Manual de depoimento

Crime contra criança indígena demanda perícia antropológica, aponta CNJ

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13 de fevereiro de 2022, 9h47

O Conselho Nacional de Justiça detalhou nesta sexta-feira (11/2) as diretrizes do seu manual de depoimento especial de crianças e adolescentes vítimas de violência pertencentes a povos e comunidades tradicionais, como indígenas, quilombolas, ciganos e povos de terreiro.

Luiz Silveira/Agência CNJ
Luiz Silveira/Agência CNJ

O material busca traçar um perfil dos crimes cometidos contra tais crianças, com perícia antropológica, e assim permitir uma melhor compreensão pelo Judiciário.

O manual foi apresentado em um encontro virtual, feito pelo Fórum Nacional da Infância e da Juventude do CNJ, responsável pela publicação. "Agora precisamos fazer a capacitação das equipes internas e externas", assinalou a presidente do fórum, conselheira Flávia Pessoa.

A antropóloga Luciane Ouriques promoveu uma pesquisa para subsidiar a produção do manual. Ela analisou 75 processos judiciais de três Tribunais de Justiça da Amazônia Legal (TJ-MS, TJ-AM e TJ-RR), que envolviam violência contra a juventude indígena de 12 etnias diferentes.

75% das vítimas têm entre 6 e 14 anos. Dos 71 processos com vítimas indígenas, 69 se referiam a violência sexual. Em 92% dos casos, os crimes são cometidos dentro das próprias comunidades, por homens em sua maioria pertencentes à rede de parentesco das vítimas.

"O fator alcoolização, senão o único, é um dos que contribuem para determinação do fenômeno da violência nesses contextos de agressão a crianças e adolescentes", afirmou a pesquisadora.

Os laudos antropológicos buscam mostrar as práticas sociais, culturais e as parentelas, bem como a comunicação das crianças com pessoas de fora de seu grupo social. "A perícia está a serviço da proteção integral da criança e do adolescente. Ela precisa tratar da proteção no contexto desses povos comunidades, entendendo que cada um deles tem o seu próprio saber sobre o que é proteger, o que é cuidar e como construir esses sujeitos da identidade pertencente a essa etnia", disse Ouriques.

A maior parte dos processos envolve acusados indígenas, mas a perícia antropológica foi designada em apenas dois deles. "Nos deparamos com uma ideologia integracionista em que muitas vezes a perícia era descartada — tanto pelo Ministério Público ou pelo magistrado —, pois a compreensão era de que o indígena já era integrado, falava português e, portanto, não haveria necessidade do laudo", apontou Luciane.

Dentre os obstáculos às perícias estão as dificuldades operacionais para nomear e remunerar antropólogos, a qualificação de profissionais para atuar em processos judiciais e o descompasso entre os prazos exigidos pela Justiça e o tempo para finalização de um estudo.

Para o professor Assis da Costa Oliveira, do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da Universidade de Brasília (UnB) e da Faculdade de Etnodiversidade da Universidade Federal do Pará (UFPA), o tempo da antropologia e o do Judiciário não são equalizados: "A questão é como mediar o tempo necessário para se realizar um laudo de boa qualidade e exigências e urgências da Justiça criminal, sobretudo nesses casos que envolvem crianças vítimas e testemunhas de violência contra povos e comunidades tradicionais".

Já de acordo com Antonio Hilario Aguilera Urquiza, professor de antropologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), o manual chega em momento oportuno, oois indígenas convivem com violências por meio do garimpo e da extração ilegal de madeira. "A antropologia é a ciência da alteridade. Em síntese, é o exercício de procurar colocar-se no lugar do outro, para entender suas especificidades, a partir do olhar desse outro, e não do nosso olhar, eivado de eurocentrismos", pontuou.

"Se a infância e a adolescência já exigem cuidado e atenção, nosso olhar precisa se deter com mais zelo sobre meninos e meninas das comunidades tradicionais do Brasil, de modo que possamos conhecer, compreender e, principalmente, respeitar as especificidades socioculturais, linguísticas e as singularidades de cada povo e, assim, tornar possível a efetividade dos direitos diferenciados que eles precisam ter", destacou a juíza Sandra Silvestre, presidente do painel. Com informações da assessoria do CNJ.

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