Opinião

A vigência da Convenção Interamericana contra o Racismo e a Lei de Cotas

Autor

  • Izadora Nogueira dos Santos Muniz

    é advogada doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) mestra em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e integrante do grupo de pesquisa "Direito Privado no Século XXI" no Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

11 de fevereiro de 2022, 18h21

Recentemente os veículos de imprensa noticiaram a internalização, no Brasil, da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, o que foi feito por força do Decreto nº 10.932, de 10 de janeiro. O documento foi firmado pelo Brasil em 2013, mas só agora foi promulgado para fins de validade interna. A convenção tem como propósito a erradicação do racismo e de toda a forma de discriminação e intolerância.

O documento traz inovações importantes? Não há dúvida em afirmar que sim, há impactos importantes dele decorrentes. A primeira coisa a ser observada é que sua assinatura ocorreu em vista da necessidade de serem adotadas medidas dentro do sistema regional interamericano, que é organizado pela Organização dos Estados Americanos, criada pela Carta da OEA em 1948.

Um documento com essas características não é novidade para o sistema internacional de proteção aos direitos humanos. Um marco no discurso oficial e na posição externa brasileira em relação à situação racial se deu muito antes, no ano 1966, quando o Estado brasileiro assinou a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (Icerd), com vigência interna no ano de 1969. Esse instrumento, redigido pela Organização das Nações Unidas, sistema universal e mais amplo em termos geográficos do que aquele da OEA, configura a base legal das ações afirmativas no Brasil. Trata-se de documento político-jurídico relevante, pois apresentou para o ordenamento jurídico brasileiro os conceitos de discriminação racial e de ações afirmativas.

"1) Nesta Convenção, a expressão "discriminação racial" significará qualquer distinção, exclusão restrição ou preferência baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano, (em igualdade de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de vida pública.
(…)
 
4. Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contando que, tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sidos alcançados os seus objetivos. (ONU, 1966)".

É inegável a importância desses conceitos jurídicos, pois 40 anos depois de entrar em vigor no Brasil foram, salvos alguns acréscimos, transplantados para a Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010  o Estatuto da Igualdade Racial.

Foi a Icerd, por intermédio de seus mecanismos de implementação e proteção dos direitos e garantias nela enunciados, que provocou o Brasil, enquanto Estado-parte, para uma transformação dos discursos externos da diplomacia brasileira sobre a realidade racial do país.

No plano político interno, em 1995 milhares de afrodescendentes organizados em variadas frentes sociais realizam um grande ato político na capital federal, em protesto e reivindicação  a Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida. Essa pressão organizada dos movimentos negros exigia o fim do racismo, mediante a ação urgente e concreta do Estado brasileiro contra as desigualdades raciais e pela melhoria das condições de vida da população negra brasileira.

Essa pressão dos movimentos sociais antirracistas, conjugada com pressões internacionais, forçou o governo brasileiro, na pessoa do então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, a iniciar publicamente o processo de discussão das questões raciais brasileiras.

Em relação a esse episódio político, o sociólogo Sales Santos (2007) diz ser a primeira vez na história brasileira em que o governo oficialmente admitiu que os negros são discriminados. Esse reconhecimento nacional foi ratificado no "Seminário internacional multiculturalismo e racismo: o papel da ação afirmativa nos Estados democráticos contemporâneos", organizado pelo Ministério da Justiça em 1996.

Regulamentação importa em reconhecimento. No entanto, esse discurso oficial não se traduziu de imediato em ações concretas. Foi necessária nova pressão internacional, vinda da ONU, para que o Estado brasileiro passasse à ação concreta, o que ocorreu com o decreto, de 8 de setembro de 2000, que criou o Comitê Nacional para a Preparação da Participação Brasileira na III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata.

Em que pese a declaração e o programa de ação adotados em 8 de setembro de 2001 em Durban, África do Sul, ter "clamado pela rápida e abrangente eliminação de todas as formas de racismo e discriminação racial", as discussões acerca da aplicabilidade e da noção de ação afirmativa, na modalidade de cotas raciais [1] no ensino superior, vem ocorrendo de forma individual por parte de alguns conselhos de instituições de ensino superior públicas, ou por lei estadual. Nesse campo, as universidades estaduais tomaram a dianteira [2]. As iniciativas para incluir grupos discriminados partiram de alguns gestores e conselhos universitários com fundamento na autonomia universitária.

