Opinião

A LC 190/2022 à luz da voluntas legis e da voluntas legislatoris

Autores

  • Rodrigo Pires

    é advogado no escritório William Freire Advogados Associados pós-graduado em Direito Tributário pela FGV mestre em Direito pela PUC-MG e professor do IEC PUC Minas.

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  • Mikael Pereira Macêdo

    é pós-graduando MBA em Direito Tributário pelo Centro de Estudos em Direito Negócios (Cedin) e pesquisador do Núcleo de Estudos em Tributação e Empreendedorismo (Nete PUC Minas).

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  • Sara Stéfanas Evangelista

    é contadora advogada em Direito Tributário e membra e pesquisadora do Centro de Estudos de Mercado de Capitais e Financeiro (Cemc).

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17 de fevereiro de 2022, 13h47

O ICMS-Difal corresponde ao diferencial de alíquota do ICMS que é cobrado em operações com mercadorias ou prestações de serviços interestaduais. No plano do federalismo fiscal, surgiu como uma divisão de arrecadação para tratamento mais justo entre os estados e o Distrito Federal.

Com o avanço do comércio eletrônico, diversas operações que antes ocorriam de forma incomum com consumidores finais não contribuintes habituais do imposto passaram a ocorrer com grande intensidade. Dessa forma, estados ditos consumidores perderam arrecadação. No afã de resolver o prejuízo arrecadatório enfrentado, firmaram o Protocolo ICMS nº 21/2011, que regulava, para as entidades acordantes, a exigência da parcela do ICMS pelo estado de destino da mercadoria nas operações feitas por meio de internet, telemarketing ou showroom.

Face a ausência de previsão constitucional disciplinadora de tal cobrança e da ausência de competência constitucional dos estados-membros para instituir novas regras de cobrança do ICMS, entre outros fundamentos, o Protocolo ICMS nº 21/2011 foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em 17/9/2014 (ADI 4.628, relator ministro Luiz Fux). Assim, como forma de regularizar as "distorções no equilíbrio econômico" entre os estados e o Distrito Federal, foi publicada a Emenda Constitucional nº 87/2015, que alterou os incisos VII e VIII do §2º do artigo 155 da Constituição, e positivou o Difal para ser aplicado também nos casos em que os destinatários fossem consumidores finais não contribuintes habituais do ICMS.

Após a EC nº 87/2015, os estados celebraram o Convênio ICMS nº 93/2015, com a finalidade de dispor acerca "(d)os procedimentos a serem observados nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final não contribuinte do ICMS, localizado em outra unidade federada", e passaram a cobrar referido imposto amparando-se nesse convênio.

No julgamento conjunto do RE 1.287.019 (Tema 1.093) com a ADI 5.469, em 24 de fevereiro de 2021, o STF julgou inconstitucional as cláusulas primeira, segunda, terceira, sexta e nona do referido convênio, afirmando que a cobrança do Difal para consumidor final não contribuinte habitual demandava a edição prévia de lei complementar federal que tratasse das regras gerais do imposto.

Em 5 de janeiro deste ano, foi publicada a Lei Complementar 190/2022, que alterou a Lei Complementar 87/1996 (Lei Kandir) e estabeleceu as regras gerais para a cobrança do ICMS-Difal nas operações destinadas a consumidor final não contribuinte habitual do ICMS. Ademais, embora não conste da ementa, referida lei também disciplina o tratamento a ser observado para os consumidores finais contribuintes habituais do ICMS.

Referida lei complementar federal estipula, em seu artigo 3º, que ela entrará em vigor na data de sua publicação, mas observará, quanto aos efeitos, "o disposto na alínea 'c' do inciso III do caput do artigo 150 da Constituição Federal". Com efeito, além de respeitar a anterioridade nonagesimal prevista no artigo 150, III, "c", da Constituição, a Lei Complementar nº 190/2022 deve respeitar também a anterioridade anual prevista no artigo 150, III, "b", também da Constituição.

Como bem explica Tercio Sampaio Ferraz Junior [1], "o fundamento de uma teoria da interpretação perpassa pelo problema de se encontrar o método a ser aplicado em busca de uma interpretação dita verdadeira" (Ferraz Junior, 2019).

Nesse sentido, surgem as correntes da voluntas legis (vontade da lei) e da voluntas legislatoris (vontade do legislador) para responder a questão do "fator responsável pelo sentido de unidade último e determinante do sistema" (Ferraz Junior, 2019, p. 223).

A corrente da vontade do legislador, também chamada de subjetivista, busca apreender a norma a partir da compreensão do raciocínio do legislador ao emitir a regra, privilegiando, assim, métodos que busquem a raiz da criação da norma, em que se possa alcançar as intenções do legislador com a propositura de cada dispositivo que compreenda a regra (tais como o método histórico, por exemplo).

