Opinião

O representante comercial e a recuperação judicial: considerações sobre a Lei 14.195

Autor

  • Luiz Rodrigues Wambier

    é advogado com atuação no Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal sócio do escritório Wambier Yamasaki Bevervanço & Lobo Advogados e professor no programa de mestrado e doutorado em Direito do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

21 de fevereiro de 2022, 13h12

A Medida Provisória nº 1.040/2021, publicada em março do ano passado, objetivava melhorar o ambiente de negócios no país a partir do estabelecimento de regras acerca da facilitação da abertura de empresas; proteção de acionistas minoritários; facilitação do comércio exterior; Sistema Integrado de Recuperação de Ativos (Sira); cobranças realizadas por conselhos profissionais, a profissão de intérprete público e tradutor; obtenção de eletricidade e prescrição intercorrente prevista no Código Civil.

Embora, originariamente, já não obedecesse a melhor técnica legislativa, incluindo assuntos esparsos e desconexos em uma única medida, recebeu mais de 300 emendas após chegar ao Congresso Nacional. Durante essa tramitação, foi incluído o artigo 53 — objeto de minha atenção neste espaço —, que se prestou a alterar o artigo 44, parágrafo único, da Lei 4.886/1965, introduzindo dispositivo que, a um só tempo, viola o princípio da igualdade de condições dos credores em recuperação judicial, a competência do juízo universal e o respeito aos atos jurídicos perfeitos, introduzindo injustificável privilégio ao crédito do representante comercial.

O mencionado artigo dispõe que, no caso de falência ou de recuperação judicial do representado, as importâncias por ele devidas ao representante (verbas de todos os tipos) serão consideradas créditos da mesma natureza dos trabalhistas. O parágrafo único vai além, excetuando dos efeitos da recuperação os créditos constituídos definitivamente após o deferimento do seu processamento, isto é, com trânsito em julgado em momento posterior, ainda que o fato gerador tenha ocorrido antes da data do pedido de recuperação. Afasta, ainda, a sujeição desse crédito à competência do juízo universal.

Chama atenção, logo de início, tratar-se de norma fruto do que o Supremo Tribunal Federal convencionou chamar de "contrabando legislativo" (ADI nº 5.127/DF) [1]. A denominação expressa a prática de apresentação de emendas sem pertinência lógico-temática com a norma que está sendo apreciada e foi vedada especialmente no caso das medidas provisórias. A razão de ser da proibição é simples e consiste na quebra da uniformidade e da segurança jurídica em razão das peculiaridades dessa forma anômala de se legislar: a iniciativa é exclusiva do chefe do Poder Executivo; os temas devem ser dotados de relevância e urgência e a ela se confere, ainda, o privilégio de um rito célere.

É, portanto, uma norma que apenas forja aparência de legalidade, mas integra o ordenamento jurídico sem o selo da legitimidade democrática que somente se obtém com o respeito ao devido processo legislativo.

Do ponto de vista material, também compreendo que a norma é inconstitucional, o que motivou, inclusive, o ajuizamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.054 pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil junto ao Supremo Tribunal Federal.

O processo de falência e recuperação judicial tem como princípio estruturante a par conditio creditorum, que significa paridade de condição de todos os credores. Isso porque o objetivo maior da recuperação judicial não é o soerguimento da empresa recuperanda, mas, sim, a celebração de um pacto para pagamento de todos os credores. Trata-se de instituto com origem no Direito francês, fundado na ideia de que o direito de todos os credores serem satisfeitos pelo patrimônio do devedor é paritário, salvo direitos especiais de preleção.

E este é o ponto central de qualquer discriminação que se pretenda legítima: é necessário que o tratamento diferenciado tenha amparo em norma constitucional autorizadora.

Assim se deu, por exemplo, quando o Supremo Tribunal Federal analisou o tratamento a ser dado aos créditos decorrentes de relações de trabalho, sem vínculo de emprego, a partir da investigação da natureza alimentícia de determinada verba. No caso dos honorários advocatícios, por exemplo, a autorização para o tratamento privilegiado advém da própria Constituição, em seu artigo 133. O mesmo não se verifica em relação, ao menos, aos representantes comerciais pessoas jurídicas (e a Lei 14.195/21 não faz qualquer distinção), empresas de portes diversos, cujas receitas não se confundem com verbas alimentares destinadas a profissionais autônomos.

