Opinião

Supremo Tribunal Federal é um importante player na construção dos rumos do país

Autor

  • Adriana Ramos

    é doutora em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) mestre em Direito Internacional pela Universidade de Lisboa advogada nas áreas de Direito Constitucional Direitos Humanos Violência contra Mulher e Compliance Antidiscriminatório professora universitária coordenadora de TCC do Ibmec pesquisadora palestrante e sócia do escritório Paes Leme Ramos.

6 de fevereiro de 2022, 14h21

O desenho institucional elaborado pela Constituição Federal de 1988 estabeleceu um forte diálogo entre Executivo, Legislativo e Judiciário e autorizou, por meio do princípio da supremacia constitucional, o controle de constitucionalidade — seja o de matriz estadunidense, seja o de matriz europeia. Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal passou a ser protagonista no cenário político, decidindo assuntos que, em uma primeira análise, estariam restritos às discussões das instituições majoritárias.

Esse fenômeno denominado judicialização da política não é novo e não se restringe ao Brasil. Teve a sua primeira teorização com Tate e Valinder, em 1995, quando os autores publicaram o trabalho "The Global Expansion of Judicial Power" e cunharam a expressão judicialization of politics (Tate, Vallinder, 1995).

A judicialização da política, assim, é a crescente transferência do poder decisório para o Judiciário, que se torna um player importante na construção de políticas nas democracias contemporâneas e garante os direitos fundamentais previstos na Constituição, que não podem ser mitigados nem por força de maioria, nem pelo clamor popular.

Vianna e outros, em obra de grande relevância e seminal para os estudos brasileiros, defendem que houve uma intensificação do processo democrático com o desenho institucional estabelecido pela Constituição de 1988, na medida em que partidos políticos, sindicatos, conselhos de classe e as próprias instituições majoritárias (Executivo e Legislativo) podem provocar o Judiciário para fazer as intervenções políticas quando entenderem necessárias e/ou convenientes. Não se pode entender o processo de judicialização na política no Brasil sem levar em conta a provocação efetivada pelo Executivo e pelo Ministério Público. Daí o caráter dúplice da judicialização da política no Brasil, que, de um lado, se faz com as minorias parlamentares demandando a intervenção do Judiciário contra a vontade da maioria, e, de outro, se singulariza pela atuação dos Executivos estaduais e da Procuradoria da República contra a representação parlamentar em uma indicação de que a própria federação também se encontra desajustada da vontade do soberano e tem reclamado a presença de um tertius (Vianna et al.,1999, p.68).

Nesse cenário de muita discussão e descontinuidade teórica sobre o conceito cunhado por Tate e Valinder, autores brasileiros têm ampla pesquisa sobre o fenômeno com a criação de diversas interpretações e olhares sobre essa realidade, tais como Arantes (2002), Oliveira (2005), Vianna e Burgos (2002) e Veronese (2009), entre tantos outros grandes nomes.

Dito isso, fica mais claro perceber que a interferência do STF em tantos assuntos angulares da (e na) República brasileira é fruto de uma escolha que nasce com o constitucionalismo liberal, mas se aperfeiçoa com os seus ciclos posteriores, nomeadamente aquele que ocorreu com a reconstrução dos países derrotados na Segunda Guerra. Esse ciclo nos legou um modelo de controle de constitucionalidade que permite estabelecer um diálogo consistente no campo dos direitos, com importantes reflexões acerca do acesso à Justiça e das lutas de cidadania, especialmente em sociedades marcadas por grandes desigualdades (Avritzer e Marona, 2014, p. 75 e 76).

Dentro desse contexto autorizativo da atuação do STF, os últimos dois anos foram marcados por decisões importantes que ditaram os rumos do país, tais como a vacinação contra a Covid-19, a proibição de missas e cultos presenciais durante a pandemia, a autonomia do Banco Central, a suspeição do ex juiz Sergio Moro na "lava jato", a suspensão do orçamento secreto e a obrigatoriedade de realização do censo demográfico em 2022, entre outras.

Essas decisões já demonstraram a força e a estatura do STF e algumas causaram enormes divergências — e desgaste — entre os poderes, especialmente com o Executivo. Talvez primando pela estabilidade institucional em ano eleitoral que promete aguerridos debates e declarações inflamadas — seja dos candidatos, seja das suas bases —, o tribunal decidiu postergar a análise de assuntos importantíssimos para os grupos mais vulneráveis como a ADPF 442 (sobre a descriminalização do aborto) e o RE 635.659 (que discute a inconstitucionalidade da tipicidade do porte de drogas para consumo pessoal).

Resta claro que os principais impactados pela legislação vigente que criminaliza o aborto e o porte de drogas são as mulheres e os moradores das comunidades. De um lado, mulheres são revitimizadas por um discurso moralizante que autoriza as mortes — principalmente de mulheres pretas — com os abortos clandestinos. De outro, jovens periféricos, vítimas da desinteligência do Estado com sua política racista de enfrentamento às drogas que estabelece quem é o traficante e quem é o usuário pelo tom da pele (Marcelo Semer, em sua pesquisa, afirma que, entre 2013 e 2015, em entre 56% e 75% dos casos de tráfico analisados foram apreendidos menos de cem gramas de maconha ou de 50 gramas de cocaína e/ou crack).

Em que pese a possível razoabilidade dos argumentos pelo adiamento de temas tão sensíveis, é importante o posicionamento do STF nessas ações com a maior brevidade possível, pois o resultado poderá impactar milhares de persecuções penais.

Autores

  • é doutora em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Direito Internacional pela Universidade de Lisboa, advogada constitucionalista, atuando nas áreas de Direito Constitucional, Direito Civil, direitos humanos, violência contra mulher e compliance antidiscriminatório, professora universitária, coordenadora de TCC do Ibmec, pesquisadora e palestrante.

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