ADI nº 4.980/DF: um teste à jurisprudência penal-tributária do STF
16 de fevereiro de 2022, 10h44
Como se expressou nas últimas semanas em veículos especializados de comunicação jurídica, a pauta plenária do Supremo Tribunal Federal deste semestre incluiu processo que trouxe certa apreensão àqueles que militam no âmbito do Direito Penal-Tributário.
A saber, a previsão é que o Tribunal Pleno de nossa Corte Constitucional, no dia 10 de março, inicie o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.980/DF, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) para questionar a constitucionalidade do artigo 83, caput, da Lei nº 9.430/1996, com a redação dada pela Lei nº 12.350/2010, in verbis:
"Artigo 83 — A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e aos crimes contra a Previdência Social, previstos nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente."
Foi por intermédio da Medida Provisória (MP) nº 497/2010, posteriormente convertida na Lei nº 12.350/2010, que se acresceu o trecho "e aos crimes contra a Previdência Social, previstos nos artigos 168-A e 337-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal)".
Naquilo que atinou ao novel disciplinamento da representação fiscal para fins penais, a exposição de motivos da supracitada MP afirmou a intenção de harmonizar a "legislação previdenciária com a legislação dos demais tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil", sobretudo quanto à "necessidade de esgotamento das instâncias administrativas" para seu encaminhamento ao titular da ação penal, em "consonância com o entendimento majoritário da jurisprudência do Poder Judiciário".
Através do processo objetivo em comento, deflagrado ainda em meados do ano de 2013, o Parquet postulou a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo supratranscrito, "no que se refere aos crimes formais, especialmente o de apropriação indébita previdenciária (artigo 168-A, CP)". E, em caráter subsidiário, requereu "interpretação conforme ao dispositivo para declarar que os delitos formais, sobretudo o de apropriação indébita previdenciária, consumam-se independentemente do exaurimento da esfera administrativa".
Observamos, de imediato, que nada se questionou a respeito da extensão do dever funcional de aguardar o advento da "decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente" também para o encaminhamento de representação fiscal para fins penais relativa ao crime de "sonegação de contribuição previdenciária".
Diferente, em nosso sentir, não poderia ser, quando se considera que contribuição previdenciária é tributo (truísmo necessário!) e que a capitulação do artigo 337-A do Código Penal (CP) é fundamentalmente semelhante àqueloutra tipificação estabelecida pelo artigo 1º da Lei nº 8.137/1990, para fins de aplicação analógica da Súmula Vinculante (SV) nº 24 da Corte Suprema: "Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo".
O cerne da controvérsia, por isso mesmo, voltou-se ao pretenso enquadramento do crime de apropriação indébita previdenciária na classe dos delitos formais, para cujas consumações seriam dispensáveis as existências de prévios e definitivos lançamentos tributários.
Esperamos, porém, que a jurisprudência do STF se mantenha íntegra e coerente, expectativa esta somente concretizável mediante advento do julgamento de improcedência.
Assim entendemos em virtude do desfecho de improcedência já dado por nossa Suprema Corte à ADI nº 1.571/DF, cujo caráter dúplice implicou na proclamação de constitucionalidade da redação originária do artigo 83 da Lei nº 9.430/1996.
Naqueles autos, arguiu-se que a missão constitucional do Ministério Público, concernente ao exercício da ação penal pública, não poderia "ficar dependente da iniciativa de outros órgãos ou pessoas, salvo em casos nos quais o interesse pessoal do sujeito é considerado mais relevante pelo Estado do que a exigência de repressão da conduta ilícita".
O STF, no entanto, por ampla maioria, refutou a pretensão ministerial por considerar que: a) o disposto no artigo 83 da Lei nº 9.430/1996 destinava-se exclusivamente à oferta de notitia criminis pelos órgãos da Administração Tributária, não configurando pressuposto restritivo ou condição de procedibilidade coarctadora da atuação legal do Parquet; b) o MP poderia atuar independentemente de provocação do Fisco e até mesmo se valer de outros elementos informativos para promover a ação penal pública que lhe compete privativamente (artigo 129, incisos I, VI e VIII, da CRFB/1988 c/c artigo 26, inciso I, alínea "b", da Lei nº 8.625/1993 e artigo 8º, inciso II, da Lei Complementar nº 75/1993); e c) na hipótese de crimes tributários de resultado, como aqueles definidos no artigo 1º da Lei nº 8.137/1990, o dominus litis ainda poderia ofertar denúncia independentemente de "representação tributária", "se, por outros meios, tem conhecimento do lançamento definitivo".
