Opinião

Textos legais importam? Uma provocação a partir da experiência da 'lava jato'

Autor

  • Lucas de Faria Rodrigues

    é procurador do Estado de São Paulo mestre e doutorando em Direito pela PUC-SP e chefe da Consultoria Jurídica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP).

15 de fevereiro de 2022, 7h14

A idade e a pesquisa têm me tornado cada vez mais cético em relação ao Direito. Tenho pensado sobre forças antagônicas que lutam pela prevalência de uma ou outra visão, sobre se essa ciência (?) tem tendido mais à proteção contra o poder arbitrário e à promoção da justiça social, ou, ao contrário, tem sido mais instrumento de manipulação e dominação, para retomar a distinção do professor Tércio Sampaio Ferraz Jr [1].

Essa minha desilusão foi acentuada recentemente pela leitura de obra do professor de Harvard Cass Sunstein, "How Change Happens" (ou, em português, "Como as Mudanças Acontecem" [2]). Não que o livro trate desse dilema pessoal, mas pode haver, a meu ver, reflexos importantes na compreensão do Direito em ao menos dois sentidos. De um lado, sobre como as normas jurídicas talvez não sejam tão importantes para mudanças sociais (não apenas elas) e, de outro lado, como fenômenos sociais podem acabar por impactar no processo de concretização das normas jurídicas — esse último viés, devo admitir, é mais uma leitura pessoal das ideias lançadas no livro e menos uma dedução direta do autor. Focarei aqui na última noção.

Será que a mesma mecânica das mudanças sociais defendida por Sunstein pode ser aplicada para compreender mudanças em processos de atribuição de sentido a textos legais? Para além de eventuais equívocos, o que leva juristas a defenderem determinada tese em um dia e mudarem suas posições tempos depois? E teses prevalentes, que dançam conforme a conveniência da sociedade?  

Na obra, Sunstein se propõe a demonstrar como, na visão dele, as mudanças sociais (friso, não as mudanças jurídicas) acontecem. No geral, essas mudanças são imprevisíveis, seja porque as pessoas falsificam muitas vezes suas preferências (diferença entre o que existe em nossas cabeças e o que estamos dispostos a dizer ou fazer), seja porque são necessárias diversas interações específicas e muitas vezes aleatórias (depende de quem ou se alguém é visto fazendo algo e como aquilo influencia outras ações). Algo dentro das cabeças das pessoas deve ser desbloqueado, a partir de uma "liberação" concedida por aqueles que primeiro agiram. Se as condições estiverem corretas, haverá mudança; se não estiverem, não haverá. Assim, grandes movimentos sociais não podem ser antecipados, pois nunca se saberá ao certo quem irá dizer o que para quem e em quais circunstâncias. A história, portanto, não tem um curso inevitável pequenos fatores, aleatórios, fortuitos e eventualmente conectados conduzem esse caminho.

Essa é uma simplificação extrema das ideias de Sunstein, mas o ponto aqui é se a mesma fórmula poderia ser aplicada para compreender o processo de concretização de normas jurídicas. O que me parece, como hipótese, é que o Direito não tem sido capaz, ao contrário do que Tércio indica como uma finalidade dos procedimentos institucionalizados, de neutralizar a pressão dos fenômenos sociais, quando isso é exigido. Tampouco a doutrina (jurídica) tem sido capaz de evitar abusos e desvirtuamentos.

Quando faço essa proposta, estou claramente dando um passo para fora da dogmática jurídica  e seu olhar interno ao Direito, ao mundo do dever ser  para observá-lo de fora, a partir daquilo que efetivamente é ou tem sido o Direito. Isso faz das minhas provocações algo mais próximo da Sociologia do Direito e da realidade social relativa ao sistema de aplicação das normas jurídicas. 

Claro, o espaço aberto nesta ConJur não é suficiente  e nem mesmo adequado  para investigações acadêmicas profundas. Porém, possibilita a proposição de questões e, quem sabe, ver concretizada uma pesquisa futura. Nesse contexto, penso que a operação "lava jato" e as decisões jurídicas dela decorrentes proporcionam um vasto campo de compreensão da experiência social e jurídica contemporânea no Brasil. Um fértil campo para pesquisa, onde é possível testar as hipóteses lançadas aqui.

