Opinião

Decisões de qualidade em temas relevantes para o país: o novo filtro do STJ

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23 de dezembro de 2022, 17h15

A inclusão do instituto da relevância da questão federal no ordenamento jurídico brasileiro deve ser vista com bons olhos. Trata-se de um problema que aflige muitos tribunais no mundo e se diz que tentar resolvê-lo é como cortar as cabeças de Hydra [1].

Remédios de todos os tipos foram e vêm sendo pensados para não expor cortes superiores a insuportáveis cargas de trabalho, que acabam por inviabilizá-las e por impedir que cumpram a sua função.  Afinal, crises quantitativas geram crises qualitativas…

Muitas soluções foram e vêm sendo concebidas: limites ligados ao tipo de decisão que estaria sujeita a recurso para estes órgãos, por exemplo, só decisões finais; outros, ligados àquilo que pode ser examinado por estas Cortes: apenas questões de direito; pode-se, também, exigir que o dano causado pela decisão recorrida seja grave para as partes ou, ainda, um depósito em dinheiro para se garantir a possibilidade de recorrer.

A possibilidade de se criarem meios para que haja uma superprodução de decisões, como, por exemplo, aumentar significativamente o número de juízes das cortes superiores, gera o evidente risco da existência de decisões conflitantes e de que a Corte não consiga cumprir seu papel. Essa tentativa de solucionar o problema não apresentou, nem no nosso país nem em outros, o resultado desejado [2] [3].

Deve-se ter presente que vem se operando uma sensível mudança na função das cortes superiores.

Se voltarmos nossos olhos para as origens destes órgãos, nos vem a lembrança o fato de que uma das várias causas da Revolução Francesa foi o desejo de que os juízes não fossem arbitrários. Havia uma histórica desconfiança em relação à atuação dos juízes, que, eram tidos como servidores fiéis dos comandos arbitrários do monarca. Por isso, pareceu conveniente que o órgão incumbido de exercer essa função ficasse fora do Poder Judiciário para controlar justamente a legalidade das decisões dos juízes. E, então, a Cour de cassation francesa nasceu na França, sem ser exatamente uma corte ou um tribunal. Ela deveria funcionar auprès du corps legislatif, i.e., junto ao Poder Legislativo. Apenas mais tarde na história, na época de Napoleão Bonaparte, a Corte de Cassação passou a fazer parte do Judiciário.

Este mesmo modelo foi seguido pela Corte de Cassação italiana.

A função destas Cortes era, e é, na grande maioria das vezes, declarar que determinada decisão ofendia ou não o texto da lei.

Na Alemanha, essa preocupação com a legalidade das decisões, isto é, com o fato de elas estarem de acordo com o direito positivo, foi substituída por uma preocupação similar: a uniformidade.

Este era e ainda é o papel das Cortes Superiores na Alemanha [4].

A Corte de Cassação francesa teve uma história diferente da dos Tribunais alemães. Nasceu com significativas limitações, como se viu, pois não consistia num verdadeiro Tribunal, já que sua função foi originariamente concebida como sendo a de anular decisões contrárias à lei, para, com isso, preservar o direito objetivo. Tudo sempre foi tratado a partir da ilusão de que o controle da legalidade poder se ia fazer colocando-se textos lado a lado: o da decisão cuja legalidade se pretendia controlar, de um lado; e o da lei, do outro.

Durante muito tempo a Corte de Cassação se furtou a examinar alegadas ofensas a leis que continham conceitos flexíveis ou  indeterminados, porque se considerava que, nesses casos, não haveria propriamente ofensa a lei e uma afronta ao poder legislativo [5]. Entretanto, hoje em dia, mesmo na França, como já se reconhece que a Corte de Cassação desempenha, em certa medida, papel normativo, é evidente que esta correção da ilegalidade é até mais relevante quando se trata da infringência de normas que contêm conceitos indeterminados [6].

Impossível que não nos lembremos aqui da infeliz sumula 400 do STF!

Na Alemanha, por outro lado, o poder de revisão era, tradicionalmente, mais amplo e sempre se entendeu que a revisão da Subsuntion era tarefa do Bundesgerichtshof, que o fazia sob a forma de um silogismo.

