Opinião

O novo Código Eleitoral pela perspectiva do Direito Eleitoral Sancionador

Autor

  • Amanda Guimarães da Cunha

    é especialista em Direito Eleitoral e em Ciências Penais membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político autora do livro "Direito eleitoral sancionador: o dever de imparcialidade da autoridade judicial" (editora Tiran Lo Blanch) juntamente com Luiz Magno Pinto Bastos Júnior.

25 de fevereiro de 2022, 16h28

A construção de uma racionalidade própria, e coerente com a ordem constitucional e convencional vigentes, para o Direito Eleitoral brasileiro tem estado no centro do debate acadêmico e doutrinário do país, com reflexos agora, tardiamente, mas oportunamente, também no Legislativo, especialmente com a tramitação do novo Código Eleitoral, por meio do projeto de Lei Complementar 112-B de 2021.

Diferentemente das outras searas, o Direito Eleitoral, em que pese ser um ramo jurídico autônomo, carece de regulamentações e balizas que lhe confiram uma individualização própria e necessária, reflexo do contexto autoritário em que a Justiça Eleitoral foi criada. Ele é regido por um emaranhado de diplomas normativos esparsos, composto tanto por legislações eleitorais especiais, construídas sem critérios minimamente sistemáticos, quanto por normas que versam sobre aspectos e institutos de outras searas que cruzam esse microssistema eleitoral. Esse quadro peculiar no ordenamento brasileiro gera reflexos especialmente problemáticos sobre as garantias materiais e processuais de todas as pessoas submetidas ao jus puniendi estatal na seara eleitoral.

Temos defendido [1] que existe uma necessidade de se reconhecer o caráter sancionador de uma série de ilícitos dispersos na legislação eleitoral. Eles são definidos, em diferenciação dos crimes em espécie, pela aplicação de sanções que vão desde a aplicação de restrições ao exercício de direitos e a cominação de multa, até as mais gravosas, que implicam a cassação de registro de candidatura e/ou de diploma e na inelegibilidade. Essas condutas, portanto, são revestidas de cunho punitivo [2], à semelhança das funções investidas à persecução de outras infrações [3], decorrendo igualmente do poder sancionador estatal [4] [5] [6] [7] [8].

Este ramo de Direito Público, ao qual cunhamos de Direito Eleitoral Sancionador, deve se destinar a resguardar a normalidade e a legitimidade das eleições, mas igualmente o devido processo legal e o exercício do direito de sufrágio [9]. Entretanto, justamente pela falta desse reconhecimento, esse grupo de ilícitos é apurado por meio de um processo contencioso eleitoral que não conta com regras minimamente sistemáticas. E, além disso, incompatíveis com o devido processo legal e os direitos políticos fundamentais.

Entre os mais graves reflexos que disso decorrem destacamentos a tipicidade aberta desses ilícitos, pela natureza cível que lhes foi e é atribuída, conferindo poder à autoridade eleitoral de definir nos casos práticos o que os caracterizam. E até mesmo de esta mudar a causa de pedir quando não se consegue comprovar, por exemplo, uma conduta de fraude ou corrupção, aproveitando-se dos contornos ainda mais genéricos das categorias de abuso de poder. Um poder sobremaneira ampliado pela faculdade dessa autoridade de conduzir o contencioso eleitoral podendo produzir provas no processo e de julgar conforme indícios e presunções [10], somado, ainda, a um poder normativo autoconcedido de proferir resoluções [11], inclusive em matéria sancionatória.

Ainda, a utilização de fórmulas de responsabilização objetivas, que não só desconsideram quaisquer análises de elementos subjetivos, como adotam uma teoria de risco que não leva em conta sequer o nexo de causalidade entre a conduta e resultado lesivo sobre os bens jurídicos tutelados pelas normas eleitorais [12].

Todo esse quadro confere um desequilíbrio na condução desses processos, com nítidos prejuízos para o direito de defesa e sem respeitar a paridade de armas, o que acarreta, muitas vezes, na aplicação de sanções dessarroadas, desproporcionais e, muitas vezes, aplicadas sem estarem assentadas sobre um mínimo lastro probatório. Uma situação que ultrapassa a esfera do candidato, candidata ou partido político, atingindo o próprio eleitorado [13], com a cassação da manifestação de sua soberania expressada nas urnas por uma decisão judicial contramajoritária e, nesses moldes, injusta.