Pensei nisso ao ler o recente artigo de Fabio de Sa e Silva, professor da Universidade de Oklahoma, "From Car Wash to Bolsonaro: Law and Lawyers in Brazil’s Illiberal Turn (2014–2018)"  em português, "Da Lava-jato à Bolsonaro: Direito e Advogados na Virada Iliberal do Brasil (2014–2018)" [3]. A partir de um extenso material com entrevistas concedidas pelos principais atores da operação "lava jato", Fabio identificou uma gramática política desses atores, que defendiam teses iliberais. Por exemplo, a partir do apoio da mídia e da lógica de uma ameaça à nação causada pela corrupção, forçaram os limites da lei, como os próprios membros da operação reconheceriam tempos mais tarde em mensagens de texto trocadas pelo aplicativo Telegram, posteriormente divulgadas naquilo que se conheceu como "vaza jato".

O que proponho como hipótese é que a mudança de postura de órgãos jurisdicionais na abordagem da "lava jato", concentrada sobretudo em decisões do Supremo Tribunal Federal, se deveu menos a uma modificação (interna) no processo de construção da norma jurídica no caso concreto e mais a uma sucessão de fatores sociais aleatórios absolutamente concatenados, resultando na transformação de uma prática jurisdicional já estabelecida. Essa mudança  cuja confirmação, à evidência, dependeria de uma pesquisa empírica  resultou no fim de fato da operação "lava jato", com a atribuição de limites claros aos agentes estatais e a anulação de inúmeras condenações anteriores. Não tivessem acontecido essas pressões externas, a partir de movimentos como a aproximação do ex-juiz Sergio Moro ao governo instalado e, especialmente, quando um hacker invadiu e divulgou, por meio do site The Intercept Brasil, mensagens trocadas entre agentes estatais envolvidos na "lava jato", talvez a operação  ou a sua gramática iliberal  ainda estivesse instalada. 

O mesmo texto legal que permitiu, sobretudo nos quatro anos iniciais da operação, uma postura mais condescendente do Judiciário, encaminhou expressivas derrotas aos agentes estatais a partir de 2018. Mudaram as normas? Mudaram os fatos sociais? Tiveram juízes, desembargadores e ministros acesso a uma sabedoria elevada e perceberam erros do passado? Ou sofreram esses mesmos atores pressões externas, capazes de influir no processo de concretização?

O que as pessoas pensam sobre algo e o que realmente estão dispostas a dizer publicamente parece algo central nesta proposição. O que fazem ou dizem publicamente é produto de influências sociais e muitas vezes uma determinada posição pode ser simplesmente silenciada pelo seu entorno.  A gramática iliberal instaurada pela "lava jato" ganhou grande influência política e social e pode, eventualmente, ter dificultado que houvesse uma mudança efetiva no processo de concretização de normas jurídicas, que só viria a ocorrer mais tarde, como dito anteriormente.

Essa crítica sociológica aqui proposta retrata um pouco daquele ceticismo indicado no primeiro parágrafo do texto, mas não afasta por completo o reconhecimento de alguma importância da dogmática jurídica e do papel desempenhado pela doutrina, por exemplo. Não tenho mais a ilusão da juventude, mas sei reconhecer que há um espaço para a doutrina como um fator de constrangimento epistemológico, para usar a expressão do professor Lenio Luiz Streck, uma crítica constante como caminho à correção de rotas dos agentes estatais responsáveis por concretizar normas jurídicas. A doutrina é efetivamente uma das formas de combater o solipsismo judicial – o decidir conforme a vontade, não conforme a lei. Porém, não podemos ignorar que a dogmática pode falhar a exercer pressões internas sobre o Direito, especialmente em temas tão caros à sociedade.

 


[1] FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, decisão, dominação. 11ª ed. São Paulo: Atlas, Edição do Kindle, 2019.

[2] SUNSTEIN, Cass R.. How Change Happens. Cambridge, MA: MIT Press, Edição do Kindle, 2019.

[3] SILVA, Fabio de Sa e. From Car Wash to Bolsonaro: Law and Lawyers in Brazil’s Illiberal Turn (2014–2018). Journal of Law and Society. V. 47, Issue S1, out. 2020. Versão online. Disponível em: https://doi.org/10.1111/jols.12250. Acesso em 09 de jan. 2022.   

Autores

  • é procurador do estado de São Paulo. Graduado, mestre e doutorando em Direito pela PUC-SP e chefe da Consultoria Jurídica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP).

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