Por sua vez, a corrente da vontade da lei (igualmente chamada de corrente objetivista) busca compreender a norma jurídica a partir da assimilação do seu sentido próprio, sentido este que se vincula mais ao momento atual de sua vigência (aspectos sociais) do que propriamente ao interesse do legislador no momento da edição da regra. Prioriza, para sua aplicação, métodos que demonstrem as condicionantes sociais de aplicação da regra, do qual o método sociológico se faz de exemplo (Ferraz Junior, 2019).

No tocante à Lei Complementar 190/2022, qual interpretação seria mais adequada?

A título argumentativo, poder-se-ia levantar a hipótese de que o legislador complementar, apesar de ter mencionado a observância à alínea "c" do inciso III do artigo 150, da Constituição, quis, em verdade, determinar vacatio legis de 90 dias para a produção de efeitos da referida lei. Logo, a intenção do legislador (voluntas legislatoris) não seria aplicar o princípio da anterioridade (anual e nonagesimal) à legislação complementar, mas tão somente o de estipular prazo para a eficácia das modificações, assim como o prazo constante do artigo 24-A, §4º, da Lei Kandir, incluído pela LC nº 190/2022.

Essa argumentação, inclusive, vem sendo defendida pelos estados e guarda pertinência com a estrita observância da justificativa no PLP nº 32/2021 [2], quando se afirma que "(a) nova lei complementar resguardará vacatio legis de 90 dias, contados da publicação". Ocorre que esse argumento não guarda verdadeira pertinência com a real intenção do legislador formalizada no decorrer do processo legislativo.

Ainda que se pudesse cogitar que o legislador, em verdade, pretendeu dizer outra coisa da que havia sido posta na legislação complementar federal, o resultado de todo o processo legislativo culminou no artigo 3º da Lei Complementar nº 190/2022, que determina a produção de efeitos apenas quando satisfeito o requisito da alínea "c" do inciso III do artigo 150 da Constituição.

Não há como pretender dizer que o legislador não sabe redigir a regra. Conforme o artigo 53 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, toda proposta de lei (lato sensu) passa necessariamente pela análise de comissões, entre elas, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, que analisa, entre outros aspectos, a constitucionalidade e a técnica legislativa, situação essa que não fugiu ao presente caso. Ademais, a norma jurídica passa por relatórios, discussões, votações, emendas, relatórios das emendas, destaques, entre outras medidas que permitem apurar e produzir hermeticamente o produto do pensamento legislativo no texto legal.

Assim, ainda que se cogitasse de pensamento ou entendimento contrário de determinado propositor ou relator da proposta, essa foi debatida exaustivamente até o encaminhamento para sanção pelo presidente da República. Dessa forma, não há como se considerar que o fruto da atividade legislativa não representa aquilo que deve ser verdadeiramente interpretado e levado em consideração pelo intérprete.

Ademais, consoante se disse anteriormente, poder-se-ia cogitar a hipótese de que o legislador complementar, apesar de ter mencionado a observância à alínea "c" do inciso III do artigo 150 da Constituição, quis, em verdade, determinar vacatio legis de 90 dias para a produção de efeitos da referida lei complementar. Porém, pelo que se demonstrou no trâmite do processo legislativo bicameral, verifica-se que não foi o que ocorreu, na medida em que os próprios legisladores trazem entendimento de necessária observância às anterioridades nonagesimal e anual para o referido diploma normativo.

Inicialmente, a Emenda nº 4, vinculada ao PLP nº 32/2021 [3], requereu que o então artigo 4º do projeto de lei complementar passasse a ter a seguinte redação: "Artigo 4º — Esta Lei Complementar entra em vigor na data de sua publicação, produzindo efeitos a partir do primeiro dia do ano seguinte ao de sua publicação e após decorridos noventa dias desta".

Em sede de justificação da emenda, o propositor entendeu "ser inconstitucional o artigo que trata da vigência, tendo em vista que, de acordo com as alíneas 'b' e 'c', do inciso III do artigo 150, da Constituição, é proibido cobrar tributos no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou e antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada essa lei gravosa". Dessa forma, entendeu o legislador que os princípios da anterioridade anual e nonagesimal devem ser aplicados quando da publicação da Lei Complementar 190/2022.

Ato contínuo, no substitutivo [4] ao projeto de lei complementar pelo relator na Câmara dos Deputados, inseriu-se o artigo 24-A, §4º, e o artigo 3º, que dispõem, respectivamente, o que segue:

"Artigo 24-A  Os Estados e o Distrito Federal divulgarão, em portal próprio, as informações necessárias ao cumprimento das obrigações tributárias, principais e acessórias, nas operações e prestações interestaduais, conforme o tipo (2021, p. 5).
§4º. Para a adaptação tecnológica do contribuinte, o inciso II do § 2º do artigo 4º, a alínea b do inciso V do caput do art. 11 e o inciso XVI do caput do artigo 12 desta Lei Complementar somente produzirão efeito no primeiro dia útil do terceiro mês subsequente ao da disponibilização do portal de que trata o caput deste artigo, respeitado o disposto na alínea c do inciso III do caput do art. 150 da Constituição Federal.
Artigo 3º  Esta Lei Complementar entra em vigor na data de sua publicação, observado, quanto à produção de efeitos, o disposto na alínea c do inciso III do caput do artigo 150 da Constituição Federal".

