Opinião

Extensão e limites do direito ao esquecimento: um ano da decisão do STF

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8 de fevereiro de 2022, 7h13

O dia 11 de fevereiro, desde o ano de 2021, passou a representar um marco histórico para a temática do direito ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro. Nessa data, o plenário do Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do ministro Dias Toffoli, concluiu o julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.010.606/RJ [1], leading case da repercussão geral identificada via Tema 786 [2], referente à aplicabilidade, ou não, do direito ao esquecimento quando for invocado pela própria vítima ou por seus familiares [3].

Os mais de sete anos de tramitação do feito no âmbito do STF, incluindo as audiências públicas para oitiva de experts e as contribuições elaboradas pelos amici curiae, e as mais de 300 laudas da decisão, bem representam a complexidade da matéria. A conclusão do julgamento, como não poderia deixar de ser, promoveu uma espécie de exacerbação dos ânimos quanto à temática em nosso país.

De fato, um primeiro contato com o resultado do julgamento parece indicar a total incompatibilidade do direito ao esquecimento para com a ordem jurídico-constitucional brasileira. Essa noção, contudo, é passível de ser superada mediante leitura e interpretação da tese jurídica fixada pela corte, a qual, pelos seus próprios termos, impõe um limite à sua extensão.

A partir dessa ideia, então, é possível compreender que a decisão tem sua extensão no sentido da incompatibilidade, com a Constituição Federal de 1988, do direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar a divulgação, em razão do transcurso do tempo, de fatos verídicos e licitamente obtidos, em meios digitais ou analógicos. Em contrapartida, tem seus limites estabelecidos diante de eventuais excessos ou abusos, estes analisados casuisticamente e identificados sob a ótica dos demais valores constitucionais, cometidos no uso das liberdades comunicativas, bem assim as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível.

Para retratar, em termos práticos, uma das situações condizentes com os limites da tese, relevante é considerar o posicionamento majoritário da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, quando lhe foram remetidos os autos do caso chacina da Candelária [4]  no qual, em 2013, foi reconhecida a incidência do direito ao esquecimento  para retratação. Na oportunidade, sob a relatoria do ministro Luís Felipe Salomão, a turma não exerceu o juízo de retratação, ratificando, pois, o julgamento originário, essencialmente por entender que o caso não guarda relação com a primeira parte do que foi decidido em repercussão geral, mas, sim, com a segunda parte da tese, qual seja, justamente os eventuais excessos ou abusos cometidos no exercício das liberdades de expressão e de informação.

Tem-se, portanto, que, uma vez considerados a extensão e os limites do julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal  pelas exceções expostas ao final da tese jurídica e, mais ainda, pelo teor dos diversos fundamentos exarados nos votos dos 11 ministros —, não há falar em perecimento, no Brasil, da ideia que substancialmente forma o assim chamado direito ao esquecimento. E isso inclusive porque, por certo, os distinguishing facts, isto é, as diversas peculiaridades e possibilidades de incidência do direito ao esquecimento, são infindáveis.

Assim, torna-se possível abstrair a possibilidade de aplicação do direito ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro, ainda que não necessariamente sob o abrigo de tal nomenclatura. Basta, para tal, que incidam nos casos concretos as exceções  isto é, os limites  expostos na tese jurídica.

Tal constatação, ressalta-se, não significa cogitar que a possibilidade de um direito ao esquecimento equivale a atribuir, de forma absoluta e em abstrato, maior peso aos direitos de personalidade, em detrimento das liberdades comunicativas. Não é isso, por certo, que pretendem os defensores  ao menos os de posição moderada e ponderada  do direito ao esquecimento.

Isso porque, pela defesa da existência de um direito ao esquecimento no cenário pátrio, não se aspira uma definição a priori de que prevalece esse direito sobre qualquer outro. Do mesmo modo, não se pretende o reconhecimento de um genérico, amplo e irrestrito direito ao esquecimento, baseado exclusivamente na possibilidade de dissociação de fatos em razão do transcurso do tempo, aplicável a toda e qualquer circunstância em que postulado.

