Opinião

ECs 113 e 114 podem trazer à luz o ignorado §11 do artigo 100 da Constituição?

Autores

  • Leonardo Catto Menin

    é advogado da Bonamigo Menin Marinhuk Advogados Associados mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-graduado em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná (Emap).

  • Diogo Luiz Cordeiro Rodrigues

    é procurador do Estado do Paraná doutorando em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e em Regulação Financeira e Comercial pela London School of Economics and Political Science (LSE).

23 de fevereiro de 2022, 19h13

Criados com o escopo de trazer racionalidade à quitação de dívidas públicas decorrentes de condenações judiciais, especialmente tornar seu regime o mais imparcial possível, os precatórios, incorporados aos textos constitucionais brasileiros desde a Constituição de 1934, tornaram-se, com o decorrer dos anos, e especialmente a partir da atual Carta Magna, mecanismo de efetiva moratória dos entes públicos devedores.

Tornar-se credor do Estado, no Brasil, virou sinônimo de criar herança para os descendentes, tamanho o atraso que geralmente ocorre no pagamento dessas dívidas, as quais, em regra, deveriam ser quitadas pelos entes públicos até o encerramento do exercício seguinte, nos termos do revogado §1º do artigo 100 da Constituição Federal e do atual §5º do mesmo artigo.

A demora na quitação dessas dívidas decorre, por um lado, da indisponibilidade financeira dos entes públicos e, de outro, das sucessivas moratórias implementadas pelas emendas constitucionais promulgadas nos últimos anos.

Houve especial repercussão aquela realizada no âmbito da EC 62/2009, declarada em grande parte inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento das ADIs nºs 4.425 e 4.357.

Entretanto, um dos dispositivos implementados por referida emenda, o qual sequer restou objeto de análise pelo STF, e em relação ao qual pouco se discutiu, consiste no §11 do artigo 100 da Constituição Federal, o qual, ao ser incluído pela EC 62/2009, trazia a seguinte redação:

"§11. É facultada ao credor, conforme estabelecido em lei da entidade federativa devedora, a entrega de créditos em precatórios para compra de imóveis públicos do respectivo ente federado".

O dispositivo permitia, portanto, a utilização de créditos em precatórios para o pagamento na compra de bens imóveis do ente federado, nos termos de lei específica.

Entretanto, e à exceção do estado do Rio Grande do Sul, o qual editou lei que não se mostrou eficaz para a efetiva aplicação do dispositivo constitucional (Lei estadual nº 13.778/2011), não há notícia da aplicação da hipótese do §11 do artigo 100 pelos entes da federação.

Entre as razões para ineficácia prática da disposição, pode-se cogitar: a) a necessidade de autorização legal específica para a sua plena vigência (artigo 100, §11, CF, conforme redação dada pela EC 62/2009); b) a limitação do objeto a ser entregue pelo Estado para a quitação dos precatórios (bens imóveis); c) a difícil conciliação da entrega de precatórios para a compra de imóveis com determinação de obediência à ordem cronológica no pagamento das dívidas do erário (artigo 100, caput, CF); d) a possível, mas nem sempre bem vista, necessidade de dispensa de licitação para a conciliação entre a alienação de bens imóveis e a manutenção da ordem de pagamento dos precatórios (artigo 17, inciso I, Lei federal 8.666/93; e artigo 76, inciso I, alínea "a", Lei federal 14.133/2021); e) o receio dos gestores públicos na utilização de dispositivo inédito em face das ameaças de sanções decorrentes da legislação de proteção à probidade administrativa; e f) a vedação à aplicação de receita de capital derivada da alienação de bens e direitos para o pagamento de despesa corrente (artigo 44, Lei Complementar federal 101/2000  LRF).

Havia, assim, diversos empecilhos de ordem prática e jurídica para a implementação do §11 do artigo 100 da Constituição Federal conforme incluído pela EC 62/2009.

Nessa conjuntura, o dispositivo sofreu importantes alterações pela EC 113/2021, sendo, também, tomado como exceção às vedações incluídas pela EC 114/2021 (teto dos precatórios)  artigo 107-A, §§5º e 6º, ADCT.

Passou o §11 do artigo 100 da Constituição Federal a ter a seguinte redação:

"§11. É facultada ao credor, conforme estabelecido em lei do ente federativo devedor, com auto aplicabilidade para a União, a oferta de créditos líquidos e certos que originalmente lhe são próprios ou adquiridos de terceiros reconhecidos pelo ente federativo ou por decisão judicial transitada em julgado para:
I
quitação de débitos parcelados ou débitos inscritos em dívida ativa do ente federativo devedor, inclusive em transação resolutiva de litígio, e, subsidiariamente, débitos com a administração autárquica e fundacional do mesmo ente;
II
compra de imóveis públicos de propriedade do mesmo ente disponibilizados para venda;
III
pagamento de outorga de delegações de serviços públicos e demais espécies de concessão negocial promovidas pelo mesmo ente;
IV
aquisição, inclusive minoritária, de participação societária, disponibilizada para venda, do respectivo ente federativo; ou
V
compra de direitos, disponibilizados para cessão, do respectivo ente federativo, inclusive, no caso da União, da antecipação de valores a serem recebidos a título do excedente em óleo em contratos de partilha de petróleo".

A nova redação ampliou significativamente as hipóteses alternativas de quitação de precatórios pelos entes públicos.

Veja-se que não apenas passam os credores do Estado, com créditos em precatórios, a ter a possibilidade de receberem seus créditos mediante a aquisição de bens imóveis dominicais. Autorizou-se aos entes a entrega, também, de participações societárias e de direitos.

Também, e não menos importante, autorizou-se a utilização desses créditos para o pagamento de outorgas de delegações de serviços públicos, possibilitando uma participação mais ampla nas licitações de agentes que porventura tenham ativos imobilizados como precatórios.

Ainda, o inciso I expressamente previu a possibilidade de compensação de créditos precatórios com dívidas havidas pelo titular junto ao ente público, suas autarquias e fundações, com a possibilidade de transação para o encerramento dos litígios.

Por fim, a nova redação do §11 tornou autoaplicável à União o dispositivo, dispensando, nesse caso, a autorização mediante lei específica, ressalvadas hipóteses em que, por determinação constitucional diversa, imponha-se especificamente a autorização legislativa, como para a alienação do controle acionário de empresa estatal (ADI 5.624/DF).

Não bastassem as importantes alterações trazidas pela EC 113/2021 ao §11 do artigo 100 da Constituição Federal, a EC 114/2021 ainda inclui as hipóteses de quitação de débitos em precatórios pelos entes públicos previstas no referido parágrafo com exceção ao teto de pagamento de precatórios por ela imposto  lembrando que as ECs 113 e 114, de 2021, em relação especialmente ao teto para pagamento de precatórios, são objeto de ao menos duas ADIs no âmbito do STF (ADIs 7.047 e 7.064).

Dessa forma, e sem adentrar ao mérito da (in)constitucionalidade dessas emendas, uma vez exaurido o teto para pagamento de precatórios pelo ente público, restar-lhe-ia possível, ainda, a redução de seu passivo mediante as formas de quitação previstas no §11 do artigo 100 da Constituição.

Diante de tais significativas alterações, parece-nos promissora a perspectiva para o novo §11 do artigo 100 da Constituição Federal, o qual poderá, finalmente, ter sua aplicação observada na prática, ampliando as possibilidades de pagamento de dívidas em precatórios pelos entes públicos.

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