Diário de Classe

Por um constitucionalismo adequado aos desafios atuais

Autor

  • Victor Bianchini Rebelo

    é mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio Sinos (Unisinos-RS) bolsista Proex/Capes membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e advogado.

26 de fevereiro de 2022, 8h00

Em um Diário de Classe carnavalesco, nada mais justo do que abordar um tema indissociável da palavra “popular” — a legitimidade — dentro do constitucionalismo.

Não apenas obras jurídicas e filosóficas abordam o tema da legitimidade popular. Em Por que as nações fracassam, o olhar econômico de Daron Acemoglu e James A. Robinson demonstra que instituições representativas, para serem compreendidas como legítimas e democráticas, precisam gerar incentivos que garantam uma confiança mínima dos cidadãos que compõem a comunidade política.[1]

Dentre esses incentivos estão o respeito e a proteção dos direitos individuais mínimos que impeçam o desenvolvimento de um Estado elitista que explore política e economicamente sua população. Um constitucionalismo adequado faz parte dessa equação desenvolvida pelos autores, que cumpre o que se propõe já de antemão no título da obra: explicar porque certas nações fracassaram enquanto outras prosperaram.

Uma questão mais delicada e difícil de responder, por outro lado, é a de como criar esses incentivos para que populações de países que, em tese, já são prósperos continuarem acreditando que a democracia ainda é o melhor instituto disponível para deliberação de conflitos políticos e como fazer florescer essa crença em países de baixa densidade democrática, onde as promessas da modernidade não foram sequer cumpridas.[2]

Recentemente, algumas obras como Sobre a tirania: XX lições do século XX para o presente[3] e Como as democracias morrem[4] trilharam o mesmo caminho “negativo” de Por que as nações fracassam, com alguns breves ensaios de como não se deve lidar com o autoritarismo contemporâneo, mas as saídas apresentadas pelos autores são conhecidas e, ainda que importantes, o momento atual nos faz pensar se agora não haveria algo sem precedentes.[5]

O Constitucionalismo Contemporâneo se encontra imbricado dentro dessa “missão negativa”, de conter o autoritarismo, via mecanismos contramajoritários, mas também se coloca necessariamente como mecanismo “positivo”, pois pretende fundar normativamente sociedades abertas, dentro do contexto da democracia liberal. Por isso, a importância de (re)pensar um constitucionalismo democraticamente adequado aos tempos atuais, algo que o jusfilósofo Jeremy Waldron pretendeu fazer ao desenvolver sua provocação em favor de uma democratic jurisprudence.[6]

O cientista político Yascha Mounk, contudo, em sua obra O povo contra a democracia, quis explicar também como salvar as instituições democráticas da ruína “nacional-populista”,[7] termo guarda-chuva que utiliza para descrever movimentos e lideranças de extrema-direita que vêm tomando conta do cenário eleitoral em diversos países.[8] A diferença é que o autor parece ter um cuidado maior do que os demais citados — com a exceção de Waldron — com o aspecto da legitimidade popular como fator preponderante para salvaguardar a democracia e suas instituições.

Mounk define como principal problema a ser solucionado — a partir de exemplos de nações desenvolvidas, subdesenvolvidas ou em desenvolvimento — a dificuldade que as instituições enfrentam hoje para se consolidar como uma “democracia liberal”. Para ele, as nações se desenvolveram ao longo da História como “democracias sem direitos” (democracy without rights) ou estados de direito que não atendem aos requisitos básicos de uma democracia (rights without democracy).

O autor “receita” uma série de soluções (remedies) para tratar dessa “doença” da derrocada democrática. Cita como saídas principais a “domesticação” do nacionalismo, o ajuste econômico e a renovação da fé e da esperança cívica. A questão econômica denunciada por Mounk se mostra de acordo com o alerta presente na obra Por que as nações fracassam, pois se a população não confia que o Estado irá respeitar os direitos mais básicos, como a propriedade e a livre-iniciativa, há grandes chances de grupos radicalizados se revoltarem contra a elite exploradora e, ao fim e ao cabo, atenderem à lógica da “teoria da ferradura”, sobre a qual Acemoglu e Robinson alertam, onde um governo que representa um extremo ideológico é substituído pelo outro, que representa o polo oposto, apenas para repetir as mesmas práticas deletérias do governo anterior, sem podermos diferenciá-los de fato.

É necessário, portanto, ao analisar essas obras, considerar o contexto histórico de exploração que acometeram países fora do eixo Norte Global. Enquanto a desigualdade pode ser perfeitamente explicada pelas questões de “conjunturas críticas” e pela teoria institucional descrita na obra Por que as nações fracassam, a erosão democrática e institucional parece mais complexa e vai um pouco além, uma vez que, mesmo nas nações que “não fracassaram”, a questão do desrespeito a instituições democráticas já é um problema real. Daí a necessidade holística de olhar para o constitucionalismo e a democracia como um todo, não apenas sob o viés econômico, mas também não apenas sob o viés jurídico e normativo.

Dessa forma, a obra Capitalismo sem rivais,[9] de Branko Milanovic, se mostra elucidativa, pois trata dos efeitos sociais que o capitalismo e a globalização têm sobre as instituições — e o faz de maneira analítica. O fato de a migração ter se tornado alicerce para o fluxo de força de trabalho e como ela afeta o conceito de cidadania nos tempos atuais e, por sua vez, como a alternância do sentido da palavra “cidadania” fez mudar o que representa o welfare state hoje são questões que demonstram claramente que as expectativas da maioria não estão sendo atendidas.

