Opinião

Um outro olhar sobre dolo eventual x culpa consciente

Autor

  • Gustavo Dias Kershaw

    é promotor de Justiça do Ministério Público de Pernambuco mestrando em Criminologia e Justiça Criminal pela Universidade de Edimburgo e em Perícias Forenses pela Universidade de Pernambuco especialista em Direito do Estado pela Faculdade Estácio do Pará (FAP) e em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e professor especialista I no Centro Universitário Maurício de Nassau (Uninassau/Recife)

2 de fevereiro de 2022, 6h02

Recentemente, se reacenderam — para além do mundo jurídico, onde o tema já é bastante discutido — os debates sobre as diferenças entre o dolo eventual e a culpa consciente. A distinção, que na teoria já é complexa, muitas vezes se torna ainda mais árdua na prática. Não se pretende aqui analisar tais diferenças ou emitir juízo de valor sobre qualquer caso, mas chamar a atenção e reflexão para alguns pontos relevantes. Primeiro, a deficiência na tutela da vida em casos de homicídio culposo, evidenciada pela pena irrisória cominada ao referido crime quando comparada a outros delitos, e, por fim, o "fator pena" como um elemento que, na prática, pode influenciar no processo de tomada de decisão.

Vamos ao primeiro ponto. Comparando a pena prevista para o homicídio culposo com a pena de diversos outros delitos, constatamos a leniência com que se tratam os casos de homicídio culposo — aqueles em que o autor, embora desprovido de vontade de matar, age com negligência, imprudência ou imperícia, e, violando o dever de cuidado, provoca a morte de alguém. Não custa lembrar que, no caso do homicídio culposo, embora a vontade do agente não tenha sido dirigida a causar a morte, há, indiscutivelmente, gravidade na conduta (negligente, imprudente ou imperita) e, mais ainda, gravidade no resultado — o qual não foi querido, mas causado. Seguindo os princípios do Direito Penal, deveria haver uma sanção penal proporcional — mas não é o que se vê. No crime de homicídio culposo, salvo melhor juízo, não há proporcionalidade entre a conduta e a pena abstrata. A falta de uma pena proporcional traz como consequência a impossibilidade de o julgador afastar-se dos parâmetros mínimo e máximo previstos e aplicar uma pena justa [1].

Estabelecer, em abstrato, a pena e o seu quantum proporcionalmente à gravidade da ofensa é garantir justiça ao ato de punir. A proporcionalidade deve ser observada por meio da análise de dois fatores importantes: o bem jurídico atingido pela conduta, as espécies de sanções e a sua dosagem [2]. A lógica a ser seguida é a de que os bens jurídicos mais relevantes devem receber maior proteção e, portanto, sua violação deve ser mais severamente punida, escolhendo-se, entre as opções possíveis de pena, a mais adequada. Então, entre as espécies de penas (artigo 5º, inciso XLVI, da CRFB), deve o legislador escolher a mais adequada e, assim o fazendo, estabelecer a intensidade da punição [3].

Segundo o Código Penal, a pena para o crime de homicídio doloso simples é de seis a 20 anos (artigo 121, caput) e, para o homicídio doloso qualificado (artigo 121, §§2º e 2º-A), pena de 12 a 30 anos. Para ambos, penas de reclusão que, entre outras coisas, é indicativa do início do cumprimento em regime fechado. Analisando a pena para o crime de homicídio culposo (artigo 121, §3º), todavia, temos uma pena ínfima de um a três anos de detenção. A detenção, como regra, implica o cumprimento da pena em regime semiaberto ou aberto. Se o crime for cometido na direção de veículo automotor, incide o Código de Trânsito Brasileiro (CTB — Lei 9.503/1997) e a pena passa a ser de detenção, de dois a quatro anos (artigo 302 do CTB), ou, no caso de embriaguez ou intoxicação por drogas, reclusão, de cinco a oito anos (artigo 302, §3º, do CTB). Apenas neste último caso, ou seja, homicídio culposo decorrente de embriaguez no trânsito, é discutível se a proporcionalidade foi observada. Nos demais casos, não se observa proporcionalidade entre o crime e a pena.

