Opinião

O paradoxo do recurso contra a absolvição pelo quesito genérico no Tribunal do Júri

Autor

  • Andre Esteves de Andrade

    é defensor público do Estado do Rio Grande do Sul desde 2012 com atuações em Defensorias Públicas especializadas criminais e participação itinerante em plenários do júri em diversas comarcas pós-graduado em Direito e professor de Direito Penal e Processo Penal da Fundação Escola da Defensoria Pública desde 2015.

10 de fevereiro de 2022, 18h32

Está aprazado para esta quinta-feira (10/2) pelo Pleno do STF o julgamento do ARE 1.225.185, no qual se decidirá, em regime de repercussão geral, o cabimento de recurso em face da absolvição pelo quesito genérico no Tribunal do Júri, em razão de ser a decisão manifestamente contrária a prova dos autos.

Convém delimitar a questão. O artigo 593, III, "d", do CPP prevê a possibilidade de recurso, entre outras hipóteses, quando "for a decisão dos jurados manifestamente contrária a prova dos autos". Até 2008, não havia grande dissidência jurisprudencial acerca da compatibilidade deste recurso com a soberania dos veredictos prevista no artigo 5º, XXXVIII, "c", da Constituição Federal. Afinal, aos jurados eram apresentados quesitos referentes a todas as teses apresentadas pela defesa, sendo possível sindicar, portanto, a ratio da absolvição e, assim, aferir eventual manifesta contrariedade com a prova dos autos.

Contudo, a sistemática da quesitação foi amplamente alterada pela Lei nº 11.689/2008. Conforme o atual artigo 483 do CPP, o primeiro quesito será referente a materialidade (foram realizados os disparos?). O segundo indagará sobre a autoria (foi o réu quem efetuou os disparos?). Já o terceiro (em regra) será realizado de forma aberta sobre a absolvição, aglutinando todas as teses defensivas ou qualquer outro motivo encontrado pelo jurado para decidir (o jurado absolve o réu?). Como se vê, nesse quesito genérico não é possível saber qual o motivo específico da decisão do conselho de sentença, tratando-se de adoção, à brasileira, do guilty or not guilty do sistema anglo-saxão.

Logo, não é sobre a materialidade ou a autoria a dúvida quanto ao cabimento do recurso por decisão manifestamente contrária a prova dos autos. Por exemplo, se há o exame cadavérico do corpo alvejado, com fotos e inclusive depoimentos dos policiais que encontraram a vítima, prevalece o entendimento que pode ser impugnada a resposta negativa ao primeiro quesito. O mesmo ocorre com a negativa ao segundo, havendo diversas testemunhas e gravação evidenciando ser o réu o autor do crime. A perplexidade reside no terceiro, em que não se sabe qual o motivo da resposta dos jurados. Ora, se eu não sei a razão, como vou entender que é contrária à prova dos autos?

Aí reside o erro de foco da discussão. Não se trata de saber se a soberania dos veredictos é ou não absoluta, mas, sim, de se reconhecer a impossibilidade lógica de que a decisão do terceiro quesito seja contrária à prova dos autos.

A soberania dos veredictos não é absoluta, uma vez que não existem direitos absolutos. Ela é relativizada na possibilidade de recurso contra a decisão nos quesitos relacionados aos fatos, mas não para o genérico da absolvição, em que é impossível se afirmar que a verdade escolhida pelo jurado é contrária a prova nos autos. Não é válido realizar um exercício de adivinhação para saber qual o fundamento adotado. Lembro, aqui, de plenário do júri em que realizei defesa. Após um dia inteiro de acirrado debate com a acusação, o réu restou condenado. Após a leitura da sentença, um dos jurados se aproximou de mim e confidenciou, de forma absolutamente espontânea e até inesperada, que votou pela condenação porque lembrou do filme do Homem-Aranha em que o herói deixa passar um assaltante que posteriormente vem a matar seu próprio tio. "Não poderia deixar isso acontecer nesse caso", disse ele. Será que seria razoável supor que naquele julgamento, em que o réu não possuía sequer antecedentes, nem se dedicava a atividades criminosas, que o motivo da condenação seria esse (recordando que a condenação também não precisa ser motivada!)?. Como sindicar, com base nessa aleatoriedade, qual foi realmente a ratio da decisão? Será que o temor do jurado de que aquele indivíduo, absolvido, cometeria mais crimes justificaria um recurso contra decisão manifestamente contrária à prova dos autos?