Em um contexto de profunda insatisfação e desgaste econômico, a ascensão de um discurso demagógico se torna muito mais rápida e, como bem demonstra Milanovic, já é possível observar que o discurso de partidos tanto de extrema esquerda, como de extrema direita na França, já convergem para um nacionalismo antiglobal ou anticosmopolita, destoando da retórica internacional multilateralista do socialismo pós-Guerra e do constitucionalismo transnacional como um todo.[10] Esse ponto só é reforçado pelos dados trazidos por Mounk, quando ele demonstra o quão oligárquicas as democracias desenvolvidas vêm se tornando ao longo dos anos, reforçando seu argumento sobre estados de direito sem democracia [11].

Por mais que os conceitos de “democracia antiliberal” e “estado de direito sem democracia” se tornem nebulosos ao longo da obra, como observou o cientista político Jonny Thakkar em resenha sobre o trabalho,[12] Mounk traça boas razões para acreditarmos que a crise democrática tem raízes econômicas e existenciais, como o trabalho de Milanovic também revela.

Ainda que seja importante, como argumenta o autor, “restaurar o senso cívico” da população, é imprescindível que esse clamor por resgate seja acompanhado de uma dose de realidade, baseada na experiência dos povos de países periféricos para tornar viável sua inserção na esfera pública de forma inclusiva. Esse papel pode ser parcialmente induzido por um constitucionalismo adequado aos tempos atuais, onde a participação popular seja a regra, não a exceção. Uma maior participação e senso de pertencimento pode(ria)m aguçar a percepção de legitimidade em setores populacionais que se sentem excluídos e assim evitar sua cooptação por forças políticas deletérias, situação que já se mostra presente.

Não se trata em hipótese alguma de questionar se os princípios da democracia liberal são ou não válidos, mas sim de como utilizá-los como indutores de mudanças estruturais necessárias. Esse equilíbrio entre o respeito aos princípios democráticos e o cuidado com a desigualdade e a precarização de direitos sociais precípuos da cidadania parece ser condição sine qua non para que grupos sociais plurais possam obedecer às regras mais básicas de convivência democrática, como aceitar adversários políticos como legítimos e respeitar o resultado de uma eleição. O reposicionamento para um Constitucionalismo Contemporâneo adequado às realidades e demandas democráticas atuais, a meu ver, começa a partir daí.


[1] Ver ACEMOGLU, Daron; ROBINSON, James A. Por que as nações fracassam: as origens do poder, da prosperidade e da pobreza. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. O sentido da palavra “compreensão”, aqui utilizado, é hermenêutico.

[2] Lenio Streck chama esses países, subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, de países de modernidade tardia. Ver STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

[3] SNYDER, Thimothy. Sobre a tirania: XX lições tiradas do século XX. São Paulo: Cia. das Letras, 2017.

[4] LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. São Paulo: Zahar, 2018.

[5] Adam Przeworski afirma que a quadra atual apresenta, sim, elementos sem precedentes históricos. Ver PRZEWORSKI, Adam. Crises da democracia. São Paulo: Zahar, 2020.

[6] Procuro aqui desenvolver o conceito de constitucionalismo adequado a partir de duas ideias: o Constitucionalismo Contemporâneo e a resposta constitucionalmente adequada, ambas de Lenio Streck. Ver, repectivamente, STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Casa do Direito; Letramento, 2020. p. 385-406 e STRECK, Lenio Luiz. O que é isto — o Constitucionalismo Contemporâneo? Revista do CEJUR/TJ/SC: Prestação Jurisdicional, v. 1, n. 02, p. 27 – 41, out. 2014. Ver, também, WALDRON, Jeremy. Can There Be a Democratic Jurisprudence? Emory Law Review, v. 58, n. 3, p. 675- 712, 2009.

[7] Sobre o populismo, uma das faces do autoritarismo contemporâneo, recomendamos a obra de dois professores do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, TASSINARI, Clarissa; COPELLI, Giancarlo Montagner. Pensando o populismo: a partir de ensaios e perspectivas distintas. Blumenau: Dom Modesto, 2021.

[8] MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia: Por que nossa Liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo: Cia. das Letras, 2019.

[9] MILANOVIC, Blanko. Capitalismo sem rivais: o futuro do sistema que domina o mundo. São Paulo: Todavia, 2020.

[10] Sobre pesquisas sobre o constitucionalismo transnacional e uma teoria pluriversalista do direito internacional, ver TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Teoria pluriversalista do direito internacional. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

[11] O autor compara o montante gasto nos EUA para fazer lobby com políticos: de US$ 1,5 bilhões em 2000, para 3,2 bilhões em 2015. A questão das oligarquias também pode ser observada na Rússia pós-soviética, onde o regime de Vladimir Putin só alavancou a mesma estrutura.

[12] THAKKAR, Jonny. Reasonableness Without Reasons: Yasha Mounk’s “The People vs. Democracy”, Los Angeles Review of Books, 6. jun. 2018. Disponível em: https://www.lareviewofbooks.org/article/reasonableness-without-reasons-yascha-mounks-the-people-vs-democracy/. Acesso em: 24 jul. 2021.

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