Kehdi & Vieira Advogados especialista em Direito Penal Econômico e Corporativo pelo Instituto de Direito Público de São Paulo (IDP-SP) pós-graduanda em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) associada ao Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e membro da Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp).

27 de fevereiro de 2022, 17h21

O recente pedido de extradição do jogador Robinho, apresentado pelo Ministério Público de Milão ao Ministério da Justiça italiano, reacende discussões no tocante ao cumprimento da pena privativa de liberdade imposta ao esportista pela prática do crime de violência sexual em grupo contra uma mulher albanesa, em 2013: nove anos de prisão e pagamento de multa no valor de 60 mil euros.                              

Apesar da solicitação feita pela Itália, por se tratar de brasileiro nato e considerando que o jogador se encontrava no Brasil quando houve o trânsito em julgado da decisão, não há dúvidas sobre a impossibilidade de extradição do jogador para o resgate de sua pena em solo italiano, conforme vedação trazida pelo artigo 5º, LI, da CF/88, que não comporta exceções. Ou seja, enquanto permanecer em território brasileiro, não poderá o nosso governo entregá-lo ao Estado italiano, por vedação expressa da nossa Constituição Federal.

Apenas seria possível a sua prisão pelo governo estrangeiro caso o jogador se apresentasse espontaneamente às autoridades italianas ou às de algum país que assina o pacto para atuação da Polícia Internacional (Interpol). A esse respeito, também foi expedido, recentemente, mandado de prisão internacional em desfavor do atleta.

Seria possível também ventilar a possibilidade de homologação da sentença condenatória italiana pela Justiça brasileira para que a pena de prisão fosse cumprida no Brasil. Em uma leitura rápida do Código Penal, nos parece ser uma opção vedada, uma vez que o Código Penal veda a homologação da sentença estrangeira para o cumprimento, no Brasil, de pena privativa de liberdade, conforme disposto no seu artigo 9º, que autoriza apenas a homologação no Brasil para obrigar o condenado à reparação do dano, a restituições e a outros efeitos civis; ou para sujeitá-lo a medida de segurança.

Nesse ponto, restaria a dúvida se seria cabível apenas a homologação da pena de multa aplicada ao jogador (60 mil euros). Caso isso ocorra, nos parece que surgirão imediatamente porta-vozes que questionarão a eficiência/fragilidade da legislação penal e seu viés contra punitivo.

Ocorre que a Lei de Migração (nº 13.445/2017) parece ter autorizado a homologação de sentença penal estrangeira quando o objetivo for o cumprimento da pena no Brasil pelo condenado. Isso seria possível por meio do instituto chamado transferência de execução da pena (TEP), previsto nos artigos 100 a 102 daquela lei. Com efeito, ao invés de cumprir a pena privativa de liberdade no estrangeiro, a sentença seria homologada no Brasil para que o condenado cumpra aqui a sanção imposta.

Essa hipótese acende a discussão em torno de eventual pedido das autoridades italianas às brasileiras, no futuro. Primeiramente, surge uma questão de eficácia temporal da lei: há dúvidas sobre a aplicação do referido instituto no caso da condenação contra Robinho, já que a Lei de Imigração foi editada em 2017, enquanto o crime ocorreu em 2013.

A incidência da TEP em crimes cometidos antes de sua vigência parece trazer uma situação muito mais gravosa à pessoa condenada. Assim, se considerarmos tratar-se de uma norma de natureza puramente penal (já que altera uma regra do Código Penal), ela não poderia retroagir quatro anos, para alcançar um crime cometido em 2013, porque a lei penal não pode retroagir para prejudicar o agente (artigo 5º, XL, da Constituição Federal).

Contudo, caso ela seja entendida como norma de natureza processual, ou seja, que versa sobre os procedimentos, sua aplicação seria imediata e recairia no caso do atleta. Outro ponto de debate que merece ser mencionado diz respeito à aparente proibição da execução de medidas restritivas da liberdade pessoal e da execução de condenações, inscrita no artigo 1.3 do Decreto nº 862/93, que versa sobre a Cooperação Judiciária em Matéria Penal entre Brasil e Itália.

A questão que se põe é: essa vedação limitar-se-ia ao seu manejo no âmbito dos pedidos de cooperação jurídica internacional ou tratar-se-ia de proibição absoluta, sobrepondo-se, inclusive, à promessa de reciprocidade e à possibilidade de entrega de pessoas para a execução de pena restritiva de liberdade pessoal previstas no tratado de extradição entre aqueles países (Decreto nº 863/93)?

O mesmo raciocínio pode ser aplicado em relação às disposições trazidas no artigo 9º do Código Penal. A princípio, as homologações de sentença estrangeira estariam limitadas à reparação do dano, a restituições e a outros efeitos civis, como já pontuado, o que levanta discussões sobre o seu uso nas hipóteses de execução de penas restritivas de liberdade.

Ao que parece, não se trata de vedação absoluta, mas apenas limites para o uso do instrumento da cooperação, que se restringiria à carta rogatória e ao auxílio direto, os quais visam a cumprir tão-somente atos de comunicação processual (citações, intimações e notificações), atos de investigação ou instrução (oitivas, obtenção de documentos, quebra de sigilo bancário, quebra de sigilo telemático etc.) ou ainda algumas medidas de constritivas de ativos, como bloqueio de bens ou valores no exterior.

