Opinião

A repercussão geral e a vinculação da administração tributária

Autor

  • Nina Pencak

    é advogada sócia do escritório Mannrich e Vasconcelos Advogados doutoranda e mestre em Finanças Públicas Tributação e Desenvolvimento pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) professora da pós-graduação lato sensu em Direito Tributário do IDP ex-assessora de Ministro no STF e cofundadora do coletivo jurídico Elas Discutem.

20 de fevereiro de 2022, 7h12

Com a sistemática da repercussão geral como requisito de admissibilidade dos recursos extraordinários, instituída pela EC nº 45/2004, e a sucessiva adoção de teses de julgamento, o processo de objetivação do controle concreto tornou-se ainda mais claro. O CPC/73, alterado pela Lei nº 11.418/2006, definiu a repercussão geral como a "existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa", e, do mesmo modo, dispõe o artigo 1.035, §1º, do CPC/2015.

Os números referentes às repercussões gerais impressionam. De acordo com dados do STF, nos últimos seis anos, entre fevereiro/2016 e dezembro/2021, 344 recursos com repercussão geral reconhecida foram julgados pelo Plenário, sendo 108 casos tributários [1]. Por sua vez, no mesmo período, foram aprovadas cinco súmulas vinculantes, duas delas tributárias [2]. Foram fixadas 54 vezes mais teses em REs do que súmulas em matéria tributária, o que demonstra uma tendência da corte em substituir a aprovação de enunciados sumulares pelas teses.

Essa comparação choca e pode causar uma primeira impressão equivocada: a de que o STF, ao julgar recursos extraordinários, resolveria as questões neles postas com alto grau de definitividade, como acontece com a aprovação de súmulas vinculantes.

No entanto, os acórdãos de REs com repercussão geral, diferentemente das súmulas vinculantes e das ações de controle abstrato de constitucionalidade, não possuem efeitos vinculantes erga omnes automáticos, devido ao artigo 52, X, da Constituição. Assim, para que a declaração de inconstitucionalidade em recurso extraordinário venha a vincular automaticamente a Administração, faz-se necessário que o Senado edite uma resolução suspendendo a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal [3]Ressalta-se que, apesar da previsão do artigo 52, X, o Senado não é obrigado a editar a resolução e suspender  lei julgada inconstitucional, sendo essa uma decisão discricionária, como já decidido há muito pelo STF [4].

A nosso ver, a existência de um tratamento diferenciado, quanto à vinculação, entre as formas de controle de constitucionalidade é um dos problemas mais urgentes a serem superados para a evolução da teoria dos precedentes. Para solucioná-lo, faz-se crucial reconhecer a mutação constitucional do artigo 52, X, ponto que abordaremos brevemente no presente artigo, citando exemplos que comprovam a distorção da inexistência de vinculação automática da Administração às decisões em repercussão geral, bem como seus impactos para o Direito Tributário.

O tema não é novo. A mutação do artigo 52, X, já foi debatida pelo Plenário do STF quando do julgamento da Reclamação (Rcl) nº 4.335, iniciado em 2007 e finalizado em 2014 [5]. O relator, ministro Gilmar Mendes, propôs que se conferisse nova interpretação ao dispositivo, de modo que a resolução do Senado passaria a servir tão somente para publicizar as decisões do STF em controle concreto. A resolução, portanto, deixaria de ser uma condição dos efeitos vinculantes erga omnes dessas decisões, proposta que, à época, foi acompanhada apenas pelo ministro Eros Grau.

Diante da recusa da maioria em chancelar a tese da mutação, o relator, então, readequou o seu voto pela procedência da reclamação diante de superveniência de súmula vinculante sobre a matéria. No entanto, na ocasião, o Plenário concordou que as decisões em controle concreto possuem eficácia ultra partes e efeitos expansivos, mas sem maioria quanto à sua vinculação erga omnes automática.

Assim, considerando que a Rcl 4.335 teve seu julgamento iniciado pouco antes do fim da vacatio da Lei nº 11.418/2006, que regulamentou a repercussão geral, é imprescindível que o STF revisite o tema da mutação do artigo 52, X, à luz dos impactos da RG para o controle de constitucionalidade.

Tal necessidade é corroborada pelo fato de que, atualmente, vige o artigo 927, III, do CPC/2015, que afirma que "os juízes e tribunais observarão os acórdãos (…) em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos". O CPC se omite, porém, acerca da vinculação da Administração às RGs, o que gera um sistema incompleto de decisões vinculantes: o juiz é obrigado a respeitá-las, mas a Administração, não.

A urgência em se equipararem os efeitos das decisões em repercussão geral às decisões em controle abstrato e às súmulas vinculantes se intensifica justamente porque, conforme comprovam os números expostos, a aprovação de súmulas vinculantes parece ter caído em desuso. Esse fenômeno decorre do expresso temor do STF em relação ao aumento de reclamações constitucionais: quanto mais súmulas forem aprovadas, mais reclamações serão cabíveis, e a reclamação, atualmente, é a terceira maior classe processual em tramitação, sendo 3.027 casos, atrás apenas dos AREs (9.723) e REs (3.746) [6].