Para chegarmos a essa conclusão, basta comparar, por exemplo, a pena do homicídio culposo com a pena do crime de furto simples (artigo 155 do CPB), que tem punição abstrata mais severa, prevendo-se reclusão de um a quatro anos e multa. Se qualificado (artigo 155, §4º, do CPB), a pena prevista para o furto é de reclusão de dois a oito anos, e multa. Indo mais além, trazendo um exemplo da atividade legislativa mais recente, temos a alteração no Código Penal, promovida pela Lei 14.155/2021, que incluiu o §4º-B no artigo 155 do Código Penal, o qual prevê pena de reclusão, de quatro a oito anos, e multa, se o furto mediante fraude é cometido por meio de dispositivo eletrônico ou informático. No caso de a vítima ser idoso ou vulnerável, a pena pode atingir de oito a 16 anos. Exemplos como esses abundam na legislação brasileira. Como se percebe, o bem jurídico tutelado nos casos de homicídio culposo, a vida, não recebe proteção suficiente e proporcional do Direito Penal, sobretudo quando comparado a outros bens jurídicos de menor relevância, como o patrimônio, que desfruta de uma "supertutela" da legislação punitiva brasileira e tem uma "clientela" de sujeitos ativos cujo perfil é bem definido [4].

Compreendido esse aspecto, é possível avançar ao segundo ponto e entender a problemática que segue sobre a distinção não acadêmica entre dolo eventual e culpa consciente nos casos de homicídio. Em qualquer dos bons manuais e tratados de Direito Penal é possível encontrar a teoria do dolo e da culpa e, mais ainda, debruçar-se sobre as diferenças teóricas entre o dolo eventual e a culpa consciente. Em nenhum dos livros, todavia, se analisa — se é que deveriam — em que medida, na prática forense, a diferença pode residir na inclinação do operador ao analisar a pena atribuída aos crimes. Em outras palavras, a análise técnico-jurídica dos fatos e, consequentemente, a distinção, no caso concreto, pelo enquadramento como dolo eventual ou culpa, que deveria ser balizada pelas distinções teóricas, pode sofrer a influência do fator "pena/proporcionalidade" ou "pena/justiça".

Assim, em um cenário de dúvida, o operador do Direito, analisando sobretudo um caso grave de homicídio, estando numa "zona cinzenta" entre dolo e culpa, pode se ver no dilema entre dois caminhos bastante espinhosos: a primeira situação é seguir a teoria que distingue os institutos do dolo e da culpa e, como consequência, ter-se uma pena leniente para um caso grave de homicídio culposo ou, seguindo por outro caminho, utilizar-se dos eventuais espaços interpretativos e de discricionariedade para enquadrar o caso no dolo indireto ou eventual e, como consequência, ter uma pena proporcional. Quem segue o primeiro caminho parece buscar ser técnico, imparcial e aplicar a lei, embora defeituosa. Quem opta pelo segundo, parece buscar justiça e uma pena proporcional no caso concreto.

Um cenário como esse seria evitado se houvesse para o crime de homicídio culposo uma pena correspondente à gravidade da conduta e do resultado causado. É inacreditável que mesmo após tantas modificações no Código Penal o legislador brasileiro ainda não tenha refletido sobre a necessidade de alteração da pena prevista para o homicídio culposo, de modo a prever sanções justas e proporcionais à gravidade do delito. Certamente, se há dúvida sobre qual seria a pena adequada, pois esta não é uma atividade fácil, não pode ser uma pena menor do que aquela prevista para um crime contra o patrimônio praticado sem violência ou grave ameaça.

 


[1] Faço merecido registro ao professor Guilherme Nucci que, brilhantemente, faz severa crítica, ecoada aqui, à pena branda do homicídio culposo em Nucci, G. (2019) Curso de Direito Penal: parte especial: artigos 121 a 212 do Código Penal. Rio de Janeiro: Forense.

[2] Zedner, L. (2004) Criminal justice Oxford: Oxford University Press, p. 87.

[3] Além da retribuição, reconhecimento outras finalidades da punição, dentre as quais a ressocialização (Supremo Tribunal Federal — Habeas Corpus nº 107.701 — relator ministro Gilmar Mendes, DJe 23/06/2012).

Autores

  • é promotor de Justiça do Ministério Público de Pernambuco, mestrando em Criminologia e Justiça Criminal pela Universidade de Edimburgo e em Perícias Forenses pela Universidade de Pernambuco, especialista em Direito do Estado pela Faculdade Estácio do Pará (FAP) e em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor especialista I no Centro Universitário Maurício de Nassau (Uninassau/Recife)

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