Ou seja, tal previsão não impediria, aparentemente, o trâmite das medidas de cunho compulsório relativos à extradição e à transferência de pessoas condenadas. Feitas essas primeiras considerações, e considerando, para fins de debate, que a Lei de Imigração poderia ser aplicada, passa-se ao segundo ponto de discussão: a presença (ou não) dos requisitos exigidos para a transferência de execução da pena.

Nesse ponto, entende-se que o referido instituto se aplica, a princípio, apenas nos casos em que é permitida a extradição executória (cumprimento da pena já imposta definitivamente). Contudo, já se verificam vozes conflitantes.

Alguns entendem que esse requisito, por si só, já tornaria impossível a transferência da execução da pena, já que a naturalidade brasileira do jogador é originária, enquanto a Lei de Imigração regulamentaria apenas os direitos e deveres de migrantes e visitantes (no caso de brasileiros, portanto, apenas quando se tratasse de naturalidade adquirida, em situações restritivas: caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, conforme artigo 5º, LI, da Constituição Federal).

Outros, por sua vez, entendem que a Lei de Migração autorizaria a hipótese de transferência de execução de pena para todos os casos em que a extradição não é possível devido à nacionalidade. Para essa corrente, portanto, a naturalidade originária de Robinho não seria óbice à apresentação de eventual pedido do Estado italiano.

Superados tais pontos de discussão, há outros aspectos que podem ser objetos de análise, tal como o tipo do crime e a sua duração, mas que não são alvo de controvérsias. Tanto na Itália quanto no Brasil, a conduta imputada ao jogador constitui um ilícito penal. No Brasil, o crime cometido por Robinho encontra-se definido no artigo 217-A, §1º, c.c. o artigo 226, IV, "a", do Código Penal, como estupro coletivo de vulnerável: "Manter conjunção carnal com alguém que, por qualquer causa, não pode oferecer resistência". A pena será aumentada de um terço a dois terços se o crime for praticado mediante o concurso de dois ou mais agentes.

A pena aplicada também está dentro dos parâmetros exigidos para a transferência de pessoa condenada. A Lei de Imigração exige o mínimo de um ano de pena a ser cumprida, enquanto a pena aplicada ao jogador é muito superior. Sendo assim, tal requisito também estaria preenchido.

Feitas essas considerações, portanto, nos parece uma tarefa precipitada tentar prever o futuro do atleta. Até o momento, apenas é possível assegurar a impossibilidade de sua extradição.

É interessante perceber que há raríssimos precedentes aqui no Brasil nos quais possamos nos amparar para lançarmos nossas apostas com relação à hipótese de transferência do cumprimento da pena. Há uma recente (e isolada) decisão do Superior Tribunal de Justiça que autorizou a transferência da execução da pena privativa de liberdade em um caso de condenação de um brasileiro nato pela Justiça portuguesa à pena de 12 anos de prisão pela prática dos crimes de roubo, rapto e violação de burla informática, a pedido daquele Estado. O caso aconteceu no ano de 2012, ou seja, antes da edição da Lei de Imigração. Contudo, o STJ não analisou a questão da aplicação temporal da Lei.

O ministro Humberto Martins, na oportunidade, fez uma análise objetiva da presença dos pressupostos estabelecidos no artigo 100 da Lei nº 13.445/2017, e autorizou a aplicação do instituto, não considerando a sua naturalidade brasileira originária como obstáculo: "No caso, como bem salientado pelo parquet, verifica-se que o condenado é nacional e tem residência do Brasil (fls. 57-58), a decisão estrangeira transitou em julgado (fl. 49), a duração da condenação a cumprir é de quatro anos de prisão efetiva (fls. 10-46), os fatos que originaram a condenação constituem infração penal perante a lei brasileira (artigos 148 e 157 do CP) e há tratado firmado entre o Brasil e Portugal, promulgado no Brasil pelo Decreto nº 8.049/2013, além da promessa de reciprocidade" (STJ, decisão monocrática, HDE 5175, DJe 22/04/2021).

Após o julgamento pelo STJ, o caso foi remetido à Justiça Federal, onde houve a autuação do respectivo processo de execução penal perante a Vara de Execução Penal de Goiânia e a expedição de mandado de prisão contra o condenado, que se encontra recolhido atualmente em uma unidade penitenciária estadual.

A esse respeito, enquanto aguardamos a declaração do governo brasileiro sobre a proibição de entrega do atleta para cumprimento de pena em solo estrangeiro, com relação ao pedido de extradição já apresentado, nos parece que persistirão os debates sobre a eventual requerimento de transferência de execução da pena pelo Estado italiano para que a punição seja aqui cumprida.

Trata-se de caso que, sem sombra de dúvidas, além de reacender os limites do instituto da extradição, traçará importantes contornos à aplicação do instituto de transferência de execução da pena, e se manterá sob os olhares atentos não só da comunidade jurídica, mas de todo a mídia nacional e internacional.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!