A resistência da corte em relação à aprovação de súmulas vinculantes ficou evidente na manifestação da ministra Cármen Lúcia na PSV 132:

"Dados estatísticos disponíveis no sítio deste Supremo Tribunal revelam que a média de reclamações ajuizadas nos três anos anteriores à edição da primeira súmula vinculante em 2007 é de 779 processos, passando para a média de 1.613 reclamações nos três anos seguintes, pelo que a edição de 27 enunciados de súmula vinculante no período mencionado resultou em aumento de mais de 100% no ajuizamento desse instrumento de garantia das decisões deste Supremo Tribunal.
Em 2015, quando editado o maior número de súmulas vinculantes no período de um ano (16 súmulas vinculantes), o acervo deste Supremo Tribunal teve acréscimo de quase mil reclamações (3.273 reclamações ajuizadas em 2015) em comparação com 2014 (2.375 reclamações em 2014), permanecendo o ajuizamento acima de 3 mil reclamações por ano desde então.
A inegável correspondência entre o advento de súmula vinculante e a quantidade de reclamações ajuizadas exige cautela na utilização desse instrumento" [7].

De modo similar já havia se pronunciado o ministro Teori Zavascki na Rcl 4.335:

"O mesmo sentido restritivo há de ser conferido à norma de competência sobre cabimento de reclamação. É que, considerando o vastíssimo elenco de decisões da Corte Suprema com eficácia expansiva, e a tendência de universalização dessa eficácia, a admissão incondicional de reclamação em caso de descumprimento de qualquer delas, transformará o Supremo Tribunal Federal em verdadeira Corte executiva, suprimindo instâncias locais e atraindo competências próprias das instâncias ordinárias. Em outras palavras, não se pode estabelecer sinonímia entre força expansiva e eficácia vinculante erga omnes a ponto de criar uma necessária relação de mútua dependência entre decisão com força expansiva e cabimento de reclamação. (…)".

E, como se vê, o temor da corte em relação ao aumento do acervo de reclamações atinge tanto a aprovação de súmulas vinculantes, veículo que concederia às decisões em recursos extraordinários a eficácia imediata em face da Administração, quanto a atribuição de efeitos vinculantes erga omnes automáticos às decisões proferidas sob a sistemática da RG.

Há, pelo menos, dois bons motivos para que esse temor seja afastado: o primeiro consiste no fato de que efeitos vinculantes e erga omnes não se confundem com o cabimento de reclamação; o segundo é o de que, ainda que isso fosse verdade, o aumento do acervo processual não pode, nem deve, ser utilizado como fundamento para a manutenção de um sistema que gera litigiosidade excessiva, insegurança jurídica e situações extremamente anti-isonômicas, tudo que se pretende evitar com a adoção de um sistema de precedentes.

Tanto é assim que o próprio ministro Teori Zavascki, ao julgar, em 2016, a ADI 2.418, de sua relatoria, afirmou que:

"A distinção restritiva, entre precedentes em controle incidental e em controle concentrado, não é compatível com a evidente intenção do legislador, já referida, de valorizar a autoridade dos precedentes emanados do órgão judiciário guardião da Constituição, que não pode ser hierarquizada simplesmente em função do procedimento em que a decisão foi tomada. Sob esse enfoque, há idêntica força de autoridade nas decisões do STF tanto em ação direta quanto nas proferidas em via recursal, estas também com natural vocação expansiva, conforme reconheceu o STF no julgamento da Reclamação 4.335, ministro Gilmar Mendes, Dje 22.10.14, a  evidenciar que está ganhando autoridade a recomendação da doutrina clássica de que a eficácia erga omnes das decisões que reconhecem a inconstitucionalidade, ainda que incidentalmente, deveria ser considerada 'efeito natural da sentença' (…)".

E o Plenário do STF, na ADI 3.406, analisada em 2017, voltou a discutir a aproximação absoluta de ambos os controles de constitucionalidade e a mutação do artigo 52, X, foi novamente levantada pelo ministro Gilmar Mendes sem adesão majoritária.

Também não é a primeira vez que abordamos o tema. Rememoramos que, após o julgamento do RE 576.967, em que foi declarada a inconstitucionalidade da incidência de contribuição previdenciária do empregador sobre o salário-maternidade, a Receita Federal emitiu nota afirmando que, até que houvesse manifestação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a decisão teria efeitos apenas entre as partes. Além disso, a reiterada recusa das autoridades administrativas ao cumprimento da decisão do RE 330.817, que reconheceu a imunidade de e-books e e-readers, levou à aprovação da SV 57. Citamos, ainda, as 24 ADIs propostas pela PGR, em face de leis de ITCMD de 24 estados, a fim de que as administrações fazendárias estaduais implementassem a decisão do STF no RE 851.108 [8].

Vale mencionar, também, a polêmica decisão na ADC 49 [9], em que a corte definiu ser inconstitucional a incidência de ICMS sobre transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular, caso que deu origem a debates sobre direito a creditamento e cuja modulação de efeitos está pendente. Entretanto, a matéria já havia sido decidida meses antes em repercussão geral no ARE 1.255.885, que transitou em julgado sem grande alarde, uma vez que o descumprimento pelos estados adiou temporariamente as complexas discussões que são enfrentadas pelo tribunal na ADC.

