Opinião

Efeitos retroativos da prescrição segundo a nova Lei de Improbidade Administrativa

Autor

  • Alan Diniz Moreira Guedes de Ornelas

    é advogado criminalista especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pelo Instituto Brasiliense de Direito Público especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e membro do Grupo Candango de Criminologia da Universidade de Brasília.

2 de fevereiro de 2022, 19h12

Em 26 de outubro de 2021, foi sancionada a Lei nº 14.230/21 (1), que reformou a Lei de Improbidade Administrativa e, entre outros, instituiu novos parâmetros prescricionais, enfatizando a necessidade de se respeitar um período razoável para o processamento das ações de improbidade, cuja inovação sana uma necessidade que há muito clamava por legislação que impedisse atos abusivos e autocratas que eternizavam o trâmite processual.

Isso importa dizer que o instituto da prescrição intercorrente, aquele fenômeno análogo à prescrição stricto sensu, mas que desta se diferencia por ocorrer quando o processo já está em curso e que, segundo Scarpinella (2), é "a falta de impulso processual pela parte que pode acarretar a perda da ‘pretensão’ à tutela jurisdicional", passa a existir perfunctoriamente nos processos de improbidade.

E é justamente daí que surge o questionamento sobre a consideração dos prazos já transcorridos nos autos das improbidades administrativas, no sentido de ser  ou não  possível a aplicação da nova sistemática da prescrição nos processos em curso, em respeito ao princípio da retroatividade.  

O ponto de partida para as considerações acerca da controvérsia reside no próprio texto da lei, que, agora, solidifica a ideia de que ao sistema da improbidade devem se aplicar os princípios constitucionais do Direito Sancionador, inovação inserida no §4º do artigo 1º, passando a reconhecer a efetiva função sancionatória da Lei de Improbidade Administrativa e, ainda, que os princípios constitucionais aplicados rotineiramente ao processo penal também poderão se incorporar ao processo da improbidade, dado o caráter sancionatório. De fato, é preciso que "ao expressar a prerrogativa do Estado de punir as condutas ilícitas, seja conformada pelos princípios constitucionais especificamente, pelos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador" (3).

A hermenêutica não pode ser diversa, já que toda e qualquer atividade administrativa deve observar atentamente aos princípios e às regras constitucionais, considerando que a Constituição é o cerne da vinculação administrativa à juridicidade, especialmente diante do poder punitivo, na medida em que a aplicação de sanções aos particulares também se colide frontalmente com os direitos fundamentais, nascendo daí a ideia de que esse sistema punitivo deve ser controlado pelo conjunto de regras que conferem proteção ao administrado (4).

Pelo menos desde 2014, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem caminhado para o reconhecimento de princípios fundamentalmente aplicados no processo penal no âmbito sancionatório, na ocasião do julgamento do Mandado de Segurança nº 23.262/DF (5), em que se entendeu pela aplicação do princípio da presunção de inocência, previsto no artigo 5º, LVII, CF, aos processos administrativos sancionadores.

Essa era a linha há muito adotada pelo saudoso ministro Teori Zavascki, que, embora entendesse pela impossibilidade de se traçar uma linha absoluta de unidade do regime jurídico, do que não se pode discordar, entendia que "alguns princípios são comuns a qualquer sistema sancionatório, seja nos ilícitos penais, seja nos administrativos, entre eles o da legalidade, o da tipicidade, o da responsabilidade subjetiva, o do non bis in idem, o da presunção de inocência e o da individualização da pena, aqui enfatizados pela importância que têm para a adequada compreensão da Lei de Improbidade Administrativa" (6).

Quer dizer, diante da nova previsão legal que institui ao sistema de improbidade os mesmíssimos princípios constitucionais do Direito Sancionador, bem como a necessidade de existência de garantias mínimas aos réus e os entendimentos jurisprudenciais que há muito reconhecem a similitude de garantias processuais penais ao Direito Administrativo Sancionador, não subsistem dúvidas de que a aplicação do princípio da retroatividade é consectário lógico para a solução da controvérsia.

Isso se dá porque é diametralmente inadmissível que regras basilares do Direito não possam ser admitidas nas sanções administrativas de caráter sancionatório, diante das duríssimas penas capazes de causar gravames tão ou mais severos que os originários de sanções penais (7).