A verdade é que a resposta negativa ao terceiro quesito não absolve por legitima defesa da honra, ou clemência, ou senso de justiça do julgador — o réu é simplesmente absolvido. O óbvio precisa ser repisado: a decisão não é motivada. Nada impede, inclusive, que cada um dos jurados proferia seu voto por uma razão diferente. Não é exigido do jurado, nesse questionamento, nenhuma análise de matéria de fato. Ele não está adstrito a nenhuma tese defensiva, seja da defesa técnica ou da autodefesa. Mesmo que o defensor alegue apenas a negativa de autoria, haveria a necessidade do quesito, que é obrigatório em todos os casos — ora, a defesa não precisa nem mesmo pedir a absolvição, podendo sustentar somente o afastamento de qualificadoras, como já fiz em diversos plenários em que atuei. O recurso é contra a prova, e não contra o entendimento do jurado que encontra motivo íntimo, é bom que se ressalte, para absolver, a despeito da prova produzida (e não de forma contrária a ela!). O questionamento genérico não é sobre fato, mas, sim, sobre o entendimento livre do jurado quanto a condenação ou absolvição.

E, ademais, qual é a prova aqui necessária? É possível medir qual a comprovação exigida para uma decisão de clemência ou de empatia do jurado com o réu? Estar mais provado ou menos provado um fato afasta ou permite o perdão? Podemos definir quantas testemunhas devem existir, ou a qualidade de uma gravação, para se possibilitar absolvição por entender o jurado que o ato realizado está em consonância com seu senso pessoal de justiça? Será que a decisão de um jurado a respeito da ausência de potencial consciência de ilicitude de um réu inculto passa pelas provas apresentadas pelo Ministério Público acerca da ocorrência do fato e de quem o cometeu? 

Critiquem a opção legislativa quanto ao quesito genérico, mas enquanto estiver previsto, como está, é um absoluto contrassenso que a lei determine ao jurado responder a quesito aberto, sem motivação, e ao mesmo tempo permita recurso quando essa decisão é supostamente contrária à prova dos autos. Sobre tal paradoxo, já discorreu o ministro Antônio Saldanha Palheiro, em seu voto-vista no Habeas Corpus nº 350.895/RJ: "A prevalecer a possibilidade do recurso contra tal indagação genérica ao corpo de jurados, cairíamos num paradoxo insuperável de, por um lado, autorizar a absolvição direta e sem motivação, e, por outro, permitir o reexame da deliberação porque não suportada no conjunto probatório" [1].

Demais disso, entender que o jurado somente pode julgar com base nas alegações trazidas pela defesa e que forem individualmente questionadas é outro contrassenso. Primeiro, porque importaria em fazer do conselho de sentença, soberano por força constitucional, menos do que o juiz togado, que pode, dentro do seu convencimento motivado, fundamentar de forma livre sua decisão, não estando adstrito aos argumentos utilizados pela defesa ou pela acusação. Segundo, porque ignora a existência da própria autodefesa trazida pelo réu, que é tanto verbal quanto não verbal. Pode o jurado entender, por exemplo, por meio de suas respostas ao juiz e modo de se comportar, que aquele se encontra regenerado, não sendo mais necessária a pena. Pode, ainda, se compadecer de um pedido de desculpas, entendendo-o sincero, ou acreditar em suas alegações de que seus filhos ficarão sem sustento caso seja preso. Todos esses elementos devem ser passíveis de serem levados em conta pelos jurados, independentemente de terem sido trazidos pela defesa técnica.

Diante da ilogicidade, espera-se que o STF mantenha a impossibilidade do recurso, entendimento este que, apesar da enorme discussão, já vem sendo manifestado por suas duas turmas [2].


[1] STJ, HC 350.895/RJ, relatora ministra Maria Thereza de Assis Moura, Rel. p/ Acórdão ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 14/03/2017, p. 24.

[2] HC 185068, julgado em 20.10.2020, pela maioria da Segunda Turma, e o HC 178777, julgado em 11.12.2020, pela maioria da Primeira Turma. No dia 23.02.2021, a Segunda Turma julgou os RHCs 192431 e 192432, e manteve a orientação.

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  • é defensor público do Estado do Rio Grande do Sul desde 2012, com atuações em Defensorias Públicas especializadas criminais e participação itinerante em plenários do júri em diversas comarcas, pós-graduado em Direito e professor de Direito Penal e Processo Penal da Fundação Escola da Defensoria Pública desde 2015.

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