Ademais, ao julgar a constitucionalidade da redação originária do artigo 83 da Lei nº 9.430/1996 sem qualquer ressalva ou condição, a Corte Suprema fê-lo também, obviamente, com relação à vedação de envio da representação fiscal para fins penais atinente aos crimes contra a ordem tributária definidos no artigo 2º da Lei nº 8.137/1990, que tipifica, à exceção do inciso II (cf. RHC nº 163.334/SC), crimes formais.
Assim o sendo, a pretensão de alcançar sorte diversa para o artigo 168-A do CP significa tentativa de revisar parcialmente a decisão plenária da ADI nº 1.571/DF e para promover verdadeira quebra da isonomia jurisdicional relativamente aos delitos capitulados pelo artigo 2º da Lei nº 8.137/1990, na hipótese de se considerar a apropriação indébita previdenciária um delito formal.
Entretanto, observamos que a jurisprudência do STF de igual modo se firmou no sentido de considerar o crime de apropriação indébita previdenciária como delito material, como sintetizou, com a mestria que lhe era peculiar, o então ministro Celso de Mello, por ocasião da decisão monocrática que proferiu no Habeas Corpus nº 167.218/SP.
Na ocasião, a Defensoria Pública da União havia impetrado o writ em face de acórdão emanado do Superior Tribunal de Justiça, com o objetivo de ver extinta a punibilidade do paciente, ante a alegada consumação da prescrição penal. Todavia, o ministro Relator distinguiu tempo da prática (artigo 4º do CP) e tempo da consumação (artigo 14, inciso I, do CP) para ir ao encontro da ratio que inspirou a Súmula Vinculante nº 24 do STF e pontificar que:
"(…) O entendimento exposto pelo E. Superior Tribunal de Justiça no acórdão ora questionado — concernente à natureza material do crime de apropriação indébita previdenciária e consequente reconhecimento de que se reputam consumados os fatos delituosos sancionados pelo artigo 168-A do Código Penal, para efeito de contagem do prazo prescricional, na data em que constituído definitivamente o crédito tributário relativo à contribuição previdenciária indevidamente apropriada — tem o beneplácito da jurisprudência firmada por esta Suprema Corte em casos similares ao da presente causa" (Inq 2.537-AgR/GO, rel. min. Marco Aurélio — Inq 3.102/MG, rel. min. Gilmar Mendes).
Prosseguindo em sua fundamentação, direcionada à denegação da ordem, fez alusão a variados outros julgados que foram ao encontro da mesma conclusão (HC 92.002/SP, rel. min. CELSO DE MELLO, RHC 132.706-AgR/SP, rel. min. GILMAR MENDES, Inq 2.757/MG, rel. min. CELSO DE MELLO, HC 145.280/SP, rel. min. EDSON FACHIN, Inq 3.175/PI, rel. min. CELSO DE MELLO e HC 148.985/SP, rel. min. LUIZ FUX).
Eis os porquês de considerarmos a ADI nº 4.980/DF como verdadeiro teste à estabilidade da jurisprudência penal-tributária de nosso Supremo Tribunal Federal, que até o presente momento mantém a administração fazendária desobrigada de remeter representações fiscais para fins penais antes que o sujeito passivo tributário tenha a oportunidade de ver sua autuação mantida por órgãos notadamente especializados em matéria tributária e reconhecidamente técnicos no exercício de suas jurisdições.
[1] Vide arts. 129, incisos I, VI e VIII, da CRFB/1988, 26, inciso I, alínea "b", da Lei nº 8.625/1993 e 8º, inciso II, da LC nº 75/1993.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!