Também a ideia de que seria possível separar com nitidez o fato do direito acabou sendo abandonada na Alemanha. O recurso de Revision é admitido quando se tratar de questão de direito, sim, mas sobretudo quando se presta a gerar uniformidade do direito. As questões cujo exame é conveniente, porque pode levar à uniformidade do direito são, evidentemente, de interesse geral [7].

Entretanto, as sociedades mudaram, tornaram-se mais complexas e o direito a cada dia que passa exerce sua vocação de cobrir toda a realidade! O significativo aumento de movimento no Poder Judiciário é consequência destes dois fenômenos.

As leis, para que possam durar mais no tempo, e gerar decisões mais rentes à realidade das peculiaridades dos casos concretos, hoje contêm frequentemente conceitos vagos, clausulas gerais, o que implica reconhecer ao Judiciário um papel relevante na construção do próprio direito.

A possibilidade de que se viessem a criar filtros para a admissão de recursos para as Cortes Superiores implica justamente admitir-se que, em certa escala, estas exercem uma função criativa em relação ao direito. Se se entendesse que os Tribunais Superiores exercem apenas a função mecânica de verificar se a decisão está de acordo com a lei, essa "relevância" que se exige não teria muito sentido, pois o Tribunal nada faria além de colocar lado a lado os textos e compará-los.

Hoje se tem consciência de que os Tribunais Superiores interpretam a lei, ou seja, optam por um de seus possíveis sentidos, à luz da realidade circundante e do ethos dominante. Nem sempre essa operação é simples. Muitas vezes é bem complexa e demanda tempo. Neste contexto, passa a fazer sentido que se espere a decisão dos Tribunais de cúpula como um plus em relação ao texto da lei e como guia/orientação para os demais órgãos do Poder Judiciário, mesmo em países em que não há precedentes formalmente vinculantes [8].

Exata e precisamente neste contexto é que se encaixam os institutos da repercussão geral, introduzido no direito brasileiro pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004, e da relevância da questão federal, que recentemente passou a figurar como filtro para que questões federais sejam examinadas pelo STJ em recurso especial, a partir da promulgação da Emenda Constitucional nº 125/2022, que depende de regulamentação infraconstitucional.

Logo que foi introduzida a repercussão geral como filtro para o cabimento do recurso extraordinário, no ano de 2004, cuja introdução no ordenamento jurídico foi por nós aplaudida, sustentamos que era uma incongruência interna do sistema adotar um filtro para questões constitucionais e nenhum filtro para temas infraconstitucionais.

Neil Andrews, ao tratar do tema no Reino Unido, sublinha que a permissão para que se julguem recursos para a Suprema Corte britânica só é concedida normalmente quando se trata de questão de interesse público (ou outro tipo de relevância especial) [9]. À semelhança com o que ocorre no sistema jurídico anglo-saxão, a Suprema Corte da Austrália concede uma licença especial para recorrer (special leave application to the High Court) ou, nos casos envolvendo direito de família, exige que a questão seja de direito ou se revista de interesse público (an important question of law or of public interest is involved) [10].

É interessante notar-se que o critério da relevância vem-se tornando cada vez mais comum em países de diferentes tradições como ocorre na Suprema Corte dos EUA, com o writ of certiorari; na Suprema Corte britânica, que exige a "permission to appeal"; na Austrália, que exige "special leave application"; na Espanha, em que se requer para que se possa recorrer para a Corte de Cassação, o "interes casacional" e "especial transcendência constitucional", ou, ainda, na Alemanha, a significância fundamental da matéria de direito, "grundsätzliche Bedeutung der Rechtssache".

Entre os termos utilizados para nomear os filtros de acesso nos vários países, a expressão "grundsätzliche Bedeutung" é, a nosso ver, a que melhor expressa a função do instituto. O adjetivo "grundsätzliche", isto é, fundamental, denota que as questões de direito cujo exame venha a ser admitido nos Tribunais Superiores ligam-se mais intimamente ao aspecto qualitativo que quantitativo.

A razão em função da qual se faz esta seleção é, seja ou não confessada, haja ou não fundamentação da decisão em que se revela a seleção, a importância, a relevância da questão cujo exame se quer submeter à Corte Superior.

