Opinião

A inconstitucionalidade do artigo 492, I, 'e', do Código de Processo Penal

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  • é advogado criminalista doutorando e mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) especialista em Direito Penal Empresarial pela PUC-RS e em Ciências Criminais pela LFG/UNAMA associado ao IBCCRIM e professor de Direito Penal e Processo Penal na PUC-RS.

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6 de fevereiro de 2022, 7h12

A parcial reforma de 2019, no âmbito do CPP, trouxe a imperatividade de que, em caso de condenação no Tribunal do Júri a uma pena de prisão igual ou superior a 15 anos, o juiz decrete automaticamente a execução provisória da pena, com a imediata expedição de mandado de prisão, o que, na prática, levará ao acusado já sair preso da sessão de julgamento, nos termos do artigo 492, I, "e", segunda parte, do CPP [1]. Embora a primeira parte de referido artigo [2] seja absolutamente desnecessária, eis que decorrente já da sistemática habitual no que tange ao decreto prisional cautelar em virtude de condenação, seja no júri ou não, o problema de índole constitucional transborda na segunda parte mencionada.

Embora precise se repensar o júri no Brasil [3], não se duvida de que trata-se de uma cláusula pétrea, disposta no artigo 5°, XXXVIII, da CF/88, o que o torna para muitos o símbolo de um procedimento democrático, devidamente regulado pelo CPP, o que ainda permitiria afirmar ser esse procedimento (bifásico, pois num primeiro momento se tem a instrução preliminar, para posteriormente ocorrer o julgamento em plenário) uma garantia fundamental, na qual se assegura a plenitude de defesa, a soberania dos veredictos, o sigilo das votações e sua competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

De qualquer maneira, um processo penal justo e democrático se faz com a adequação, ou conformidade, de suas regras procedimentais aos direitos e garantias constitucionalmente assegurados na CF/88 e nos tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário. Como anota Maier, "el proceso penal es um procedimiento de protección jurídica para los justiciables, y el Derecho procesal penal una ley reglamentaria de la Constitución" [4]. Para Canotilho, o devido processo passa pela "protecção alargada de direitos fundamentais", bem como deve ser compreendido como um processo "valorativamente orientado para a defesa de valores e direitos fundamentais" [5].

Nesse sentido, prevista no artigo 5º, LVII, da CF/88, a presunção de inocência assegura, ou deveria assegurar, que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" e deve ter sua observância, por lógico, no júri [6]. É, pois, constitucionalmente assegurado ao cidadão, caso venha a responder processo criminal, que lhe será conferido o tratamento de ser presumivelmente inocente, com as consequências daí advindas, em especial no campo do cumprimento da pena somente ser exigível após o esgotamento das vias recursais.

Aliás, o próprio CPP, em seu artigo 283, dispõe que "ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado". Além disso, o artigo 313, §2º, ainda prevê que "não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena (…)". Ora, nem o próprio CPP se entende!

Logo, absolutamente inconstitucional a segunda parte do artigo 492, I, "e", do CPP, pois em afronta inequívoca a uma das garantias basilares do devido processo legal, que é a presunção de inocência. Para Carvalho, "o princípio da presunção de inocência não precisa estar positivado em lugar nenhum: é pressuposto (…), nesse momento histórico, da condição humana" [7]. Giacomolli bem afirma que "em essência, o ser humano nasce inocente, permanece inocente até que o Estado afaste esse estado natural e jurídico, de modo consistente, através do devido processo constitucional e convencional, do devido processo (acusação, processo, ampla defesa, provas suficientes, debate contraditório, decisão judicial fundamentada, duplo pronunciamento, verbi gratia)" [8].

É inconcebível, portanto, concordar-se com a prisão automática, em decorrência de condenação (independente do quantum de pena) que decorre do artigo 492, I, "e", do CPP, eis que em total afronta ao justo e devido processo, garantido constitucionalmente [9]. Tal dispositivo, concordando-se com Lopes Jr., é "sem dúvidas um grande erro do legislador" [10]. Nada se sobrepõe à presunção de inocência do cidadão, nem mesmo a soberania dos veredictos no Tribunal do Júri.

Como escreveu Martin Niemöller, "quando os nazistas levaram os comunistas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era comunista. Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era social-democrata. Quando eles levaram os sindicalistas, eu não protestei, porque, afinal, eu não era sindicalista. Quando levaram os judeus, eu não protestei, porque, afinal, eu não era judeu. Quando eles me levaram, não havia mais quem protestasse".

Não há fundamento adequado constitucionalmente que sustente tal dispositivo procedimental. Daí que não perdemos de vista e que possamos seguir protestando pelo cumprimento da Constituição Federal e pela observância das garantias fundamentais daí advindas, infranqueáveis em um Estado democrático e constitucional de Direito.

 


[1] "Artigo 492 –  Em seguida, o presidente proferirá sentença que: I – no caso de condenação: (…) e) (…) ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos (…)".

[2] "Artigo 492 – Em seguida, o presidente proferirá sentença que: I – no caso de condenação: (…) e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva (…)".

[3] E aqui é importante a instigação de Lopes Jr., para quem "um dos graves problemas para a evolução de um determinado campo do saber é o repouso dogmático. Quando não se estuda mais e não se questiona as 'verdades absolutas'. O Tribunal do Júri é um dos temas em que a doutrina nacional desfruta de um longo repouso dogmático, pois há anos ninguém (ousa) questiona (r) mais sua necessidade e legitimidade" (LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 17.ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 1340.).

[4] MAIER, Julio B. J. Derecho procesal penal: tomo I  fundamentos. 2.ed. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2004, p. 490.

[5] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7.ed. 11.reimp. Coimbra: Almedina, 2003, p. 493/495.

[6] O artigo 8.2 do Dec. 678/92 (Convenção Americana de Direitos Humanos) estabelece que toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa, cuja redação é semelhante ao artigo 14.2 do Dec. 592/92 (Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos). Na mesma linha a Declaração Universal dos Direitos Humanos assegura, em seu artigo XI, que todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.

[7] CARVALHO, Amilton Bueno de. Lei, para que (m)?. In. Carvalho, Amilton Bueno e Carvalho, Salo. Reformas Penais em Debate. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 519.

[8] GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014, p. 93.

[9] Pactua-se com Pacelli quando afirma: "Prosseguindo, não descartamos a possibilidade de construção da tese jurídica de que, com a condenação pelo tribunal do júri a uma pena igual ou superior a 15 anos, sempre a depender do caso concreto e da devida fundamentação, seria possível cogitar de estarem (agora, com a condenação) presentes os requisitos da prisão preventiva. Mas impor a execução provisória automaticamente, e como regra, vai uma distância muito larga". PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 25.ed. São Paulo: Atlas, p. 941.

[10] Lopes Jr. Aury. Op. Cit. p. 1333.

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  • é advogado criminalista, doutorando e mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), especialista em Direito Penal Empresarial pela PUC-RS e em Ciências Criminais pela LFG/UNAMA, associado ao IBCCRIM e professor de Direito Penal e Processo Penal na PUC-RS.

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