Opinião

Balizas para a realização da confissão na fase de celebração do ANPP

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1 de fevereiro de 2022, 18h08

Com a promulgação da Lei 13.964/2019, foi incluído o artigo 28-A no Código de Processo Penal, inaugurando o acordo de não persecução penal (ANPP) na legislação processual penal.

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Conforme o dispositivo, o acusado poderá celebrar o ANPP com o Ministério Público quando não for o caso de arquivamento da investigação; tiver supostamente praticado delito cuja pena mínima seja de até quatro anos de reclusão, desde que cometido sem violência ou grave ameaça, uma vez confessada formal e circunstancialmente a prática da infração.

Entretanto, além do exame acerca dos pressupostos e requisitos do ANPP, deve-se refletir sobre as balizas da confissão, para que ela não viole o direito fundamental à não autoincriminação. A confissão formal e circunstanciada é requisito essencial para celebração do negócio jurídico. Isso significa que o imputado precisa "narrar de maneira detalhada e minudente todas as circunstâncias de objeto, tempo, lugar e modo de execução da infração penal investigada" [1]. O protagonismo da confissão pode representar, contudo, o retorno ao modelo ultrapassado do sistema de provas tarifárias [2], figurando como "rainha das provas", diferentemente da transação penal, em que a confissão não é condicionante.

Embora esteja prevista no dispositivo a condição de que o investigado tenha confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal para a propositura do ANPP, deve-se admitir que ocorra na formalização do acordo.

Nesse sentido, ao se considerar que a proposta para o ANPP deve anteceder a confissão, cria-se um cenário de maior previsibilidade ao acusado, de modo a garantir a plena voluntariedade do pacto e evitar que a confissão em sede de investigação preliminar possa ser utilizada contra si próprio.  

Sobre isso, deve-se levar em consideração que, durante o curso da investigação preliminar, muitas vezes o acusado não sabe se eventual tipo penal a ser imputado seria passível de oferecimento do ANPP, de modo que não se deve exigir a confissão sem antes ter havido a propositura do acordo. 

De fato, o que se busca com a confissão é fornecer maior lastro para a justa causa, afastando a hipótese de arquivamento das investigações, aumentando as chances de que "não se está a praticar uma injustiça contra um inocente" [3], em troca da concessão de benefícios processuais que podem ensejar a extinção da punibilidade do imputado.

E não obstante a confissão voluntária seja interpretada como indispensável para aplicação do ANPP [4], tem-se admitido que seja oportunizada quando da celebração do acordo na fase processual, e não apenas no bojo da investigação preliminar, como poderia depreender da literalidade do caput do dispositivo.

Inclusive, o voto proferido pelo ministro relator do HC 185.913/DF, leading case acerca da retroatividade e potencial cabimento do ANPP, cuja apreciação se encontra suspensa, contemplou a superação do óbice da ausência de confissão na fase investigatória ou processual para a propositura do ANPP [5].

Assim, não é necessário haver confissão prévia  na fase de investigação preliminar  para aplicação do ANPP, podendo o acordo, sem prejuízo, ser firmado em momento posterior, como também aponta o Enunciado 03 da I Jornada de Direito Processual Penal [6].

Partindo dessa premissa, é possível alcançar as balizas para a realização da confissão na fase processual da celebração do ANPP, à luz da garantia constitucional da não autoincriminação e considerando ainda a tentativa de utilização da prova no caso de rescisão do acordo.

Acerca dos princípios norteadores da confissão na fase processual do ANPP, em suma, salientam Vinícius Vasconcellos e Dimas Reis que "tais provas, incluindo a confissão, são produzidas pelo imputado com renúncia ao direito à não autoincriminação, tendo em vista os benefícios e termos pactuados no acordo, de modo que a sua utilização sem a contraprestação, por qualquer motivo, ainda que por descumprimento, é atuação abusiva ao violar o direito à não autoincriminação" [7].

Dessa forma, a exigência da confissão para a celebração do ANPP se opõe ao direito à não autoincriminação, que se infere, na Constituição Federal, do disposto no artigo 5º, LXII, acerca da obrigação de ser o sujeito preso informado de seu direito de permanecer calado.

A restrição ao direito fundamental está justificada dentro do contexto da obtenção de um benefício processual, mas é essencial que a autoincriminação seja permeada de segurança jurídica para preservar tanto a voluntariedade da confissão quanto a obtenção dos proveitos.