A missão pública das cortes superiores, no sentido de promover uniformidade e unidade do direito, contribuindo decisivamente para a construção do próprio direito, fica evidentemente realçada quando se prioriza o filtro qualitativo da relevância. A desvantagem deste filtro é, obviamente, o risco de haver decisões arbitrárias em razão de os critérios serem sempre bastante flexíveis.

Entretanto, nem sempre os filtros têm estas feições. Costumam privilegiar ora aspectos ligados ao interesse das partes (jus litigatoris), ora aqueles que dizem respeito ao interesse público.

É o que ocorre no que diz respeito às petições para a Corte Europeia de Direitos Humanos (artigo 35, 3.b do ECHR), em que um dos critérios para que sejam admitidas petições é a "relevant injury".

No direito alemão, a allgemeiner Bedeutung (significância geral) é o requisito para o acesso per saltum ao Bundesverfassungsgericht (§90.2 da Lei do Tribunal Constitucional Federal alemão) [11]. No âmbito do Bundesgerichthof (correspondente ao nosso STJ), há uma hipótese de Revision denominada Sprungrevision, em que se lança mão desse recurso per saltum para o Bundesgerichthof, em vez de se interpor pelo caminho "normal" a Berufung (que seria a nossa Apelação) [12].

Um exemplo de critério que leva em conta a situação das partes é o "magnitude of error". Como ocorre nas Supremas Cortes dos países nórdicos [13] e na Suprema Corte japonesa [14].

Vale a pena a referência a filtros negativos, como, por exemplo, aqueles que possibilitam a inadmissão imediata de recursos ou pedido "manifestamente infundados", "que carecem de seriedade" ou, como ocorre no Brasil, que pretendem rediscutir o que o Tribunal já decidiu (artigos 932, III, 1.030, II, 1.035, caput do CPC).

Giannini chama estes filtros de impróprios, a nosso ver, adequadamente [15].

Muito frequentemente, países criam sistemas de filtros mistos, envolvendo seleção por qualidade — relevância da questão para as partes ou para o direito  viés público , e também usando critérios de quantidade, como, por exemplo, o valor da causa. É o que ocorre na Suíça e na Áustria [16].

Os filtros qualitativos são descritos em linguagem flexível e vaga como a "significância fundamental" do direito alemão, ou o "interes casacional" do direito espanhol ou a Relevância e Repercussão Geral, do direito brasileiro.

Há, também, os filtros em que a discricionariedade na seleção se revela em sua versão mais intensa, como acontece com o certiorary norte americano [17].

Dá-nos certo conforto saber que estamos incluídos numa tendência mundial: a de se criarem filtros para acesso às Cortes Superiores.

Efeitos imediatos da adoção deste sistema para o STJ provavelmente serão 1) o de aliviar a desumana carga de trabalho deste Tribunal, o que é relevantíssimo já que, via de regra, crise quantitativa e qualitativa andam juntas, 2) às questões relevantes será dedicado mais tempo pelos julgadores, 3) o sistema de precedentes tende a ser fortalecido, no que tange a temas importantes, 4) provavelmente, o aumento do número de decisões colegiadas, 5) a concretização mais visível do princípio da razoável duração do processo.

A relevância é, senão a única solução possível para a viabilidade do Tribunal, certamente a melhor até agora apresentada.

Bem disciplinada por lei infraconstitucional e pelo Regimento Interno do STJ, o filtro da relevância tem o potencial de melhorar indisputavelmente a performance do Poder Judiciário brasileiro, gerando, correlatamente, mais segurança jurídica.

Para contribuir com este debate, foi feito um estudo sobre o filtro de relevância para a admissibilidade de recursos especiais pela Fundação Getúlio Vargas, por meio do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário (CIAPJ). A pesquisa tem a coordenação geral do ministro Luis Felipe Salomão, coordenação acadêmica da juíza federal Caroline Tauk e conta com os seguintes professores pesquisadores, além da autora deste texto: Fernanda Bragança, Humberto Dalla, Mariana Devezas, Osmar Mendes Paixão Côrtes, Renata Braga, Rodrigo Cunha Mello Salomão.

