Opinião

O contrato de conta corrente e as suas funções sociais individual e coletiva

Autor

  • Guilherme Lanzellotti Medeiros

    é advogado tributarista especialista em Direito Tributários pela Pontifícia Universalidade Católica de São Paulo (PUC-SP) mestrando em Direito Tributário internacional e Comparado pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e membro Associado do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).

7 de fevereiro de 2022, 7h13

Muito se discute a respeito da natureza jurídica dos contratos de conta corrente entre empregadas coligadas e a sua possível equiparação aos contratos de mútuo, especialmente para fins de incidência do IOF, nos termos do artigo 13 da Lei nº 9.779/99.

Por muitos anos, o posicionamento majoritário do Carf caminhava no sentido de não ser possível a referida equiparação ante a evidente distinção entre as duas modalidades contratuais. Em 17/8/2017, no entanto, a 3ª Turma da CSRF firmou sua jurisprudência na contramão da tendência que vinha se consolidando naquele tribunal administrativo, reformando o acórdão então proferido naquele processo para concluir que os contratos de conta corrente corresponderiam a mútuos financeiros, subsumindo-se, portanto, à hipótese de incidência do IOF [1].

Mesmo após os sucessivos precedentes firmados em igual sentido por aquela 3ª Turma da CSRF, muitas das turmas ordinárias do Carf mantêm seu entendimento em sentido oposto [2], o que indica que a questão ainda não se encontra definitivamente resolvida no contencioso administrativo.

Por sua vez, no âmbito judicial a matéria ainda se encontra longe ser solucionada, tendo alguns poucos precedentes definidos, sendo o mais relevante deles o julgamento do Recurso Especial nº 1.239.101 pela 2ª Turma do STJ, no qual restou assentado que o artigo 13 da Lei nº 9779/99 incide sobre os contratos de conta corrente firmados entre empresas coligadas.

Motivado por esse beligerante cenário que se impõe a respeito da subsunção dos contratos de conta correte à hipótese de incidência tributária do IOF, esta breve análise pretende chamar a atenção para um ponto de manifesta distinção entre o negócio jurídico intitulado como conta corrente e a modalidade de mútuo financeiro, notadamente a função social individual e coletiva dessas duas formas contratuais.

De fato, ao se analisar os diversos precedentes que se formaram nos casos envolvendo a matéria em comento, seja na esfera administrativa, seja na judicial, percebe-se que o foco da fundamentação das decisões se volta aos critérios de classificação destas duas modalidades contratuais, como: 1) contratualidade; 2) temporariedade; 3) fungibilidade; 4) translatividade; 5) obrigatoriedade de restituição etc [3].

Contudo, um ponto de relevantíssima importância à detida compreensão a respeito da distinção dessas modalidades contratuais, no entendimento deste autor, pouco aprofundada nos precedentes a respeito da matéria, envolve a função social que recai sobre esses negócios jurídicos.

Como é sabido, a função social é princípio jurídico de conteúdo indeterminado que rege os negócios jurídicos [4], podendo ser compreendido sobre dois aspectos particulares: 1) individual, no qual se é verificada a satisfação do interesse dos partes contratantes; e 2) público ou coletivo, adstrito ao interesse da coletividade sobre os efeitos do contrato [5].

A esse respeito, Pontes de Miranda ensina que o princípio da função social garante a licitude do negócio jurídico, assegurando, por exemplo, que os seus efeitos não apenas atendam à conveniência das partes, mas também que não ofenda interesses gerais ou de terceiros [6].

Portanto, à luz da doutrina, a função social é princípio intrinsecamente ligado aos negócios jurídicos. E é a partir dos aspectos individuais e coletivos atinentes ao princípio da função social que se extrai a primordial distinção entre o contrato de conta corrente e o de mútuo financeiro.

Como é sabido, dentro de um grupo empresarial os diferentes ramos de atividade econômica por ele desempenhados são comumente segmentados em pessoas jurídicas distintas como forma de otimização da estrutura societária do grupo e de atendimento às regras de governança, compliance e, muitas vezes, da própria comissão de valores mobiliários.

Diante desse cenário estritamente organizacional de um grupo econômico, é comum, razoável e até mesmo compreensível que "haja sobra de caixa em uma sociedade e falta em outra situação que costuma se inverter no tempo, a depender da natureza das atividades de cada membro do grupo" [7].

É para resolver esse problema de fluxo de caixa entre as empresas de um mesmo grupo econômico, que foi desenvolvida a sistemática do conta corrente, na qual é viabilizado o trânsito de valores entre essas sociedades a partir do registro e controle em uma determinada conta contábil (aspecto individual do princípio da função social do conta corrente).

A esse respeito, André Mendes Moreira destaca que a finalidade do contrato de conta corrente "é viabilizar o trânsito de valores entre as diversas pessoas jurídicas sob o mesmo controle acionário, visando facilitar o dia a dia empresarial" [8].

Note-se, como ocorre entre pessoas jurídicas dentro do "guarda-chuva" de uma mesma controladora, normalmente uma holding, que as remessas de valores são apenas registradas em um conta contábil específica. É por esse motivo, inclusive, a denominação dessa modalidade de negócio jurídico como de "conta corrente".

Nesse contexto, há de se observar que o saldo devedor constante da referida conta contábil, não torna uma sociedade credora da outra, uma vez que a razão de existir dessa modalidade contratual e, portanto, a sua função social individual é a de permitir o simples controle de fluxo de caixa entre empresas coligadas a partir de uma constante modificação dos polos credor e devedor, somente podendo se falar em dívida quando do encerramento da referida conta contábil [9].