Isto é, novamente o legislador reforçou a sua preocupação com a observância da anterioridade, seja ela a noventena ou anual.

Demais disso, em parecer de Plenário [5] vinculado à apreciação do PLP nº 32/2021 (cuja apresentação ocorreu em 16 de dezembro de 2021, portanto, no exercício financeiro anterior), menciona o relator que "tal norma somente terá efetividade após noventa dias de sua publicação".

Do próprio texto do substitutivo, conjugando-se sua análise com o parecer apresentado (que, inclusive, se encontra no mesmo documento legislativo), verifica-se que a menção à efetividade da lei complementar após 90 dias da sua publicação representa, exatamente, a menção à anterioridade nonagesimal presente nos artigos supracitados. Pode-se ainda constatar deste documento que a menção à anterioridade anual se revelou inexistente justamente devido à desnecessidade, uma vez que o próprio parecer de Plenário foi apresentado em 16/12/2021, isto é, com tempo de sobra para votação em ambas as casas e sanção do presidente da República antes do final do exercício financeiro.

Por fim, já no retorno do substitutivo ao PLP nº 32/2021 e em novo parecer [6] para votação das modificações introduzidas na casa revisora (Câmara dos Deputados), a análise do referido documento menciona que: "No entanto, a parte final do § 4º do novel artigo 24-A se demonstra dispensável, uma vez que o princípio da anterioridade plena já está expressamente observado pelo artigo 3º do Substitutivo. A nosso ver, o prazo mínimo de dois meses prescrito no mesmo § 4º é tempo suficiente para que os contribuintes se adaptem ao portal e passem então a utilizá-lo para o recolhimento do Difal".

Assim, verifica-se que, de fato, em toda a passagem do projeto da Lei Complementar 190/2022 aqui comentada, o legislador não só entendeu pela plena observância do princípio da anterioridade, seja anual, seja nonagesimal, como ainda teve convicção de que a sanção da nova lei seria realizada ainda no decorrer do exercício financeiro da proposição (isto é, 2021). Desse modo, a voluntas legislatoris privilegiou a obediência ao comando constitucional veiculado pelas alíneas "b" e "c" do inciso III do artigo 150 da Constituição Federal.

As doutrinas da voluntas legis e da voluntas legislatoris, em que pese se proponham a buscar a interpretação verdadeira a ser seguida para a obtenção da norma, fraquejam no seu predomínio face à outra. "A polêmica, como se vê, pela força de seus argumentos e contra-argumentos, não se resolve" (Ferraz Junior, 2019, p. 225).

Porém, embora não haja resolução para a determinação de qual teoria sairia predominante na seara interpretativa, é certo que os adeptos de uma e de outra, no presente caso, podem ter a tranquilidade de chegar ao mesmo resultado, na medida que ambas convergem para a compreensão (ao nosso ver acertada) de que os princípios da anterioridade anual e nonagesimal devem ser aplicados à Lei Complementar 190/2022, seja porque o legislador assim intencionou, seja por expressa disposição legal.

 


[1] FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2019.

[2] BRASIL. Projeto de Lei Complementar nº 32, de 15 de março de 2021. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/plp-32-2021. Acesso em: 11/2/2022.

[3] BRASIL. Projeto de Lei Complementar nº 32, de 15 de março de 2021. Emenda nº 04, de 3/8/2021. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/plp-32-2021. Acesso em: 11/2/2022.

[4] BRASIL. Projeto de Lei Complementar nº 32, de 6 de agosto de 2021. Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei Complementar nº 32-A de 2021 do Senado Federal, apresentado em 16 de dezembro de 2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2129581&filename=RDF+1+%3D%3E+PLP+32/2021. Acesso em: 11/2/2022.

[5] BRASIL. Projeto de Lei Complementar nº 32, de 6 de agosto de 2021. Parecer de Plenário pelas Comissões de Finanças e Tributação e de Constituição e Justiça e de Cidadania ao Projeto de Lei Complementar nº 32, de 2021, proferido em 16 de dezembro de 2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2126664&filename=PPP+1+CFT+%3D%3E+PLP+32/2021. Acesso em: 11/2/2022.

[6] BRASIL. Substitutivo ao Projeto de Lei Complementar nº 32, de 17 de dezembro de 2021. Parecer, de 20/12/2021. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/plp-32-2021. Acesso em: 11/2/2022.

Autores

  • é advogado, pós-graduado em Direito Tributário pela FGV, mestre em Direito pela PUC-MG, coordenador científico do Núcleo de Estudos em Tributação e Empreendedorismo (Nete PUC Minas).

  • é pós-graduando MBA em Direito Tributário pelo Centro de Estudos em Direito Negócios (Cedin) e pesquisador do Núcleo de Estudos em Tributação e Empreendedorismo (Nete PUC Minas).

  • é contadora, advogada em Direito Tributário e pesquisadora do Núcleo de Estudos em Tributação e Empreendedorismo (Nete PUC Minas).

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