Mas não é só. Consagrado na Constituição Federal de 1988, o princípio da retroatividade pressupõe como regra geral que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu. Estamos a tratar, com isso, de uma proibição relativa à retroatividade legal, já que a Constituição veda que a lei nova possa intervir no direito adquirido, no ato jurídico perfeito e na coisa julgada, assim como disposto no artigo 6º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.

Previsto como princípio geral do direito sancionatório, ele é oriundo das ideias consagradas pelo Iluminismo, "insculpida na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Embora conceitualmente distinto, o princípio da irretroatividade ficou desde então incluído no princípio da legalidade, constante também da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948" (8).

Como se vê, tal princípio não é absoluto e pode recomendar que em algumas situações seja possível a retroação, desde que em benefício do réu, atingindo, inclusive, atos jurídicos praticados sob o império da lei anterior (9). Disso se extrai ser plenamente possível que a lei nova benéfica alcance os casos pendentes de situações passadas.

No que se refere às regulamentações da Lei n.º 14.230/21, o instituto da prescrição, a depender do caso concreto, pode beneficiar o réu em processo já prescrito, a fazer com que a nova lei retroaja em seu benefício, assim como ocorre no Processo Penal. Nesse sentido, os princípios fundamentais de Direito Penal vêm aplicados no âmbito do Direito Administrativo repressivo, considerando que a configuração da sanção administrativa em grande medida se aproxima da sanção penal, já que o regime jurídico de ambas as sanções possui similitudes, especialmente no que concerne aos princípios fundamentais de Direito Penal aplicados no âmbito do Direito Administrativo Sancionador.

A questão se reforça através do fato de que a infração administrativa sancionatória consiste no "descumprimento voluntário de uma norma administrativa para o qual se prevê sanção cuja imposição é decidida por uma autoridade no exercício de função administrativa  ainda que não necessariamente aplicada nesta esfera" (10).

Aplicar entendimento de modo diverso é usurpar a própria construção teórica de um tipo administrativo sancionador, derivada da juridicidade e da necessidade de preexistência de um tipo, ainda que parcial, além de lesividade, antijuridicidade e culpabilidade que corporificam o conceito analítico e que impõe ao indivíduo a máxime de prévio conhecimento sobre seus direitos e deveres.

Relativamente à seara do processo administrativo disciplinar, procedimento também sancionatório, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do RMS 37.031/SP (11), já pacificou o entendimento que defende a possibilidade de retroação da lei mais benéfica, tida como um princípio basilar do Direito sancionatório, e não somente do Direito Penal, no sentido de também incidir ao Direito Administrativo repressivo as benesses da retroação. E, muito recentemente, idêntico entendimento foi aplicado nos autos do RMS 65.486/RO (12), de relatoria do ministro Mauro Campbell Marques, que, por seu turno, afirmou que "o processo administrativo disciplinar é uma espécie de direito sancionador", reconhecendo a incidência do princípio da retroatividade mais benéfica também no âmbito dos processos administrativos disciplinares.

E mais! A jurisprudência (13) do Supremo Tribunal Federal vem reconhecendo que o Direito Administrativo Sancionador deve ser considerado como um autêntico subsistema penal. Afinal, "a fim de poder julgar as demandas de violações aos direitos processuais a ele direcionadas, o TEDH firma um conceito unitário em matéria punitiva dos Estados, a fim de concretizar o conteúdo do que compreendia como matéria penal e poder, assim, decidir sobre as demandas que recebia. O Tribunal estabelece um conceito de direito penal em sentido amplo (…). o direito administrativo sancionador deve ser entendido como um autêntico subsistema penal" (14).

Nessa lógica, trata-se o Direito Administrativo de autêntico subsistema penal que recebe como parâmetro as mesmas linhas principiológicas, onde há, da mesma maneira, a transposição das garantias constitucionais. A propósito, a natureza jurídica do Direito sancionador não se distingue nos campos Penal, Administrativo, Ambiental, Eleitoral ou Tributário.

O cerne da controvérsia repousa no pressuposto de que as garantias exaradas pela Constituição Federal compõem núcleo comum entre os âmbitos penal e administrativo, por meio do qual estrutura direitos fundamentais dos acusados em geral, especialmente no campo do devido processo legal e, por consequência, do respeito à retroação da norma mais benéfica. Assim sendo, defronte aos mesmos pressupostos e às garantias fundamentais, não se pode, por qualquer ótica, eximir da improbidade a possibilidade de aplicação de uma norma mais benéfica.

