Opinião

Inteligência artificial, arte e filosofia: uma compreensão plural e inclusiva

Autor

  • Paola Cantarini

    é advogada professora universitária doutora em Direito e Filosofia (PUC-SP) e em Filosofia do Direito (UniSalento) pós-doutora em Direito (USP PUC-SP-TIDD Universidade de Reggio Calabria) Filosofia (EGS-Suíça) e Sociologia (Universidade de Coimbra-CES) pesquisadora do Instituto C4AI-USP da Cátedra Oscar Sala-Ieausp pesquisadora e pós-doutoranda (Unicamp) pesquisadora de grupos de estudos do Alan Turing Institute pesquisadora visitante da SNS Pisa (2016-2018) e da Universidade de Lisboa e diretora do Instituto Ethikai.

24 de fevereiro de 2022, 10h43

Como podemos nos reapropriar da tecnologia moderna, através da rearticulação da essência da técnica, considerando-se os conceitos de tecnodiversidade e de cosmoética (Yuk Hui), e no sentido da técnica como "poiesis", com base nos valores construcionistas do homo poieticus (Luciano Floridi) e não como dominação, como engrenagem e dispositivo do capitalismo de dados? Como a arte e a ética podem contribuir para repensarmos a relação homem-máquina, em temos de simbiose humano-tecnologias? Em suma, do que se trata aqui é de cosmoética e tecnodiversidade como bases epistemológicas e hermenêuticas para uma compreensão plural e inclusiva acerca da técnica moderna.

Para Yui-hui, teríamos de olhar e pensar a tecnologia não apenas como força exclusivamente produtiva e mecanismo capitalista voltado ao aumento da mais-valia, pois isso nos impediria de ver seu potencial decolonizador e de perceber a necessidade do desenvolvimento e da manutenção da tecnodiversidade. O que significa uma cosmotécnica amazônica, inca, maia e como estas podem recontextualizar a tecnologia moderna?

A poética, a poesia, as artes, na medida em que desafiam todas as relações objeto a objeto e as relações das formas e seus significados, trazem uma nova dimensão, em que, ao invés de representação, teríamos reapresentação, ao invés de mediação, ou ao invés de apenas uma contemplação teríamos a interação (Deleuze, G., 1986, p. 30), afastando-se da lógica generalista predominante, por ela não alcançar a infinidade de possibilidades latentes (Id. ib., p. 13-14).

A lógica atonal, por exemplo, liga-se à experiência-limite dos sons, que independe de uma estrutura harmônica ou melódica, com o fim de dar algum sentido de totalidade, ou de linearidade à composição (José Miguel Wisnik ("O som e o sentido. Uma outra história das músicas", São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 175). Dessa forma, há uma revalorização de elementos como a imaginação, a criatividade e a intuição como essenciais para a construção do próprio pensamento e conhecimento, libertando-se da prisão e enclausuramento em esquemas conceituais rígidos e pré-fixados, ocorrendo assim a alienação em busca de perfeições conceituais.

Emerge, assim, um pensamento polifônico, do múltiplo, como uma pragmática do múltiplo, um pensamento plural, nos aproximando do que Luciano Floridi ("A Lógica da Informação: A Theory of Philosophy Philosophy as Conceptual Design", Oxford: OUP, 2019) caracteriza como homo poieticus. Trata-se de uma mudança do entendimento representacionalista (mimético) para um outro, construcionista (poiético), ou seja, indo da mimesis para poiesis, resultando em uma interpretação poiética de nosso conhecimento, assim desenvolvendo uma lógica de desenho dos artefatos semânticos pelos quais somos epistemicamente responsáveis. Chegaríamos com isso a uma Filosofia envolvendo necessariamente a crítica, a uma poiética (construtivista) ao invés da epistemologia mimética (representativa), capaz de propor uma ética de IA relacionada aos valores construcionistas do homo poieticus.

Então, do que se trata é de uma ação não como mera práxis ou de uma "téc(h)n[(ét)]ica", reprodutiva, mas, sim, voltada a verificar as potencialidades da técnica no sentido grego de práxis, incluindo a "poiesis", e, assim, assumindo a possibilidade da existência da tecnodiversidade e da cosmoética, logo, de outro destino, que não seja um de domínio e sujeição à economia no capitalismo, com base na forma moderna da técnica, que é a tecnologia como um desafio da exploração.

Uma filosofia da IA com fundamento no postulado de uma tecnoversidade, portanto, é o que nos cabe desenvolver, buscando-se as bases epistemológicas e fundacionais para a técnica enquanto relacionada à "poiesis", logo, com o que é de mais humano, também com o erótico, enquanto poético, "poiético" (criador e criativo), ao contrário da ordem da fetichista produção, reprodução, mediação e representação.