Clique aqui para ler a pesquisa

 


[1] A esta metáfora faz alusão Leandro Giannini: "El esfuerzo por hacer que la carga de trabajo de la Corte sea manejable, es un poco como cortar las cabezas de una Hydra", de Richard Stevens, Introduction, In: The business of the Supreme Court: a study in the Federal Judicial System, 2007, p. apud Leandro Giannini. El 'Certiorariy' la Jurdisdicción discrecional del los Superiores Tribunales. Tese de Doutorado defendida na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais, Universidade Nacional de la Plata, p. 3. A morte de Hidra foi um dos 12 trabalhos de Hércules. Segundo o mito, toda a vez que Hércules cortava uma das sete cabeças de Hidra, outras duas nasciam no lugar, tornando o trabalho quase impossível.

Segundo Junito Brandão, "A interpretação evemerista do mito é de que se trata de um rito aquático. A hidra, com as cabeças, que renasciam, seria, na realidade, o pântano de Lerna, drenado pelo heroí. As cabeças seriam as nascentes, que, enquanto não fossem estancadas, tornariam inútil qualquer drenagem". Mitologia Grega, vol. 1, 26ª ed., Petrópolis-RJ: Vozes, 2020, p. 256.

[2] Segundo Guy Canivet, que ocupou o cargo de presidente da Corte de Cassação francesa, o aumento no número de juízes da Corte de Cassação, de 50 para perto de 200, não levou à redução no número de recursos: "Ainsi, du mois d'avril 1791 au mois d'avril 1792, première année de fonctionnement du Tribunal de cassation, le nombre de pourvois était de 557, il était en 2001, point culminant du phénomène, de 32.500. Accompagnant l’invasion contentieuse sans chercher à l'endiguer, la politique judiciaire s’est laissée aller à la suivre avec retard en augmentant, de temps à autre, les moyens de la Cour. Conçue et organisée à l'origine en trois chambres pour un nombre limité à moins de 50 conseillers, elle en comprend aujourd’hui près de 200 si on y inclut les conseillers référendaires, corps de juges plus jeunes, créé en 1967". (Vision prospective de la Cour de cassation. Disponível em: https://academiesciencesmoralesetpolitiques.fr/2006/11/13/vision-prospective-de-la-cour-de-cassation/. Acesso em: 18/12/2022).

 

Os ministros Isabel Gallotti e Bruno Dantas, em interessante artigo sobre o tema, defendem, com razão, que "a crise vem assumindo dimensão exponencial. O aumento do número de membros não resolveria, sequer mitigaria o problema, salvo se alcançasse o Tribunal várias centenas de membros, divididos em dezenas de Turmas, o que inviabilizaria seu papel constitucional de uniformização do direito federal ordinário, institucionalizando-o como mera terceira instância, em cadeia sucessiva de recursos, a qual somente posterga o término dos litígios, sem contribuir para a melhoria e racionalidade do sistema". (Relevância da questão federal: função constitucional do recurso especial. In: FUX, Luiz; FREIRE, Alexandre; DANTAS, Bruno (coords.) Repercussão geral da questão constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 147).

[3] O constituinte brasileiro imaginou que a crise gerada pelo excesso de Recurso Extraordinário seria solucionada pela criação do STJ. Já em 2012, Bruno Dantas apontava a crise do excesso de demandas que sobre o STJ recaia e que, como o tempo veio definitivamente a provar, não foi solucionada pela criação de um novo Tribunal: "A triste realidade, porém, é que a criação do STJ definitivamente não resolveu a crise do recurso extraordinário". Segundo afirma, houve um "equívoco do constituinte em imaginar que mera criação de tribunal seria suficiente para aplacar a crise. Como destacamos, em vez de um tribunal em crise (o STF), temos agora dois (também o STJ)!". (Repercussão geral. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 2012, p. 58/95).