Ainda, como é sabido, prescrição é instituto jurídico de Direito eminentemente material (15); dessa forma, em que pese a regra geral discipline que a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada e, muito embora tecnicamente não se trate de lei de natureza puramente penal, é indubitavelmente relacionada a Direito material  e não processual —, que trata da prescrição, a qual, se claramente mais benéfica réu (Direito Administrativo Sancionador enquanto subsistema penal  extensão do jus puniendi estatal e do sistema criminal), a ele não se pode negar o direito de retroação.

Com isso, a irretroatividade da lei punitiva que agrava a situação do agente é princípio que prevalece em qualquer seara na qual o Estado exerça função sancionatória, pois a violação e consequente recomposição da ordem jurídica possuem alicerces idênticos, sendo que o mesmo é totalmente aplicável à retroatividade da lei mais benéfica. Afinal, "verificada a severidade de determinada sanção e optando o legislador por atenuá-la, aqueles que praticaram atos de improbidade sob a égide da lei antiga haverão de ser alcançados pela alteração legislativa" (16). Quer dizer, justamente por se tratar de norma de Direito material é que à prescrição também deve ser aplicada à mesma solução.

Desse modo, não há como negar que ao Direito Administrativo Sancionador devem ser aplicados os mesmos princípios constitucionais que emanam sobre o Processo Penal; ou, ainda, somente admitir a incidência seletiva dos princípios, por livre convicção. Ora, do mesmo modo com que princípios basilares  como o do contraditório  permeiam no âmbito sancionador, inexiste justificativa para a exclusão dos demais.

Não se pode, assim, permitir que ao processo administrativo sancionatório sejam aplicados entendimentos e soluções retrógados, engessados ao longo do tempo e que impedem a efetivação das garantias fundamentais inerentes ao sujeito processual que jamais podem ser tolhidas por ferir o próprio texto constitucional, tornando plenamente possível que aos processos em curso haja aplicação imediata dos novos regimentos prescricionais, inclusive para considerar os prazos já transcorridos e retroagindo para beneficiar o réu.

 


(1) BRASIL. Presidência da República. Lei nº 14.230/21. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14230.htm. Acesso em 31 de janeiro de 2022.

(2) BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2015.

(3) GONÇALVES, Benedito. GRILO, Renato César Guedes. Os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador no regime democrático da Constituição de 1988. Revista Estudos Institucionais, v. 7, nº 2, p. 467-478, mai./ago. 2021.

(4) BINENBOJM, Gustavo. O direito administrativo sancionador e o estatuto constitucional do poder punitivo estatal: possibilidades, limites e aspectos controvertidos da regulação do setor de revenda de combustíveis. Revista de Direito da Procuradoria-Geral, Rio de Janeiro: Administração Pública, Risco e Segurança, 2014.

(5) STF. MS 23262 DF, relator: ministro Dias Toffoli, Data de Julgamento: 23/04/2014, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe 29-10-2014. Publicação: 30-10-2014.

(6) Ag. Reg. Pet 3240 DF, relator. ministro Teori Zavascki, Data de Julgamento: 15/05/2018, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe 21-08-2018. Publicação: 22-08-2018.

(7) MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios Constitucionais de Direito Administrativo sancionador. As sanções administrativas à luz da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 106.

(8) BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal  Parte Geral 1. 11ª. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2007, pág. 162.

(9) Gonçalves, Carolos Roberto. "Direito Civil, volume I: parte geral". 6 ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, pag. 60.

(10) BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 26 ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 840.

(11) STJ. RMS 37.031/SP, relatora ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 08/02/2018, DJe 20/02/2018.

(12) STJ. AgInt no RMS 65.486/RO, relator ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/08/2021, DJe 26/08/2021.

(13) Rcl 41557, relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 15/12/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-045 DIVULG 09-03-2021 PUBLIC 10-03-2021.

(14) OLIVEIRA, Ana Carolina. Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador. 2012. P. 190.

(15) BODIN DE MORAES, Maria Celina. Prescrição, efetividade dos direitos e danos à pessoa humana, em civilistica.com, a.6.nº 1. 2017.

(16) GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 3ª edição. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2006, p. 186/187.

Autores

  • é advogado criminalista, especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e membro do Grupo Candango de Criminologia da Universidade de Brasília.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!