Primeiramente, é preciso ter em vista que a celebração do ANPP, conforme interpretação jurisprudencial [8], não constitui direito subjetivo do imputado.

Apesar de compreender o ANPP um importante instrumento de política criminal, é possível que o Parquet conclua fundamentadamente que, na hipótese, não se mostra necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime. Obviamente, a não discricionariedade dessa decisão permite o seu controle em âmbito interno ao Ministério Público ou, inclusive, pelo Judiciário.

A par disso, o §10 do artigo 28-A do CPP dispõe que, no caso de descumprimento das condições estipuladas, o Ministério Público comunicará ao juízo para fins de rescisão e posterior oferecimento da denúncia, sem que tenha sido feita ressalva acerca da impossibilidade de utilização das informações ou provas produzidas pelo imputado para fins processuais, como ocorre no caso de não pactuação do acordo de colaboração premiada por iniciativa do celebrante (artigo 3º-B, §6º, da Lei 12.850/2013).

Assim, conquanto o instituto seja novo e existam muitas indefinições acerca dos seus limites e possibilidades, não é possível descartar a chance de utilização da confissão firmada para fins de ANPP como prova do processo, já que sequer é realizado por meio do interrogatório judicial [9] e inverte a lógica processual acusatória que atribui o ônus probatório ao órgão de acusação.

É por esse motivo que, na fase processual, a realização da confissão precisa estar respaldada no prévio oferecimento da proposta de ANPP pelo Ministério Público, com especificação das condições de maneira individualizada e conforme adequação ao caso concreto, de modo a permitir que o imputado avalie voluntariamente a possibilidade de renúncia ao direito à não autoincriminação.

Com isso, pode-se concluir que a definição de balizas para realização da confissão na fase processual, mediante anterior apresentação da proposta de acordo pelo Ministério Público, definidas as condições e estipuladas as obrigações do imputado, considerada a ausência de direito subjetivo à realização do negócio jurídico e o risco de utilização da confissão como prova processual, apresenta-se como requisito de legitimidade para exercício da renúncia ao direito fundamental da não autoincriminação.

 


[1] SAAD, Marta. Artigo 28-A. In: GOMES FILHO, TORON, BADARÓ (Coord.). Código de Processo Penal comentado. 3. ed. São Paulo: RT, 2020. p. 176.

[2] Vasconcellos, Vinicius Gomes de; Reis, Dimas Antônio Gonçalves Fagundes. Limites à utilização da confissão do imputado realizada como requisito ao acordo de não persecução penal. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 20, nº 80, p. 294, 2021.

[3] CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. A confissão circunstanciada dos fatos como condição para a celebração do acordo de não persecução penal. In: DE BEM, Leonardo Schmitt; Martinelli, João Paulo Orsini (Org.). Acordo de não persecução penal. 2. ed. Belo Horizonte: Editora D´Plácido, 2020. p. 217.

[4] STJ, EDcl no AgRg nos EDcl no AREsp 1574430/SP, relator ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, j. 18/02/2020.

[5] STF, HC 185.913/DF, relator ministro Gilmar Mendes.

[6] "A inexistência de confissão do investigado antes da formação da opinio delicti do Ministério Público não pode ser interpretada como desinteresse em entabular eventual acordo de não persecução penal". https://www.cjf.jus.br/cjf/noticias/2020/08-agosto/i-jornada-de-direito-e-processo-penal-aprova-32-enunciados

[7] Vasconcellos, Vinicius Gomes de; Reis, Dimas Antônio Gonçalves Fagundes. Limites à utilização da confissão do imputado realizada como requisito ao acordo de não persecução penal. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 20, n. 80, p. 302-303, 2021.

[8] STF, HC 191124 AgR, relator ministro Alexandre de Moraes, Primeira Turma, j. 08/04/2021; STJ, AgRg no RHC 130.587/SP, relator ministro Felix Fischer, Quinta Turma, j. 17/11/2020.

[9] Vasconcellos, Vinicius Gomes de; Reis, Dimas Antônio Gonçalves Fagundes. Limites à utilização da confissão do imputado realizada como requisito ao acordo de não persecução penal. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 20, nº 80, p. 302-303, 2021.

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