[4] "Den praktisch wohl größten Anwendungsbereich hat die Erforderlichkeit revisionsgerichtlicher Entscheidung zur Sicherung der Einheitlichkeit der Rechtsprechung (§543 II 1 Nr. 2 Alt. 2 ZPO). Divergenz im engeren Sinne liegt dann vor, wenn die angefochtene Entscheidung einen tragenden abstrakten Rechtssatz aufstellt, der von einem tragenden abstrakten Rechtssatz in der Entscheidung eines höherrangigen oder gleichrangigen Gerichts oder eines Spruchkörpers desselben Gerichts objektiv abweicht. Bei Abweichungen in der Rechtsprechung unterschiedlicher Oberlandesgerichte stellt der BGH darauf ab, ob die Vergleichsentscheidung dem Berufungsgericht bei seiner objektiv divergierenden Entscheidung bereits bekannt war, was unter Umständen zu einer weder im Gesetzeswortlaut noch in den Gesetzesmaterialien vorgezeichneten Verengung führen kann und dem Gesetzeszweck der Wahrung der Konsistenz der Rechtsprechung unter Umständen zuwiderläuft. Darüber hinaus kann die Sicherung der Einheitlichkeit der Rechtsprechung die Zulassung der Revision nach h. M. [herrschende Meinung] auch in Fällen der Divergenz in weiteren Sinne erfordern, sofern vermieden werden soll, dass ‚schwer erträgliche Unterschiede in der Rechtsprechung entstehen oder fortbestehen‘, wobei die Bedeutung der angefochtenen Entscheidung für die Rechtsprechung im Ganzen maßgeblich ist". (BRUNS, Alexander. Zulassungvoraussetzungen bei der Revision zum BGH. In: LEAL, Márcio Flávio Mafra (coordenação científica). II Seminário Internacional Brasil Alemanha: Thompson Flores. Brasília: CJF, 2011, pp. 79-88, especialmente p. 83). Em nossa tradução livre: "O maior campo de aplicabilidade prática é provavelmente o requisito de que o acórdão em sede de Recurso Especial assegure a uniformidade da jurisprudência (§543 II 1 nº 2 Alt. 2 ZPO). Existe divergência no sentido mais restrito se o acórdão recorrido estabelecer uma norma abstrata que divirja objetivamente de um acórdão de um tribunal superior ou de mesmo nível hierárquico ou do colegiado do mesmo tribunal. No caso de haver divergência na jurisprudência de diferentes tribunais de justiça, o BGH considera se acórdão que é padrão de comparação já era conhecido pelo tribunal de justiça no momento de sua decisão objetivamente divergente, o que pode, em certas circunstâncias, levar a um estreitamento que não está previsto nem na redação da lei nem nos materiais legislativos e pode, em certas circunstâncias, ser contrário ao propósito da lei de preservar a consistência da jurisprudência. Além disso, de acordo com a doutrina dominante, a salvaguarda da uniformidade da jurisprudência também pode exigir a admissão do Revision [Recurso Especial] em casos de divergência em um sentido mais amplo, na medida em que se deve evitar que 'surjam ou persistam diferenças de jurisprudência difíceis de suportar', em que a significância do acórdão recorrido seja importante para a jurisprudência como um todo".

[5] É impossível que aqui não nos lembremos da malfadada Súmula 400 do Supremo Tribunal Federal.

[6] "A função jurisprudencial e normativa só pode ter um significado real se a Corte fizer um trabalho pedagógico por meio de suas decisões, o que demanda tempo para fazer motivações longas". (CADIET, Loïc. Perspectiva sobre a justiça do sistema civil francês. São Paulo: Ed. RT, 2017, cap. 5, p. 14).

[7] Confira-se, ainda, o que afirma Antonio do Passo Cabral acerca da função uniformizadora da Revision: "A literatura e a jurisprudência entendem estar presente a significação fundamental também quando a admissão do recurso colabore para o desenvolvimento do Direito ou para a uniformização da jurisprudência, no sentido de evitar decisões conflitantes que impeçam a previsibilidade da interpretação e aplicação das normas jurídicas pelo Judiciário, um aspecto considerado, na Alemanha, um relevante braço da segurança jurídica". (Requisito de relevância no sistema recursal alemão. In: FUX, Luiz; FREIRE, Alexandre; DANTAS, Bruno (coords.) Repercussão geral da questão constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 79).

[8] Se se reconhece que o tribunal superior contribui para com a construção do direto, deve-se também reconhecer que é necessário que tenha TEMPO… para reflexão e de amadurecimento do tema. Antes da entrada em vigor do CPC/15, Isabel Gallotti e Bruno Dantas defendiam que "urge, portanto, na mesma medida do necessário aumento da força de seus precedentes, propiciar ao Tribunal condições reais de tempo de reflexão, estudo, sob os mais diversos ângulos, das questões federais relevantes, a serem decididas em caráter, na prática, impositivo para as instâncias inferiores". (Relevância da questão federal: função constitucional do recurso especial. In: FUX, Luiz; FREIRE, Alexandre; DANTAS, Bruno (coords.) Repercussão geral da questão constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p.148).