O reboliço social e político-partidário pela adoção de tais medidas por parte de algumas instituições de ensino superior público se fez sentir no Poder Judiciário quando o partido político Democratas ajuizou a ADPF 186, que visava à declaração de inconstitucionalidade de atos da Universidade de Brasília que instituíram o sistema de reserva de vagas com base em critério étnico-racial no processo de seleção para ingresso de estudantes. Em abril de 2012, o STF julgou constitucional a política de cotas na UnB.

Em agosto de 2012 foi promulgada a Lei nº 12.711, a Lei de Cotas, tornando compulsório nas instituições federais de educação superior, em cada concurso seletivo para ingresso na graduação, por curso e turno, no mínimo 50% de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas e por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas na população da unidade da federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do IBGE.

É com esses antecedentes de longo amadurecimento do tema, na esfera internacional e interna, ao longo das últimas décadas, que se tem a assinatura, em 2013, da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância [3], documento do sistema regional de direitos humanos que, além de inovar apresentado novos conceitos, antes meramente acadêmicos [4], agora jurídicos, no plano internacional dos direitos humanos, como: "discriminação racial indireta" [5], "discriminação múltipla ou agravada" [6] [7], "intolerância" [8] e discriminação racial no acesso aos recursos naturais, biodiversidade e patrimônio natural. Esse documento também preserva a obrigação jurídica dos estados para implementar medidas especiais ou de ação afirmativa (artigos 1.5 e 5).

Aprovada com quórum qualificado, a Convenção Interamericana Contra o Racismo e a Discriminação Racial vigora com força normativa de Emenda Constitucional em nosso ordenamento jurídico (§3°, artigo 5°, CRFB/88). Até então os três únicos documentos incorporados com o quórum qualificado versavam sobre direitos das pessoas com deficiência [9].

Com status constitucional, a convenção deve pautar a análise das cerca de 30 proposições de Lei de Cotas que tramitam no Congresso Nacional. Mais que isso, a ratificação da convenção é particularmente relevante neste ano de 2022, pois, em agosto, a Lei de Cotas (Lei 12.711/2012) completará uma década de vigência, momento em que será promovida a revisão desse programa pelo Congresso Nacional [10], podendo ser mantida, alterada ou encerrada (artigo 7°). De fato, como bem aponta o Observatório do Legislativo Brasileiro (2021), as "ações afirmativas" ainda despertam divergências acaloradas em nossa sociedade. Entre as proposições legislativas relativas à alteração da Lei de Cotas, tem-se 12 projetos favoráveis à lei, 12 contrários e seis neutros. Nesse sentido, a convenção deve atuar como um instrumento mediador dos posicionamentos ideológicos que dominam o debate legislativo [11].

Uma vez que a revisão da lei deverá ocorrer em pleno ano eleitoral, indicando forte polarização política, o status constitucional conferido às ações afirmativas, a fim de assegurar o exercício de direitos e liberdades fundamentais, impede a reversão das leis de cotas hoje em vigor até que essas políticas alcancem seus objetivos.

 

Referências bibliográficas
BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta transfere de 2022 para 2042 a revisão da Lei de Cotas no ensino superior Fonte: Agência Câmara de Notícias. 2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/781991-proposta-transfere-de-2022-para-2042-a-revisao-da-lei-de-cotas-no-ensino-superior/. Acesso em: 09 fev. 2022.

BRASIL. Decreto nº 10.932, de 10 de janeiro de 2022. Promulga a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. Convenção. Brasília.

BRASIL. Decreto nº 65.810, de 8 de dezembro de 1969. Promulga a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial. Convenção. Brasília.

BRASILEIRO, Observatório do Legislativo. Ciências Sociais Articuladas: o congresso e a revisão da política de cotas. O Congresso e a Revisão da Política de Cotas. 2021. Disponível em: https://olb.org.br/ciencias-sociais-articuladas-o-congresso-e-a-revisao-da-politica-de-cotas/. Acesso em: 09 fev. 2022.