O que se objetiva, em verdade, é que, a partir da sua existência, e em havendo conflito com outro direito fundamental, seja promovida a necessária ponderação dos valores, com base nos mecanismos disponibilizados pelo ordenamento jurídico e com base na realidade posta na casuística, para somente depois concluir qual deve prevalecer. Ou seja, objetivam-se, para o direito ao esquecimento, os mesmos procedimentos aplicáveis aos demais direitos fundamentais.

Em face dessas considerações, uma análise sobre o primeiro ano desde o emblemático julgamento permite afirmar que, mesmo com decisão em repercussão geral, não houve uma mudança abrupta de paradigma sobre a temática do direito ao esquecimento no Brasil, o que é perceptível pelas manifestações advindas tanto da doutrina quanto da jurisprudência. E mais do que isso. Em verdade, parece que a expectativa durante o trâmite processual era muito maior do que as repercussões após a prolação da decisão.

Aguardemos, agora, com expectativa e atenção, o desenrolar dos próximos 12 meses, sobre a tão complexa temática do direito ao esquecimento, a qual, sem dúvidas, continuará a incidir, de uma forma ou de outra, nas postulações judiciais.

 

Referências bibliográficas
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 1.010.606/RJ. Relator: ministro Dias Toffoli. Plenário. Julgado em 11/02/2021. Disponível em: <http://stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=5091603&numeroProcesso=1010606&classeProcesso=RE&numeroTema=786>. Acesso em: 1 fev. 2022.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 786 do STF. Aplicabilidade do direito ao esquecimento na esfera civil quando for invocado pela própria vítima ou pelos seus familiares. Disponível em: <http://stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4623869&numeroProcesso=833248&classeProcesso=ARE&numeroTema=786>. Acesso em: 1 fev. 2022.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário com Agravo nº 833.248/RJ. Relator: ministro Dias Toffoli. Plenário. Repercussão Geral reconhecida em 19/02/2015. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=302238926&ext=.pdf>. Acesso em: 1 fev. 2022.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.334.097/RJ. Relator: Ministro Luís Felipe Salomão. 4ª Turma. Julgado em 28/05/2013. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=201201449107&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos.ea>. Acesso em: 1 fev. 2022.

 


[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 1.010.606/RJ. Relator: ministro Dias Toffoli. Plenário, Julgado em 11/02/2021. Disponível em: <http://stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=5091603&numeroProcesso=1010606&classeProcesso=RE&numeroTema=786>. Acesso em: 1 fev. 2022.

[2] "Aplicabilidade do direito ao esquecimento na esfera civil quando for invocado pela própria vítima ou pelos seus familiares". BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 786 do STF. Aplicabilidade do direito ao esquecimento na esfera civil quando for invocado pela própria vítima ou pelos seus familiares. Disponível em: <http://stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4623869&numeroProcesso=833248&classeProcesso=ARE&numeroTema=786>. Acesso em: 1 fev. 2022.

[3] "Direito constitucional. Veiculação de programa televisivo que aborda crime ocorrido há várias décadas. Ação indenizatória proposta por familiares da vítima. Alegados danos morais. Direito ao esquecimento. Debate acerca da harmonização dos princípios constitucionais da liberdade de expressão e do direito à informação com aqueles que protegem a dignidade da pessoa humana e a inviolabilidade da honra e da intimidade. Presença de repercussão geral". BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário com Agravo nº 833.248/RJ. Relator: ministro Dias Toffoli. Plenário. Repercussão Geral reconhecida em 19/02/2015. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=302238926&ext=.pdf>. Acesso em: 1 fev. 2022.

[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.334.097/RJ. Relator: ministro Luís Felipe Salomão. 4ª Turma. Julgado em 28/05/2013. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=201201449107&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos.ea>. Acesso em: 1 fev. 2022.

Autores

  • é mestre em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (FMP-RS), especialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e assessora Jurídica no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

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