Opinião

Projeto na Assembleia de SP enfraquece poder fiscalizatório do Procon

Autores

22 de dezembro de 2022, 15h14

De autoria do deputado estadual Vinícius Camarinha (PSDB), tramita na Assembleia Legislativa de São Paulo o Projeto de Lei nº 596/2022, que altera a Lei Estadual nº 9.192/1995 para o fim de acrescer dispositivos que versam sobre os procedimentos administrativos de fiscalização, autuação, dosimetria e fixação de penalidade-base conduzidos pelo Procon.

Reprodução
Nos termos de sua justificativa, as alterações seriam necessárias — e indispensáveis — tendo em vista que, desde a entrada em vigor da referida norma, os hábitos consumeristas passaram por diversas mudanças e não estariam mais em consonância com o que estabelece a Lei Estadual nº 9.192/1995.

Em suma, propõe o deputado tucano: i) a digitalização dos processos administrativos; ii) a inclusão de uma nova modalidade de sanção administrativa, isto é, a advertência; iii) a mudança da dosimetria das penas; e, ainda, iv) a alteração da base de cálculo da sanção de multa.

Pois bem.

Há que se registrar, de início, que as propostas do PL nº 596/2022 não se concentram em — apenas — atualizar a legislação estadual. Pelo contrário, o texto legislativo sobrepõe-se, e muito, às normas do Código de Defesa do Consumidor.

Nesse aspecto, cumpre observar que, muito embora a competência para legislar sobre as relações de consumo seja concorrente à União, aos estados, ao Distrito Federal (artigo 24 da Constituição) e aos municípios (artigo 30 da Constituição), os estados não poderão dispor livremente sobre a matéria.

Em atenção ao princípio da hierarquia das normas, na hipótese da competência concorrente, insta assentar que a caberá à União a edição de normas gerais, enquanto aos estados e municípios somente a complementação de eventuais lacunas, a depender das peculiaridades regionais. Significa dizer que a norma estadual que se propõe a substituir — e não complementar — uma lei federal, extrapola a sua competência.

E esta é a situação que se verifica no PL nº 596/2022. São diversas as propostas que superam a norma geral editada pela União — Lei Federal nº 8.078/1990 (Código de Defesa do Consulente). Seja pela adição de uma nova modalidade de sanção, a advertência (artigo 23 Z, I), seja pela alteração da dosimetria e dos regramentos da pena de multa (artigo 23-A-I), entre tantas outras.

No que concerne à advertência, em que pese se tratar de uma modalidade de sanção administrativa, ela não está prevista no Código de Defesa do Consumidor. Estar-se-ia, diante, portanto, de uma lei estadual que extrapolaria a norma geral.

Sobre esta "nova" sanção, há que se pontuar uma importante questão. Seria ela adequada para a punição de atos lesivos aos consumidores? Se um fornecedor, ainda que na condição de infrator primário, vier a comercializar um produto contaminado, assim como recentemente ocorreu no caso dos petiscos para cachorros — que levaram à morte dezenas de animais —, bastaria a imposição de uma pena de advertência?

Segundo o projeto (artigo 23 Z, §1º), a advertência deverá ser a primeira sanção a ser aplicada ao infrator, não mais cabendo ao gestor público o seu poder discricionário quanto à melhor alternativa, de acordo com a gravidade da infração.

No que tange à sanção de multa, se a proposta assim prevalecer, a penalidade passará a ser graduada de acordo com a natureza e o grupo da infração. Deixará de observar, portanto, a vantagem auferida e a condição econômica do fornecedor, como estabelece expressamente o artigo 57 do Código de Defesa do Consumidor.

 Há que se salientar que essas mudanças em nada se aproximam dos interesses dos consumidores. Além de prever a exclusão da vantagem auferida e a condição econômica do fornecedor do cálculo da sanção pecuniária, pretende o projeto alterar a base de cálculo da multa, substituindo a receita bruta do fornecedor (artigo 3º da Portaria Normativa nº 81/2021) para o valor do produto ou do serviço (artigo 23 A-I do PL nº 569/2022).

Com isso, é muito provável que as multas deixem de ser uma importante ferramenta para assegurar a consecução dos direitos do consumidor e passem a figurar como meras formalidades de um procedimento sancionatório, pois certamente alcançarão valores irrisórios, na maior parte dos casos.

E em tais hipóteses, na prática, as multas equiparar-se-ão aos efeitos da pena de advertência, distanciando-se do caráter pedagógico — e punitivo — da constrição monetária.

É oportuno trazer à baila, mais uma vez, o exemplo dos petiscos contaminados que mataram dezenas de cachorros pelo país. Neste caso, seria correto impor a multa ao fornecedor tendo como base de cálculo o valor do produto (cerca de R$ 5 por embalagem)? A sanção pecuniária atingiria as suas finalidades pedagógica e punitiva?

Importa registrar que as sanções pecuniárias de baixo valor representam verdadeiro obstáculo aos gestores públicos que, por muitas vezes, veem-se obrigados a avaliar o custo-benefício de sua aplicação, haja vista o alto custo de mobilização da máquina administrativa para a instauração de um procedimento sancionador. Além disso, quase sempre se observa a ineficácia da sanção, pois a pequena monta não teria o condão de refletir qualquer repreensão ao fornecedor.

Com isso, o poder de fiscalização do Procon-SP, que hoje é indispensável para a garantia dos direitos do consumidor, estará exposto ao risco de ser duramente enfraquecido.

E como se não bastasse a alteração da base de cálculo das multas, a proposta ainda prevê a hipótese do concurso formal (artigo 23 A-I, §4º), o que certamente beneficiará os fornecedores que vierem a cometer infrações de mesma natureza.

No mais, cumpre assentar que, em sentido diverso do que estabelece o ordenamento jurídico atual quanto à transparência e ao acesso aos dados, o projeto de lei, em seu artigo 23-A, impõe sigilo ao processo administrativo de fiscalização, autuação e sancionatório até a decisão final, não permitindo a sua consulta a qualquer interessado. Evidente violação constitucional (artigos 5º, LX, e 37), cujos dispositivos garantem ao cidadão a publicidade dos atos administrativos.

Há que se atentar, ainda, ao fato de que a digitalização dos processos, assim como proposto, não poderá representar qualquer barreira ao acesso dos serviços do Procon pelos cidadãos, sob pena de restar violado o que estabelece o artigo 4º do CDC.

Não se pode olvidar que uma generosa parcela da população não tem acesso à internet, seja para registrar eventual reclamação ou, até mesmo, para cadastrar um simples endereço de e-mail. Além disso, a transição dos processos para a forma eletrônica exige do poder público a adequação de suas estruturas internas, seja para a aquisição de novos equipamentos e/ou para a capacitação dos agentes. 

Nessa ordem de ideias, não há como afastar os diversos indícios de inconstitucionalidade do Projeto de Lei nº 596/2022. Porém, a sua aprovação é iminente, pois a proposta tramita em regime de urgência e, na data de 21/12/2022, conta com o parecer favorável das Comissões de Constituição, Justiça e Redação, de Administração Pública e Relações do Trabalho e de Finanças, Orçamento e Planejamento (Parecer nº 876/2022).

Se aprovada, e nesses termos, a proposta legislativa não só representará um triste retrocesso para as relações de consumo, mas também o enfraquecimento do Procon, um órgão cuja atuação é fundamental para a garantia dos direitos dos consumidores.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!