Opinião

'Empaparme' de Chile: uma brasileira na Convenção Constitucional (Parte 3)

Autor

  • Ester Gammardella Rizzi

    é professora do Curso de Gestão de Políticas Públicas da EACH-USP e integrante do grupo de estudos Neoliberalismo Subjetivação e Resistência vinculado ao IEA-USP e do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic-USP).

24 de fevereiro de 2022, 9h11

Iniciei a maioria das mais de 15 entrevistas que fiz no período em que estive no Chile com duas perguntas: "O Chile precisa de uma nova Constituição? Por quê?"; e "desde quando o Chile precisa de uma nova Constituição?". Meu objetivo com as perguntas era exatamente saber qual o marco temporal e as razões históricas que levavam as(os) entrevistadas(os) a afirmar que o Chile precisava de uma nova Constituição. Apenas um entrevistado respondeu questionando o verbo "precisar" da pergunta inicial. Todos os outros afirmaram a necessidade urgente, que se materializa no processo constituinte que o país está vivendo.

Entre as razões da necessidade, o taxista Nestor, que me levou do aeroporto até o hotel logo no dia em que cheguei, resumiu um dos argumentos: "É a Constituição do Pinochet. E… Tudo é culpa da Constituição do Pinochet". O símbolo de ter, em uma democracia, uma Constituição elaborada em um período ditatorial é um dos caminhos para responder a questão. Outro é o fato de a Constituição de 1980 ter cristalizado a decisão — realizada por meio do golpe de 1973, contrária à história anterior do Chile — de transformar o Estado do país em um Estado neoliberal, que se retiraria em grande medida da tarefa de garantir direitos. A partir da Constituição de 1980, e das interpretações que se seguiram a seu texto, já que a expressão não está explícita nas suas normas, o Estado chileno passou a ser um Estado subsidiário e a privilegiar a atuação da iniciativa privada para a garantia de serviços-direitos, como saúde, educação e aposentadorias.

A Constituição de 1980, assim, é o símbolo de um Chile autoritário e neoliberal. Se a forma política conseguiu ser alterada — ainda que moderadamente — na transição democrática de 1989-90, a Constituição que permaneceu em vigor possui amarras importantes em seu desenho institucional, as mais importantes ainda válidas neste exato momento: maioria qualificada de dois terços para alterações constitucionais e controle prévio de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional. Esse desenho impediu transformações mais profundas no sistema econômico e de promoção de direitos.

Voltando à minha pergunta: "desde quando o Chile precisa de uma nova Constituição?". As respostas foram diversas. Sérgio Grez, professor de História, afirma que a Constituição de 1980 já nasce em tensão com a realidade chilena. Desde sua promulgação autoritária já havia uma insatisfação e um desejo de mudar. Outros afirmam que pelo menos desde 1989-90, com a redemocratização do Chile, deveria ter havido uma nova Constituição. Afinal, "que país sai de uma ditadura para uma democracia sem mudar a ordem constitucional?", pergunta-se Dan Israel.

Daniel Mondaca, professor de Direito Constitucional da Universidade de Valparaíso, retoma a história de todas as constituições chilenas para responder. Afirma que a única Constituição chilena elaborada em um processo razoavelmente democrático havia sido a de 1828 e, portanto, havia uma dívida histórica muito antiga relacionada a processos constituintes no país. Andrea Salazar, uma das organizadoras das marchas feministas anteriores ao estallido e do 8 de março de 2020, lembra-se do fiasco da tentativa de nova Constituição promovida pela então presidenta Bachelet nos anos de 2016-17 e também do movimento que começa a surgir e a se alastrar para marcar as cédulas eleitorais — em papel — com a sigla "AC", de Assembleia Constituinte, desde 2013.

Reivindicação desde o século 19 por um processo constituinte democrático; incômodo que vem desde 1980 e se intensifica com o processo de democratização de 1989-90, com manutenção de normas marcadamente neoliberais; impossibilidade de mudanças mais profundas derivada do desenho institucional travado, a qual se manifestou de maneira clara durante os governos progressistas; movimento "marca seu voto" desde 2013; crescente mobilização política da sociedade chilena desde 2006; por fim, tentativa fracassada de elaboração de uma nova Constituição pela presidenta Bachelet. A demanda por uma nova Constituição, capaz de tornar o Chile um país melhor e mais solidário, vai muito além do turbulento outubro de 2019: sob diferentes facetas, ela parece fazer parte da história do Chile, ganhando contornos mais nítidos a cada frustração.

Assim, quando a insatisfação social se tornou uma revolta difícil de controlar — deixando com medo uma parte significativa das elites econômica e política do país —, não era difícil saber qual o caminho de solução institucional para apaziguar os ânimos exaltados das ruas. Oferecer uma Convenção Constitucional democrática apresentou-se como uma resposta possível e eficaz. Por meio de um acordo entre os partidos políticos — sobre o qual vou falar no próximo texto desta série —, a possibilidade de uma Convenção Constituinte é aprovada no dia 15 de novembro de 2019. As manifestações nas ruas das cidades chilenas continuaram após essa data, é certo, mas logo depois do anúncio já perderam uma parte de sua força e intensidade. Cesia Arredondo conta que ficou até de madrugada esperando o anúncio do acordo pela TV e que comemorou como uma grande vitória política do estallido social. Sergio Grez, ao contrário, achou uma jogada de mestre do sistema político contra uma revolta que poderia levar o Chile mais longe. Ainda que menores, as manifestações continuaram tanto no final de 2019 quanto em 2020: em 8 de março de 2020, por exemplo, houve uma marcha gigantesca, só com mulheres. Em seguida, a pandemia: talvez tenha sido esse o mais eficaz agente para acabar de vez com as grandes manifestações públicas chilenas. A partir do dia 18 de março de 2020, o debate aconteceria muito mais nos marcos da institucionalidade.

Como já escrevi no artigo anterior, porém, há algo que ninguém nega. Antes do estallido social de outubro de 2019, ninguém imaginaria que o Chile viveria um processo constituinte tão cedo (até porque o de Bachelet, poucos anos antes, havia fracassado). Ninguém nega também que a possibilidade de instalação de uma Convenção Constitucional, tal como prevista no acordo de paz de 15 de novembro de 2019, foi uma resposta institucional para o estallido e, de alguma forma, realmente conseguiu apaziguar sua energia. Ou, de alguma forma, transferir a energia que estava nas ruas para uma arena institucional.

Daniel Mondaca destaca que, diferentemente de outros processos latino-americanos, como o da Bolívia, não existia no Chile um grupo político com um projeto estruturado e que, em algum momento, consegue chegar ao poder e iniciar um processo constituinte. O estallido social foi muito mais um processo destituinte e descentralizado que, com os sentimentos de raiva e repulsa, se voltou contra o estado de coisas vigente. Essa específica circunstância política, de destituição, de destruição do anterior sem ainda um projeto consolidado para colocar algo novo no lugar, tornam o processo constituinte chileno atual mais desafiador. Seguiremos falando das características que assume a Convenção Constitucional e de sua composição na quarta parte desta série.

* Este texto faz parte da série de quatro artigos sobre a estadia da autora no Chile.

Clique aqui para ler a Parte 1
Clique aqui para ler a Parte 2

Autores

  • é professora do Curso de Gestão de Políticas Públicas da EACH-USP e integrante do grupo de estudos Neoliberalismo, Subjetivação e Resistência, vinculado ao IEA-USP, e do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic-USP).

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