Quando há a experiência desinteressada há a mera contemplação, (também presente no caráter 'desinteressado' da experiência estética na "Crítica do Juízo" de Kant e no livro três do "Mundo como Vontade e Representação" de Schopenhauer) quanto ao objeto, ocorrendo a pura presentidade, a primeiridade peirceana, e não haveria necessidade das mediações, que irão se tornam necessárias apenas no caso da experiência de secundidade, portanto, diante de alguma forma de alteridade. Ocorre, assim, uma semente do hiato no tempo caracterizada pela experiência de presentidade.

Este hiato do tempo é o Acaso, "kairós" para os antigos gregos, o tempo interno, contrapondo-se a "Cronos", o tempo externo. Para Charles Sanders Peirce, ao contrário da lei que produz uniformidade, teríamos o espaço do acaso que produz diversidade, afastando-se das generalizações e, consequentemente, das mediações lógicas.

Trata-se de uma espécie de resíduo de mundo que não interessa à razão em seu papel cognitivo, o mundo dos fenômenos sem nome que escapam à linguagem lógica e à ciência positiva, pois envolvem o que é assimétrico e irregular, sendo, pois, avesso a qualquer generalização. É a dimensão dos fenômenos sem nome, ligados ao Acaso, demandando uma linguagem que também não siga leis, sendo este o espaço da poesia e da imaginação artística, da poética expressa nos signos das demais artes.

Portanto, nesse sentido a experiência estética ligada à poética foge da mediação e da representação, por não depender da alteridade (do outro como mediação), e se vislumbra como presentidade e imediatidade, com o reconhecimento do acaso e da diferença, no sentido de uma experiência de unidade.

Uma filosofia da IA com base nos valores do homo poieticus, que entedemos como "erótico-poieticus", iria no sentido de uma filosofia liberta do binômio aprisionador sujeito-objeto, mas comprometida com o múltiplo e o acategórico, apto a libertar a diferença, que é o elemento essencial quando se fala em recuperação de diversas características essencialmente humanas, viria novamente equilibrar a relação humanidades-ciências "duras", naquelas digitais. Uma leitura e compreensão erótico-poéticas, não dialéticas, que levem em conta o não dito, o resto, a heterotopia no sentido foucaultiano, sendo o espaço das artes, na esteira do espaço do teatro, explora um espaço epistêmico de heterotopia, um espaço-outro (Paola Cantarini, tese de doutorado em Filosofia, PUC-SP, "Theatrum philosophicum — o teatro filosófico de Foucault e o direito").

Foucault valoriza a fluidez e a "sfumato poética", técnica utilizada para pinturas, criando-se uma zona indistinta, provocando uma vibração emotiva que instaura uma atmosfera propícia ao poético, valorizando a energia não verbal, que reverbera no que é dito, o alicerce estético da experiência e do conhecimento, conferindo à experiência estética e ao imaginário um papel privilegiado. Isso se poria no lugar da pretensão de clareza e objetividade, em um discurso neutro e inodoro, típicos do pensamento científico, que se tenha a "obscuridade púrpura".

Para Yuk Hui ("Tecnodiversidade", Ubu Editora, 2020, p. 154 e ss.), em uma interpretação que ele mesmo denomina de "fenomenológica pós-heideggeriana" da pintura, a arte torna visível o invisível, invisível compreendido como o não-racional, como o Aberto e o Ser, algo que sempre escapa da presença.

A arte que produz um "passo além do que é humano, um passo em direção a um domínio assombroso voltado para o humano", trazendo a presença do estrangeiro guardado dentro dela. A arte depende também da inclusão do estrangeiro (outro, o estranho, o infamiliar), caso contrário, o Mesmo continua indefinidamente e aqui não mais seria possível existir imaginação poética, que justamente desestabiliza o Mesmo, a identidade do nome.

Apenas com a poética (e artes que se aproximem da abordagem poética) sairíamos da representação, indo além da mediação e chegando a uma interação/experimentação. Com a poética ocorre a suspensão e exposição da língua, um discurso inoperoso de potência, como diria Giorgio Agamben, que torna possível o pensamento do pensamento. Ocoreria, assim, a desativação do dispositivo sujeito-objeto, em uma poética da inoperosidade, desativando a função utilitária, pouco comunicativa por demasiado informativa, permitindo uma abertura da linguagem e aproximando-se da experiência, que tanto nos tem faltado, como denunciava Walter Benjamin desde o fim da Primeira Guerra Mundial, quando acaba o mundo em que ainda hoje vivemos nos destroços, a espera dessa reconstrução.

Autores

  • é advogada e professora universitária, mestre e doutora em Direito pela PUCSP, doutora pela Università del Salento (Itália), pós-doutora pela EGS/Suíça, pela Universidade de Coimbra, CES, pela Faculdade de Direito da USP, e pela PUCSP- TIDD, pesquisadora do Instituto Legal Grounds.

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