Opinião

Quando a memória pesa além da conta: há soluções para a memorabilia nazista?

Autores

  • Inês Virgínia Soares

    é desembargadora federal no TRF da 3ª Região (SP) doutora em Direito pela PUC-SP com pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) especialista em Direito Sanitário pela UnB e autora do livro Direito ao(do) Patrimônio Cultural Brasileiro (Ed. Forum).

  • Marcílio Franca

    é membro do Comitê Jurídico da International Art Market Studies Association árbitro da Court of Arbitration for Art (Rotterdam Holanda) da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (WIPO) e do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul docente da Universidade Federal da Paraíba ex-professor visitante das faculdades de Direito das Universidades de Pisa Turim e Ghent pós-doutor em Direito no Instituto Universitário Europeu (Florença Itália) e procurador-chefe da força-tarefa do Patrimônio Cultural do Ministério Público de Contas da Paraíba.

11 de fevereiro de 2022, 7h14

Há poucos dias, veio à tona na imprensa internacional a notícia de um imbróglio judicial em torno do regaste de uma enorme águia de bronze com uma suástica entre as garras, originária de um encouraçado nazista que naufragou em águas uruguaias, em 13 de dezembro de 1939, após a  Batalha do Rio da Prata, contra os britânicos.

A gigantesca águia ficava bem na proa do Panzerschiff Admiral Graf Spee, majestoso encouraçado da Marinha alemã de 11,7 mil toneladas, 185 metros e 14 canhões, que, antes de afundar, abateu nove navios mercantes aliados no Atlântico Sul.

A manchete despertou paixões e reflexões instigantes sobre a (des)vinculação com a memória de atrocidades e a gestão, circulação, exibição e comercialização de bens que simbolizam um período que não merece ser exaltado e que nunca mais deve se repetir.

Em 1940, os direitos sobre os destroços do Graf Spee foram comprados do governo alemão por espiões britânicos, usando uma empresa de fachada uruguaia, com o objetivo de estudar a tecnologia e o design de última geração da belonave. Em 1973, o Uruguai editou um decreto reivindicando a propriedade de todos os naufrágios em suas águas.

O Graf Spee permaneceu adormecido no fundo do Rio da Prata por 67 anos, até que uma empresa privada, em parceria com o governo uruguaio, recuperou a escultura de quase três metros e 400 quilos, em 2006. Após restaurada, a peça foi brevemente exposta em Montevidéu, até ser levada a um depósito naval depois que a Alemanha protestou contra a exibição de militaria nazista. Recentemente, o Judiciário uruguaio afirmou que a águia deveria ser leiloada para indenizar os custos do seu resgate subaquático.

O comércio desse tipo de parafernália nacional-socialista costuma movimentar elevados montantes e suscita muitas questões éticas e jurídicas. Não é incomum encontrar memorabilia nazista autêntica ou falsa em mercados de pulgas, casas de leilões, sites especializados e coleções privadas. Em outubro, por exemplo, a Polícia Civil do Rio de Janeiro encontrou uma espantosa coleção de objetos nazistas ao revistar a casa de um suspeito de estrupro. Um pouco antes, um vasto tesouro nazista foi achado num quarto secreto de uma casa em Buenos Aires. Com frequência há protestos contra esse tipo de comércio, especialmente por entidades judaicas, associações de vítimas do Holocausto, estudiosos e organizações de direitos humanos, que trabalham com o reposicionamento da memória como medida reparatória e de garantia de não repetição.

Se transportássemos o caso uruguaio e sua pesada águia nazista para o cenário brasileiro, não encontraríamos solução fácil.

Já abordamos, em outro texto publicado na ConJur, o mosaico jurídico para compreensão da exploração do patrimônio cultural subaquático, desde a necessidade de autorização da Marinha e do Iphan para qualquer exploração de sítios de naufrágio, passando pela questão nada pacífica acerca da propriedade dos bens submersos até as características de sítios culturais/arqueológicos e as nuances do resgate de tais artefatos, que muitas vezes profanam a memória dos mortos ou sobreviventes do naufrágio.

Além da natureza de bem cultural submerso, surgiriam algumas questões instigantes ligadas à memória da águia nazista resgatada, tais como: o que fazer com artefatos de valor cultural, artístico e histórico que lembram o passado de atrocidades, como a escravidão, a exploração de indígenas ou o nazismo? Os artefatos que ilustram e dão vida às recordações dessas atrocidades podem figurar nas praças ou circular no mercado de antiguidades e em galerias e museus, desde que sejam coadjuvantes "discretos" da memória coletiva, com características que não lhes permitam despertar lembranças ou ideias positivas? Ou não caberia falar em papel menor ou de adjuvante para esses artefatos em razão da mensagem de violência que veiculam? E mais: a proibição de que esses bens ocupem espaços públicos ou sejam de conhecimento da coletividade não seria uma restrição indevida à liberdade de expressão cultural? Falamos daquele feixe da liberdade relativo ao pleno acesso a bens e expressões culturais pela coletividade.

O Supremo Tribunal Federal tem reafirmado em diversos julgados a importância da pluralidade de ideias e de sua livre veiculação na vivência da democracia. Ao mesmo tempo, a corte constitucional também rechaça condutas antissemitas e as distingue da liberdade de expressão, desde o caso Ellwanger, o leading case julgado em 2004 que versava sobre a edição e comercialização de livros com conteúdo antissemita.