SANTOS, Sales Augusto dos (Org.). Introdução. In: SANTOS, Sales Augusto dos (Org.). Ações Afirmativas e Combate ao Racismo nas Américas. Brasília: Ministério da Educação e Unesco, 2007. p. 7-392. (Educação para Todos). Disponível em: <http://etnicoracial.mec.gov.br/images/pdf/publicacoes/acoes_afirm_combate_racismo_americas.pdf>. Acesso em: 09 fevereiro 2022.

 


[1] Importa frisar que cotas raciais no ensino superior é uma modalidade de ações afirmativas. Qualquer programa e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades caracteriza-se como ação afirmativa, nos termos do artigo 1°, VI da Lei n° 12.288/2010.

[2] Em 2001 as Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf) reservaram 40% das vagas para a "população negra e parda", de acordo com os termos da Lei Estadual nº 3.708, de 9 de novembro de 2001. No ano de 2002 a Universidade do Estado da Bahia — (Uneb) aprova o sistema de quotas para população afrodescendente, oriundas de escola pública. Três anos após a Conferência de Durban, a Universidade de Brasília (UNB) é a primeira IES federal a implantar o sistema de cotas.

[3] Importa explicar que antes da Convenção de 2013, a Comissão de Direitos Humanos (CIDH) da OEA já atuava contra a discriminação racial, como no caso emblemático de Simone André Diniz, no qual foi analisado a responsabilidade internacional do Estado brasileiro por fato praticado por particular. Tendo sido a primeira vez que um país do continente foi responsabilizado pelo sistema interamericano de direitos humanos pelo crime de discriminação racial (2006).

[4] Ver Kimberle Crenshaw e seus escritos sobre interseccionalidade.

[5] "Artigo 1. 2. Discriminação racial indireta é aquela que ocorre, em qualquer esfera da vida pública ou privada, quando um dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro tem a capacidade de acarretar uma desvantagem particular para pessoas pertencentes a um grupo específico, com base nas razões estabelecidas no Artigo 1.1, ou as coloca em desvantagem, a menos que esse dispositivo, prática ou critério tenha um objetivo ou justificativa razoável e legítima à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos".

[6] "Artigo 1. 3. Discriminação múltipla ou agravada é qualquer preferência, distinção, exclusão ou restrição baseada, de modo concomitante, em dois ou mais critérios dispostos no Artigo 1.1, ou outros reconhecidos em instrumentos internacionais, cujo objetivo ou resultado seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados Partes, em qualquer área da vida pública ou privada".

[7] O Estatuto da Igualdade Racial já conceituou múltiplas discriminações ao trazer no artigo 1, III, o conceito de desigualdade de gênero e raça.

[8] "Artigo 1. 6. Intolerância é um ato ou conjunto de atos ou manifestações que denotam desrespeito, rejeição ou desprezo à dignidade, características, convicções ou opiniões de pessoas por serem diferentes ou contrárias. Pode manifestar-se como a marginalização e a exclusão de grupos em condições de vulnerabilidade da participação em qualquer esfera da vida pública ou privada ou como violência contra esses grupos".

[9] Convenção Geral da ONU sobre o direito das pessoas com deficiência; Protocolo Facultativo  que dá direito de petições individuais ao Comitê e o Tratado de Marraqueche  que visa facilitar o acesso às obras publicadas pelas pessoas cegas ou com deficiência visual.

[10] O Congresso debate o Projeto de Lei 1788/21, que transfere para 2042 a revisão do programa especial para o acesso às instituições federais de educação superior de estudantes pretos, pardos e indígenas e de pessoas com deficiência.

[11] Das 30 proposições movimentadas, 12 são de autoria de parlamentares de partidos de esquerda (40%) e 15 (50%) de parlamentares de direita, com ambos os campos apresentando projetos de alta relevância. Ou seja, desde que surgiu no Brasil, a partir do começo da década de 2000, a Lei de Cotas tem sido um marcador da divisão do espectro político-ideológico entre esquerda e direita (OLB, 2021).

Autores

  • é advogada, doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), mestra em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e integrante do grupo de pesquisa "Direito Privado no Século XXI" no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

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