Nessa mesma perspectiva é a posição de Daniel Mitidiero, citando a doutrina alemã: "finalidade é alcançada justamente com a possibilidade de seleção de casos, que permite ao Bundesgerichtshof – corte análoga ao STJ — a 'concentração das suas energias na sua responsabilidade fundamental de reconstrução, interpretação e unidade do direito alemão'". (Relevância no recurso especial. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, versão digital, parte II, item I).

[9] ANDREWS, Neil. O moderno processo civil: formas judiciais e alternativas de resolução de conflitos na Inglaterra. 2. ed. Orientação e revisão da Tradução: Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Ed. RT, 2012, item 8.16, p. 281.

[10] "18.28 Appeals to the High Court are only possible by special leave of the High Court or upon a certificate from the Full Court of the Family Court that an important question of law or of public interest is involved". (A practitioner's Guide to Family Law. 5. ed. Sydney: NSW young laywers, 2015, p. 247).

[11] "(…) Das Bundesverfassungsgericht kann jedoch über eine vor Erschöpfung des Rechtswegs eingelegte Verfassungsbeschwerde sofort entscheiden, wenn sie von allgemeiner Bedeutung ist oder wenn dem Beschwerdeführer ein schwerer und unabwendbarer Nachteil entstünde, falls er zunächst auf den Rechtsweg verwiesen würde". Em tradução livre: "Entretanto, o Tribunal Constitucional Federal pode decidir imediatamente sobre uma reclamação constitucional apresentada antes do esgotamento da via judicial comum se for de importância geral ou se o reclamante viesse a sofrer uma desvantagem grave e inevitável caso seguisse a via judicial comum".

[12] Do §566.4 do Ordenamento Processual Civil alemã extraem-se as hipóteses de cabimento do Sprungrevision: "Die Sprungrevision ist nur zuzulassen, wenn 1. die Rechtssache grundsätzliche Bedeutung hat oder 2. die Fortbildung des Rechts oder die Sicherung einer einheitlichen Rechtsprechung eine Entscheidung des Revisionsgerichts erfordert". Em nossa tradução: "O Sprungrevision só deve ser admitido se 1. o caso for de significância fundamental ou 2. exige-se uma decisão do tribunal de Revision (BGH) visando ao desenvolvimento da lei ou para preservar a uniformidade da jurisprudência".

[13] Segundo noticia Leandro Giannini em artigo ainda não publicado e a nós gentilmente cedido: "We can also include in this group of qualitative selection criteria based on jus litigatoris concerns, those models that focus on the magnitude of the error, a notion different from the severity of the damage mentioned in the previous paragraph. Examples of this approach are the regime of access to the Supreme Courts of the Nordic countries (Sweden, Denmark, Norway and Finland), in which, in addition to allowing appeals that have the capacity to serve as a precedent (an example of general interest parameter, as we will see later), access can be enabled when there are 'special reasons' to review the decision". (Access 'filters' and institutional performance of the Supreme Courts, p. 12).

[14] De acordo com Bruno Dantas, citando Yasuhei Taniguchi, "os erros de índole constitucional continuam a receber jurisdição recursal obrigatória da Corte Suprema". (Repercussão geral. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 2012, p. 139).

[15] Access 'filters' and institutional performance of the Supreme Courts, p. 20.

[16] "This mixed modality is also present in Germanic countries such as Switzerland and Austria, which also provide for a minimum value above which the final appeal is a right of the parties (in Switzerland, between 15,000 and 30,000 Swiss francs; in Austria, 30,000 euros), having to verify, below it, the presence of issues of law of significant importance (in Switzerland, fundamental issues of law or violation of constitutional rights; in Austria, issues of law of significant importance)". (Access 'filters' and institutional performance of the Supreme Courts, p. 18).

[17] De acordo com o artigo 280 do Código de Processo Civil e Comercial: "The Court, according to its sound discretion, and with the sole invocation of this rule, may reject the extraordinary appeal, for lack of sufficient federal grounds or when the raised issues are insubstantial or lacking in transcendence".

Autores

  • é professora livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC-SP, professora visitante na Universidade de Cambridge (ING) e na Universidade de Lisboa e diretora de Relações Internacionais do IBDP.

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