Opinião

A legitimidade do Ministério Público para a execução coletiva

Autor

  • Davi Reis S. B. Pirajá

    é promotor de Justiça no estado de Minas Gerais ex-assessor do ministro Celso de Mello no STF graduado pela UnB pós-graduado pela FESMPDFT e mestrando pela Universidade de Girona (Espanha).

23 de fevereiro de 2022, 6h03

Foi recentemente divulgado, no Informativo nº 722 do Superior Tribunal de Justiça, o teor do acórdão proferido no julgamento do REsp 1.801.518 (5ª Turma), em que se reconheceu a ilegitimidade ativa do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro para promover a execução coletiva em prol de consumidores lesados por dano comum.

Fundamentou o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, relator do acórdão, que na fase de execução da sentença coletiva a cognição judicial se limita à função de identificar o beneficiário do direito reconhecido na sentença (cui debeatur) e a extensão individual desse direito (quantum debeatur) e que, por essa razão, não haveria interesse social a justificar a atuação do Parquet na promoção da execução, à luz do artigo 129, III, da Constituição.

Vê-se, assim, que a ratio decidendi do precedente encontra-se na própria conformação constitucional do Ministério Público e na sua vocação para a defesa dos interesses sociais, concluindo-se que não seria admissível, em tese, sua atuação em fase processual na qual o interesse jurídico se restringiria "ao âmbito patrimonial e disponível", estando a legitimidade ministerial vinculada ao núcleo de homogeneidade do direito, resolvido na fase de conhecimento.

Posto isso, indaga-se se, de fato, a execução coletiva de sentenças que versam sobre direitos individuais homogêneos é invariavelmente alheia a interesses sociais ou se é possível, também nesse momento procedimental, o controle ope iudicis da legitimidade do Parquet, a fim de se verificar, no caso concreto, a presença, ou não, do interesse social qualificado.

A resposta para o questionamento perpassa necessariamente pela compreensão hermenêutica do significado de "relevância social". Essa avaliação, é importante destacar, não está vinculada à patrimonialidade ou à disponibilidade do direito, como faz entender o voto do ministro relator. A própria alta corte, em precedente utilizado na fundamentação da decisão ora em análise, explicitou que o artigo 127 da Constituição amplia a legitimidade do Ministério Público nas hipóteses em que, a despeito de caracterizada a disponibilidade dos direitos individuais, há interesse social relevante [1]. Nesse mesmo sentido, é sólida a jurisprudência que reconhece o interesse social subjacente a pretensões disponíveis e de cunho patrimonial [2].

É que relevância social apta a instaurar a atuação extraordinária do Ministério Público na defesa dos interesses individuais homogêneos é passível de ser evidenciada em duas dimensões: uma objetiva, decorrente da própria natureza dos valores e bens em questão; outra subjetiva, aflorada pela qualidade especial dos substituídos ou pela repercussão massificada da demanda [3].

Em fase de execução coletiva, entende-se possível a identificação da relevância social em ambas as dimensões apresentadas, tal como pode se observar dos fundamentos da petição de cumprimento de sentença ajuizada pelo Ministério Público de Minas Gerais em favor das vítimas lesadas pelo rompimento da barragem do Fundão em Mariana (MG).

Em tal caso, não obstante a demanda tivesse como objeto a reparação por danos materiais e imateriais causados às vítimas do desastre socioambiental, há nota de essencialidade dos direitos tutelados, uma vez que se relacionam ao patrimônio mínimo de indivíduos determinados que tiveram retirada de si a proteção material necessária para uma vida digna (dimensão objetiva).

De outro lado, a repercussão subjetiva da execução proposta é verificada tanto pelo número de pessoas afetadas quanto pela vulnerabilidade dos integrantes do grupo, a qual pode ser verificada pela presença de idosos, crianças, adolescentes e pessoas com deficiência, bem assim pela disparidade organizacional, econômica, jurídica e informacional entre as sociedades empresárias responsáveis pelo desastre e os indivíduos vítimas (dimensão subjetiva).

Retirar do Parquet a possibilidade de atuação em tais casos, reduzindo sua legitimidade ao pleito de reparação fluida (CDC, artigo 100), implica em inquestionável déficit à tutela dos direitos coletivos, sendo certo que os entraves de acesso à Justiça e os problemas de gestão processual  fundamentos da coletivização processual dos direitos individuais homogêneos  não simplesmente desaparecem após a prolação de uma sentença favorável. Com efeito, a tutela adequada inclui, como elemento fundamental à sua implementação, a atividade satisfativa (CPC, artigo 4º).

Presentes essas considerações, propõe-se uma racionalidade coletiva à atividade interpretativa da Corte Cidadã, a fim de que, na definição da controvérsia  o que deve ocorrer quando do julgamento do REsp 1.758.708/MS, relatora ministra Nancy Andrighi , não se restrinja a atribuição constitucional do Ministério Público de defesa dos interesses sociais (CF, artigo 129, III, in fine), realizando-se verdadeiro distinguish em relação à decisão ora analisada, a fim de permitir a tutela adequada dos direitos individuais homogêneos também por meio da execução coletiva em prol dos lesados (e sucessores), quando configurada a relevância social da demanda.

 


[1] STJ, REsp. 869.583/DF, relator ministro Luís Felipe Salomão.

[2] STF, RE 163.231/SP, relator ministro Maurício Corrêa (valor de mensalidades escolares); RE 475.010, relator ministro Dias Toffoli (previdência de trabalhadores rurais); RE 514.023-AgR/RJ, relator ministro Ellen Gracie (correção monetária em contas vinculadas ao FGTS); RE 631.111/GO, relator ministro Teori Zavascki (indenização do DPVAT).

[3] STJ, Resp. 347.752/SP, 2ª Turma, relator ministro Herman Benjamin.

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