Todos esses são exemplos das nefastas consequências de coexistirem dois modelos de controles de constitucionalidade em pleno vigor no país, mas com efeitos diferentes. Há o estímulo à litigiosidade, com a rotineira impetração de mandados de segurança para cumprimento das decisões do STF, na medida em que os órgãos administrativos, responsáveis pela constituição dos créditos tributários, não cumprem espontaneamente as decisões em repercussão geral e continuam a autuar. Além disso, os temas já decididos em repercussão geral acabam retornando ao Supremo, seja por meio de proposta de súmula vinculante ou de ações de controle abstrato de constitucionalidade.

É extremamente importante, portanto, que seja reaberta a discussão acerca da mutação constitucional do artigo 52, X, mas com enfoque no papel dos recursos extraordinários com repercussões gerais no sistema de precedentes. Por óbvio, seria melhor que o Legislativo, por emenda constitucional, revogasse o dispositivo ou introduzisse artigo que expressamente atribuísse efeitos vinculantes erga omnes à repercussão geral, igualando-a às ações de controle abstrato e às súmulas vinculantes. No entanto, concluímos ser plenamente possível que a corte, em proposta similar à do ministro Gilmar Mendes na Rcl 4.335, entenda pela mutação do artigo 52, X, para as repercussões gerais, como já fez na década de 70 para o controle abstrato [10].

O reconhecimento expresso de que as repercussões gerais vinculam não só o Judiciário, mas também os órgãos do Poder Executivo, é medida inadiável. Caso contrário, corremos o sério risco de não termos perspectivas, a curto prazo, de sedimentarmos uma teoria séria de precedentes (tributários) [11].

 


[1] Esses dados foram obtidos no site do STF. Acesso a: Repercussão Geral > Informações Consolidadas > Relatórios Prontos > Processos com repercussão geral reconhecida e mérito julgado, a cada ano, desde 2008. Dados disponíveis em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoBOInternet/anexo/RG/Reconhecida%20a%20Repercuss%C3%A3o%20Geral%20e%20Julgado%20o%20M%C3%A9rito%20-%20desde%202008.xlsx. Separamos, manualmente, dentre o número total de RGs julgadas, quais e quantas seriam tributárias, chegando a 108 casos.

[3] Não desconhecemos que a Lei nº 10.522/2002 trata das hipóteses de dispensa de recurso pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. No entanto, o artigo 19-A, III, afirma que, quando o julgamento ocorrer em sede de repercussão geral, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional deverá manifestar-se sobre as matérias abrangidas por esses dispositivos. Assim, na prática, entende-se que a manifestação da PGFN é condição para que a RFB deixe de autuar. E tal condição imposta pela lei não existe quando há resolução do Senado em controle difuso, súmula vinculante ou quando o controle de constitucionalidade é abstrato. Apenas nessas hipóteses, o cumprimento da decisão pela RFB é automático.

Destaco, ainda, que não ser possível afirmar que todos os órgãos do Poder Executivo de Estados, DF e municípios possuem legislação análoga, o que faz com que o cumprimento das decisões em repercussão geral fique a critério da própria Administração distrital, estadual e municipal, ou seja judicializado.

[4] Vide voto do ministro Victor Nunes Leal no MS 16.512 (Tribunal Pleno, relator ministro Oswaldo Trigueiro, julgado em 25.05.1966).

[5] STF, Tribunal Pleno, Rcl nº 4335, relator ministro Gilmar Mendes, DJe 22.10.2014.

[9] STF, Tribunal Pleno, ADC 49, relator ministro Edson Fachin, DJe 04.05.2021.

[10] E a atuação da Corte nesse sentido não seria novidade. Ressalta-se que as decisões em controle abstrato também dependiam de resolução do Senado para terem efeitos vinculantes erga omnes, com base no artigo 42, VII, da EC nº 1/1969. No entanto, no Processo Administrativo nº 4.477/1972, o Presidente do Tribunal definiu que não haveria mais remessa de comunicação ao Senado, mas apenas às autoridades prolatoras do ato julgado inconstitucional. E assim nasceram os efeitos vinculantes erga omnes das decisões em controle abstrato, o que foi positivado com a introdução do artigo 175 no Regimento Interno, em 1980, e, posteriormente, com o artigo 102, §2º, na Constituição de 1988. Sobre o tema ver: Victor Marcel Pinheiro, Decisões vinculantes do STF: a cultura de precedentes, Ed. Almedina, 2021, p. 56.

[11] Agradeço, imensamente, aos acadêmicos Breno Vasconcelos e Victor Marcel Pinheiro, pela leitura deste artigo e pelos debates sobre teoria dos precedentes.

Autores

  • é doutoranda e mestre em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), sócia do escritório Mannrich e Vasconcelos Advogados, ex-assessora de Ministro no STF, cofundadora do coletivo jurídico Elas Discutem e professora da pós-graduação lato sensu em Direito Tributário do IDP.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!