Com o reconhecimento de um Direito Eleitoral Sancionador que engloba essa categoria de ilícitos, se está a reclamar que a eles sejam conferidas regras mínimas do devido processo legal, tanto de matriz constitucional, quanto convencional, suplantadas, no que for cabível, pelas do Direito sancionador geral que é o Direito Penal [14].

Nesse sentido, o novo Código Eleitoral consegue, se assim prosperar, corrigir algumas dessas distorções.

Preliminarmente, estabelece que a aplicação e interpretação das normas eleitorais deve se voltar à preservação da soberania popular e os direitos fundamentais (artigo 6º e §2º).

Com relação à aplicação das sanções, adota o princípio o in dubio pro suffragii, obrigando a aplicação proporcional e razoável destas quando acarretem o indeferimento de registros de candidaturas, cassação destes ou dos diplomas, perdas de mandatos eletivos e inelegibilidades (artigo 2º, X). Nesse sentido, adota um norteador na dosagem da sanção, determinando que somente a gravidade das circunstâncias é apta à cassação de registro ou diploma, para todos os ilícitos eleitorais, bem como confere parâmetros para sua aferição, restringindo a subjetividade da autoridade eleitoral (artigo 630 e 631)

No que diz respeito às fórmulas adotadas para a responsabilização, o Código deixa a desejar. O nexo de causalidade é exigido somente quando são impostas as sanções de cassação de registro e/ou diploma, bastando para tanto a mera probabilidade (artigo 630, V).  No que diz respeito ao terceiro suposto beneficiário da conduta, a individualização de sua conduta é realizada apenas para aplicação da sanção de inelegibilidade (180, §2º) e o prévio conhecimento dos fatos é considerado somente para imposição das sanções relacionadas aos ilícitos referentes às regras de propaganda eleitoral (artigos 487, 501 e 502, §2º).

Em relação à aferição de elemento subjetivo, silencia sobre sua aferição para caracterização das condutas, prevendo somente que a sanção de inelegibilidade não será aplicada no caso dos crimes culposos (180 §3º).

Com relação ao poder regulamentar, o código acerta ao chamar o Tribunal Superior Eleitoral à responsabilidade, embora óbvia, de não contrariar a Constituição e o próprio Código Eleitoral, proibindo-o de restringir direitos ou estabelecer sanções diversas das previstas em lei (artigo 129 §2º), bem como de impor restrições à elegibilidade que não estejam previstas na CF/88 e em Lei Complementar (artigo 172).

No que diz respeito aos ilícitos eleitorais em si, o código reflete o esforço para sistematização das normas eleitorais levado a cabo pelo TSE, com auxílio de diversos e diversas especialistas, concentrando-os no novo diploma. Ainda não está claro, entretanto, de que forma serão conciliadas as novas previsões com as disposições das demais legislações em que estavam previstos, notadamente a Lei das Eleições e a Lei de Inelegibilidades (LC 64/90).

Os ilícitos ganharam contornos mais taxativos, com destaque aos avanços na definição das até então genéricas categorias de abuso de poder econômico (artigo 625) e político (artigos 626 e 627). Todavia, a taxatividade strictu sensu e a interpretação restritiva foram estabelecidas somente para a última categoria (626, §5º).

Houve ainda a inclusão da fraude à cota de gênero como uma das hipóteses de abuso de poder político (626, §1º), superando a necessidade de lacuna jurisprudencial à questão. Todavia, em relação à extensão da responsabilização, estendeu as sanções a toda chapa (626, §3º), o que em outra oportunidade apontamos como equivocado, justamente pela falta de individualização de condutas e nexo causal [15].

O código adotou ainda o princípio in dubio pro reu no Direito Sancionador Eleitoral (artigo 5º), corrigindo os excessos introduzidos pela Lei da Ficha Limpa sobre os direitos políticos, com reflexos também nas regras processuais (artigo 638, § único).

De uma forma geral, em matéria sancionatória, o código preocupou-se especialmente com a gravidade das sanções impostas a candidatos, candidatas e partidos e a atuação desmedida do Poder judiciário. As balizas conferidas contribuem, sem dúvida, para a racionalização e operacionalização do direito eleitoral, conferindo maior previsibilidade e segurança jurídica. Todavia, restaram lacunas deveras importantes ao Direito Eleitoral Sancionador, sem as quais não se pode obter a necessária e adequada proteção dos direitos políticos fundamentais de todo e toda aquela submetidos ao jus puniendi da Justiça Eleitoral.