O representante comercial não tem vínculo de emprego com os representados, mas relação meramente comercial, como decidiu o Supremo Tribunal Federal no julgamento do Tema 550. Portanto, não há autorização constitucional que justifique o tratamento privilegiado, de modo que a interpretação a ser dada ao artigo 53, à luz da Constituição, somente pode levar à conclusão de que os representantes comerciais organizados como pessoas jurídicas não podem receber os benefícios franqueados pela nova lei.

Mas a igualdade quanto ao tratamento conferido aos créditos dos representantes comerciais e aos créditos trabalhistas é apenas aparente e se limita à equiparação de ambas como verba de natureza alimentar. Na verdade, a Lei 14.195/2021 avançou para, em seu parágrafo único, estabelecer dois critérios que colocam tal crédito em posição ainda mais privilegiada, violando a par conditio creditorum: o marco temporal de constituição do crédito e a exceção ao juízo universal.

O parágrafo único determina que o crédito do representante comercial, cuja decisão transite em julgado após o deferimento do processo da recuperação, não está sujeito aos seus efeitos. Está-se diante de inadmissível violação ao que dispõe o artigo 49 da Lei 11.101/2005, que estabelece como critério temporal de sujeição à recuperação judicial a existência do crédito na data do pedido, ainda que não vencido. A violação também se dá à interpretação desse mesmo dispositivo pelo Superior Tribunal de Justiça que, ao julgar o Tema 1.051, fixou a tese de que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o fato gerador da obrigação.

Isso significa, em termos práticos, que o crédito de um representante comercial constituído na mesma época que um crédito de natureza trabalhista, não se sujeitará à recuperação judicial, diferentemente deste último, deixando de incidir deságio, limitação da correção monetária, prazos de pagamento mais alongados, entre outros. E o pagamento poderá ocorrer antes, sendo determinado pelos juízos em que tramitarem as ações para cobrança dos respectivos créditos. Absolutamente nada justifica tal tratamento privilegiado.

Esse critério conferiu também verdadeiro efeito retroativo à lei, impactando os quadros de credores e planos de recuperação homologados até então, que se consubstanciam em atos jurídicos perfeitos, porque realizados em consonância com as leis vigentes ao tempo de sua elaboração, merecendo, assim, indubitável proteção constitucional.

Por todas essas razões, o artigo 53 da Lei 14.195/2021 é, em meu sentir, absolutamente inconstitucional: não obedeceu ao devido processo legislativo; criou tratamento privilegiado para o crédito do representante comercial sem que houvesse justificativa lógica ou autorização constitucional para tanto; desrespeitou o ato jurídico perfeito ao pretender regular fatos pretéritos à sua vigência, gerando violação ao princípio da confiança e, por óbvio, gerando tremenda insegurança jurídica.

A vocação do Direito, como bem se sabe, é regular os fatos pendentes e futuros. Por isso, diz-se, fundamentalmente, que o Direito (e não apenas a lei) deve ter a marca da irretroatividade. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, por seu órgão plenário, reafirmou recentemente o status de cláusula pétrea desse postulado e a necessidade de sua blindagem (RE 948.634/RS — Tema 123). A única interpretação possível para compatibilizar o artigo 53 com a Constituição Federal, acaso não se declare sua inconstitucionalidade, é a que lhe confere efeitos prospectivos, respeitando o postulado da confiança e o ato jurídico perfeito.

Esse é, aliás, o sentido e a razão de ser da modulação de efeitos: assegurar a irretroatividade, especialmente nos casos em que haja mudança brusca da tutela de determinados temas, seja por lei considerada inconstitucional, seja pela mudança da jurisprudência. Não pode ser outra a solução a ser dada à situação que ora se analisa e que se amolda aos requisitos da preservação da segurança jurídica, possuindo excepcional interesse social. Ou se declara a inconstitucionalidade do artigo 53 da Lei 14.195/21, que é a solução que me parece mais correta, ou, no mínimo, confere-se interpretação conforme a Constituição, para que a norma se restrinja aos representantes comerciais pessoas físicas e seja aplicável somente às recuperações e falências processadas após a sua entrada em vigor.

Além dessas graves inconstitucionalidades, o efeito que decorre da lei está na absoluta contramão do que foi seu objetivo primeiro: melhorar o ambiente de negócios no país, o que se faz privilegiando a segurança jurídica, por meio do fomento a um cenário de estabilidade, previsibilidade e confiança nas leis e nas instituições deste país.

 


[1] Em linguagem coloquial, tais normas, vindas de "contrabando", são conhecidas por "jabutis".

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