De acordo com a Lei 7.716/89, é crime punível com multa e até dois anos de cadeia "fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo". Havendo essa finalidade de divulgação, haverá o delito. De outro giro, em norma voltada ao combate de crimes financeiros e de corrupção, a Lei Anticrime (Lei nº 13.964/19) alterou o Código de Processo Penal (CPP) para prever que, no caso de decretação de perdimento, obras de arte ou outros bens de relevante valor cultural ou artístico sejam "destinadas a museus públicos, se os crimes não tiverem vítima determinada" (artigo 124-A). Como há, em todo mundo, coleções valiosas com referências nazistas em posse de particulares, o juiz criminal estaria diante de uma decretação de perdimento bastante peculiar. A comercialização e a destinação de uma peça nazista devem enquadrar-se, portanto, em um cenário de adoção de medidas reparatórias no campo da memória, como forma de valorização, respeito e proteção de grupos vulneráveis e repactuação da memória coletiva.

Temos, em Curitiba, um importante Museu do Holocausto. Talvez, numa possibilidade remota e  passível de controvérsias, uma peça dessas  como a águia naufragada ou artigos dados em perdimento numa ação criminal  pudesse ir para aquele acervo. Mas, assim como no Uruguai, no caso de bens submersos, há uma lei brasileira, a Lei nº 7.542/86, que prevê a necessidade de indenização àqueles que descobriram/resgatam os bens e a possibilidade de alienação das descobertas de naufrágios. Portanto, se estivéssemos tratando de um caso nacional e se considerássemos apenas esse diploma, seria possível a Administração Pública brasileira alienar bens nazistas, como aquela águia de bronze? A Administração teria meios de exigir que a águia não servisse de alvo de culto, propaganda e peregrinação? 

Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que, não existindo no Brasil o tombamento de uso, o instituto do tombamento não se prestaria, isoladamente, a condicionar as finalidades do eventual adquirente. Um mero leilão, seguindo as regras da Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei 14.133/2021), também não teria o efeito de impedir o desvirtuamento das finalidades do bem alienado. O instituto da desapropriação poderia ser um instrumento útil para garantir a função social do bem cultural.

Além do mais, de acordo com a "Recomendação da Unesco referente à Proteção e Promoção dos Museus e Coleções, sua Diversidade e seu Papel na Sociedade", aprovada em 17 de novembro de 2015, todos os museus e coleções devem contribuir para o aprimoramento dos direitos humanos. Nesse diapasão, quaisquer ações e iniciativas de recordação de um passado nefasto só fazem sentido, dentro de uma perspectiva de tolerância e respeito, se contribuírem para o "nunca mais", para que as atrocidades praticadas jamais voltem a se repetir.

Em Viena,  o museu Haus der Geschichte Österreich (Casa da História da Áustria) inaugurou em dezembro uma exposição temporária (que vai atéo próximo dia 17) exatamente sobre tema: "Eliminando Hitler  do porão ao museu: o que fazer com as recordações nazistas?". Na mostra, os curadores exibem alguns dos itens relacionados ao nacional-socialismo que o museu recebe semanalmente, muitas vezes de forma anônima. Os objetos da exposição incluem uma baioneta da Wehrmacht, álbuns de fotografias de soldados na frente de batalha e até um microfone usado por Adolf Hitler em seu primeiro discurso após a anexação da Áustria.

Ao final do percurso expositivo, os visitantes são instados a responder numa folha de papel o que o museu deve fazer com aquele tipo de material: descartar, exibir, ignorar, esconder, destruir, vender?

A provocação aos visitantes da exposição integra o conjunto de iniciativas pelo mundo  de governos, corporações e grupos injustiçados  no sentido de priorizar as medidas de reparação simbólica e de reposicionar a memória coletiva, mesmo que isso custe a retirada de obras de arte/monumentos inseridos em espaços públicos ou a aposentadoria/não exibição de bens de valor cultural e econômico.

Em janeiro deste ano, o rei da Holanda anunciou a aposentadoria da carruagem dourada da realeza, veículo utilizado em cerimônias oficiais desde 1901 e que passou os últimos cincos anos sendo restaurado. A carruagem virou o epicentro de debates sobre colonialismo e racismo estrutural, uma vez que, em sua lateral, havia um painel com a imagem de homens negros ajoelhados diante de seus senhores brancos e de crianças brancas supostamente civilizadas que doavam livros a crianças negras.

Acertos de contas com o passado nunca são lineares e vêm sempre repletos de paradoxos e incoerências, sejam estes protagonizados por governos ou por corporações e indivíduos. A carruagem holandesa era veículo que servia menos para transportar e mais para ostentar, assim como a águia nazista era um pássaro que não estava vocacionado a voar. As duas foram feitas para navegar  em terra ou mar, mas uma mergulhou na escuridão dos mares e a outra saiu dos trilhos, distanciando-se, a passos largos, das demandas de respeito, inclusão e tolerância. Por décadas, ambas deixaram adormecidas tantas lembranças de atrocidades e agora detê-las é uma forma de rechaçar a barbárie e de renovar o compromisso com o nunca mais.

Autores

  • é desembargadora federal no TRF da 3ª. Região-SP, doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) com pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), especialista em Direito Sanitário pela Universidade Brasília (UnB) e autora do livro "Direito ao(do) Patrimônio Cultural Brasileiro" (Ed. Forum).

  • é sócio do Instituto Hispano-Luso-Americano de Direito Internacional (IHLADI) e árbitro da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), da Court of Arbitration of Art (CAfA) e do Tribunal Permanente de Revisão do MERCOSUL (TPR), professor do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

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