 


[1] CUNHA, Amanda Guimarães da. BASTOS JR, Luiz Magno Pinto. Direito eleitoral sancionador: o dever de imparcialidade da autoridade judicial. 1 ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2021. 186 p.

[2] LUCON, Paulo Henrique dos Santos. "Compra de votos", direito sancionador e ônus de prova. In: TAVARES, André Ramos; AGRA, Walber de Moura; PEREIRA, Luiz Fernando (Coord.). O direito eleitoral e o novo Código de Processo Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 310

[3] SILVA-SANCHÉZ, Jesús-María. La expansión del derecho penal: aspectos de la política criminal en las sociedades post industriales. 2ª ed. Civitas Ediciones: Madrid, 2001, p. 155

[4] VAZQUEZ RANGEL, Osíris. Derecho sancionador electoral y principio de legalidade. Electio Revista Especializada Electoral. Num. 2, Jun-Dic 2012. Primera edición, Diciembre 2012. p. 37. Disponível em: https://www.tecdmx.org.mx/files/326/publicaciones/electio/02_electio.pdf.

[5] ÁLVAREZ GONZÁLEZ, Juan Manoel. Alguns principios del derecho penal sustativo aplicables al derecho sancionador electoral. p. 17-46. In: El ilicíto y su castigo: reflexiones sobre la cadena perpetua, la pena de muerte y la idea de sanción en el derecho / David Cienfuegos Salgado  México: Editora Laguna: Fundación Académica Guerrerense : Universidad Autónoma de Guerrero, Maestría en Derecho Público, Universidad Autónomade Sinaloa, Unidad de Posgrado en Derecho, 2009. 348p, p. 21.

[6] NEISSER, Fernando Gaspar. A responsabilidade subjetiva na improbidade administrativa: Um debate pela perspectiva penal. 2018. 313fls. Tese de Doutorado – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, p. 151, nota de rodapé 497; p. 183.

[7] DEZAN, Sandro Lúcio. Uma teoria do direito público sancionador: fundamentos da unidade do sistema punitivo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021. 200p.

[8] Nesse sentido, também os administrativistas: MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador: as sanções administrativas à luz da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 101-102.; FERREIRA, Daniel. Teoria geral da infração administrativa: a partir da Constituição de 1988. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 152; ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de derecho penal. 2a. Ed. Buenos Aires: Ediar, 2007, p. 6.

[9] CUNHA; BASTOS JR, op. cit, pag. 97-98.

[10] Segundo art. 23 da LC 64/90: "o Tribunal formará sua convicção pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral".

[11] SALGADO, Eneida Desiree. Administración de las elecciones y jurisdicción electoral: un análisis del modelo mexicano y una crítica a la opción brasilera. México: Universidad Nacional Autónoma de México, Instituto de Investigaciones Juridicas, 2016, 248p, p. 186.

[12] SILVEIRA, Marilda de Paula. Conduta Vedada e Abuso de Poder: como lidar com o nexo de causalidade em ato praticado por terceiro. Resenha Eleitoral (Florianópolis), v. 21, nº 1, p. 29-42, nov. 2017. Disponível em: https://www.tre-sc.jus.br/site/fileadmin/arquivos/ejesc/documentos/Condutas_Vedadas_e_abuso_do_poder______politico_para_EJE_SC.pdf.

[13] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Petro Urrego Vs Colombia. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 8 de julio de 2020. Serie C, nº 406. §96. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_406_esp.pdf.

[14] CUNHA, BASTOS JR, 2021, op. cit, p. 98-107.

[15] CUNHA, Amanda Guimarães da. BASTOS JR, Luiz Magno Pinto. Fraudes à cota de gênero na perspectiva do direito eleitoral sancionador. Resenha Eleitoral. Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina, v. 24, p.57-84, 2020.

Autores

  • é especialista em Direito Eleitoral e em Ciências Penais, membro-pesquisadora do Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos da Universidade do Vale do Itajaí (Univali) e professora de Direitos Humanos da Academia da Polícia Civil de Santa Catarina.

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