De fato, a conta contábil na qual são lançados os valores fica em constante movimento, contendo a demonstração de lançamentos a débito e a crédito, sem qualquer forma de compensação entre eles para, somente ao final, proceder-se com sua liquidação.

Portanto, denota-se que referido controle de caixa não se trata, de forma alguma, de uma atividade atípica e estranha às funções de um grupo econômico, mas, sim, de operações típicas e necessárias, especialmente entre a controladora e suas controladas, pois o próprio objetivo social da controladora é justamente o de controlar e administrar as empresas que lhe são subordinadas [10].

Dessa compreensão, aliás, é que se extrai o aspecto coletivo da função social do contrato de conta corrente. Isso porque a colaboração entre empresas de um mesmo grupo econômico, em última análise, assegura a perpetuidade das pessoas jurídicas no tempo, a manutenção de empregos o desenvolvimento socioeconômico do país, objetivo todos os quais caminham ao encontro dos mais fundamentais interesses da coletividade.

A corroborar esse entendimento, denota-se que a colaboração entre empresas de um mesmo grupo econômico, não decorre apenas de uma lógica empresarial, mas, sim, encontra amparo na própria Lei das SA (Lei nº 6.404/76), a qual prevê a possibilidade de constituição de grupo de sociedades para auxílio recíproco. Nesse sentido, é o que dispõe o artigo 265 do referido diploma legal:

"Artigo 265  A sociedade controladora e suas controladas podem constituir, nos termos deste Capítulo, grupo de sociedades, mediante convenção pela qual se obriguem a combinar recursos ou esforços para a realização dos respectivos objetos, ou a participar de atividades ou empreendimentos comuns".

O contrato de conta corrente é, portanto, modalidade de negócio jurídico que possui função social individual e coletiva próprias, legalmente positivas no ordenamento jurídico, configurando importante instrumento do grupo empresarial para o controle de fluxo de caixa das sociedades a ele integradas, assegurando a solvência e a saúde financeira de todos os braços de atuação do grupo econômico em seus mais diversos setores de negócio, por meio da combinação de "recursos ou esforços" para a realização dos objetos e empreendimentos comuns.

Por outro lado, é evidente que o contrato de mútuo financeiro, no qual são contrapostos os interesses de um indivíduo credor e outro inserido na qualidade de devedor  diferentemente do que ocorre no contrato corrente, em que há manifesto interesse comum entre ambas as partes contratantes —, não possui a mesma função social do contrato de conta corrente.

No contrato de mútuo financeiro, a conveniência individual das partes é qualificada a partir da obtenção recursos financeiros para uma finalidade específica, tendo como contrapartida o locupletamento da parte diversa a partir dos juros decorrentes da disposição dos recursos emprestados [11]. No mesmo sentido, no que tange à função social pública, o contrato de mútuo visa a assegurar a inserção de recursos financeiros na sociedade, servindo, inclusive, como instrumento de aferição e controle da inflação.

Portanto, sob o aspecto da função social de ambos os contratos, é seguro afirmar que tratam-se de modalidades distintas e que não se confundem entre si, não sendo juridicamente precisa a equiparação da conta corrente a mútuo financeiro levada a efeito pela Receita Federal do Brasil, para fins de subsunção do primeiro à incidência tributária do IOF, com fulcro no artigo 13 da Lei nº 9.779/99.

 


[1] Acórdão nº 9303-005.582, 3ª Turma da CSRF, julgado em 17/08/2017.

[2] CARF: 1) Processo Administrativo nº 10980.726938/2011-81, 1ª Turma, 4ª Câmara, 3ª Seção, julgamento realizado em 15/12/2021, acórdão ainda não publicado; 2) Acórdão nº 3402-005.232, 2ª Turma Ordinária 4ª Turma, da 3ª Seção, julgado em 22/05/2019; e 3) Acórdão nº 3301-005.647, 1ª Turma, 3ª Câmara, 3ª Seção, julgado em 07/03/2019.

[3] Op. Cit. Vide Nota 2.

[4] GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil: (abrangendo o código de 1916 e o Novo Código Civil). São Paulo: Saraiva, 2005.

[5] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 3: contratos e atos unilaterais. 9 edição. São Paulo: Saraiva, 2012.

[6] MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado, 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984.

[7] MOREIRA. André Mendes. GAIA. Patrícia Dantas. "A nâo Incidência do IOF-Créditos sobre os contratos de conta correte entre empresas do mesmo grupo econômico". Revista Dialética de Direito Tributário, nº 232, de Janeiro de 2015, Dialética. fl. 34

[8] MOREIRA. André Mendes. GAIA. Patrícia Dantas. "A nâo Incidência do IOF-Créditos sobre os contratos de conta correte entre empresas do mesmo grupo econômico". Revista Dialética de Direito Tributário, nº 232, de Janeiro de 2015, Dialética. fl. 34.

[9] Maria Helena Diniz conceitua o contrato de conta corrente como aquele que apresenta uma série de operações sucessivas e recíprocas entre as partes, de forma que os correntistas não se julguem credor ou devedor um do outro, já que as remessas farão parte de um todo homogêneo, cujo resultado somente será conhecido pelas partes no momento do balanço final (DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro — teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. V. 3, 24ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 704).

[10] A existência do "grupo econômico" manifesta-se pela reunião de sociedades controladora (holding) e controladas, combinando recursos e esforços para a realização dos respectivos objetos, bem como participando de atividades ou empreendimentos comuns.

[11] José Eduardo Soares de Melo, Curso de Direito Tributário, São Paulo, Ed. Dialética, 2007, p. 432.

Autores

  • é advogado tributarista, especialista em Direito Tributários pela Pontifícia Universalidade Católica de São Paulo (PUC-SP), mestrando em Direito Tributário internacional e Comparado pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e membro Associado do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).

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