Retrospectiva 2022 

A eficácia temporal da nova Lei de Improbidade Administrativa

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20 de dezembro de 2022, 9h21

A Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92) foi sancionada para regulamentar o disposto no artigo 37, § 4º, da Constituição Federal, com o intuito de punir o enriquecimento ilícito e os atos lesivos ao erário ou aos princípios da Administração Pública praticados por agentes públicos no exercício do mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional, com penas como suspensão dos direitos políticos, perda da função pública, indisponibilidade de bens e ressarcimento do dano causado. 

Spacca
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O advento da Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, adequadamente chamada de "nova lei de improbidade administrativa", já que apenas dois dispositivos da lei antiga permaneceram sem alteração, constitui um novo marco regulatório da improbidade administrativa.

A lei nova procurou atualizar a quase balzaquiana lei anterior considerando posições dominantes na doutrina e jurisprudência mais atuais, além de trazer várias alterações importantes, tais como a exigência do dolo específico do agente, nova configuração quanto aos prazos de suspensão de direitos políticos e prazo prescricional de oito anos contados a partir da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência.

Sobre a prescrição, a lei prevê no artigo 23, § 4º, sua interrupção pelo ajuizamento da ação de improbidade administrativa, pela publicação da sentença condenatória, pela publicação de decisão ou acórdão de Tribunal de Justiça, de Tribunal Regional Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, que confirma sentença condenatória ou que reforma sentença de improcedência. 

O § 5º do mesmo artigo inovou ao estabelecer o instituto da prescrição intercorrente, pois, interrompida a prescrição por um dos motivos acima previstos, o prazo recomeça a fluir do dia da interrupção, pela metade do prazo previsto no caput, ou seja, quatro anos. A introdução desse instituto na nova lei decorre da necessidade de se concluir o processo de improbidade administrativa em prazo razoável, em atendimento ao princípio da razoável duração do processo, previsto no artigo 5º, LXXVIII, da Carta Magna. 

No julgamento do ARE 843.989/PR, o plenário do STF reconheceu a repercussão geral (Tema 1.199) para definir sobre a retroatividade ou não da Lei nº 14.230/2021 em relação, principalmente, à necessidade da presença do elemento subjetivo dolo para configuração da prática de ato de improbidade, bem como à aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente. 

O processo paradigma que deu origem ao referido Tema 1.199 trata, na origem, de ação de ressarcimento ao erário manejada pelo INSS em face de advogada que supostamente teria descumprido contrato de prestação de serviços advocatícios para o citado instituto, porquanto teria, segundo alegação da exordial, causado prejuízo ao erário por conduta negligente em várias atuações processuais.

Na contestação, a requerida alegou de logo questão prejudicial de mérito de prescrição, em que afirmou o transcurso de mais de cinco anos entre os fatos que constituem o objeto da ação e o ingresso em juízo. 

O juízo de início entendeu que, embora seja prescritível a ação de improbidade administrativa, as ações de ressarcimento propostas contra os agentes públicos são imprescritíveis, com arrimo no artigo 37, § 5º, parte final, da Constituição. Citou jurisprudência do STJ contemporânea à época do julgamento (ano de 2009). Ao final, julgou improcedentes os pedidos formulados pelo órgão previdenciário autor. 

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região deu provimento à apelação do INSS para decretar a nulidade da sentença por cerceamento de defesa, por considerar ausente a adequada instrução probatória, devolvendo os autos à origem. 

Em sede de embargos de declaração, o tribunal regional fez eco ao entendimento manifestado na sentença e julgou com base na jurisprudência que havia firmado o entendimento no sentido de que as ações de ressarcimento, fundadas em atos de improbidade administrativa, são imprescritíveis. 

Igualmente, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do recurso especial manejado, concluiu que fora correta a decisão do tribunal regional, posto ter se tornado pacífico naquela corte superior o entendimento no sentido de que a pretensão de ressarcimento ao erário é imprescritível, em razão do disposto no artigo 37, § 5º, da Carta Magna. 

No recurso extraordinário, a requerida alegou a violação ao art. 37, § 5º, da CF/88 por considerar que referido dispositivo constitucional não prevê a imprescritibilidade. Ao contrário, defende ser prescritível a ação de ressarcimento ao erário nos termos do Decreto nº 20.910/1932, o qual regula a prescrição quinquenal. 

No mês de fevereiro do corrente ano, o STF reconheceu a repercussão geral da matéria trazida pelo recurso extraordinário com agravo, por considerar especial relevância na "definição de eventual (IR)RETROATIVIDADE das disposições da Lei 14.230/2021, em especial, em relação: (I) a necessidade da presença do elemento subjetivo dos para a configuração do ato de improbidade administrativa, inclusive no artigo 10 da LIA; e (II) a aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente". 

Em março foi decretada pelo relator, ministro Alexandre de Moraes, a suspensão do processamento dos recursos especiais em que pleiteada a aplicação retroativa da lei em comento para evitar julgamentos conflitantes com o novel entendimento do STF. Já em abril, foi determinada a suspensão do prazo prescricional nos processos com repercussão geral reconhecida no presente tema. 

Em 26 de agosto do corrente ano, o STF fixou a seguinte tese ao Tema 1.199:

"1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se – nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA – a presença do elemento subjetivo – DOLO;
2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes;
3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente;
O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei.”A responsabilidade subjetiva dolosa e específica sempre será exigida para a caracterização das infrações previstas nos arts. 9º, 10 e 11. Assim, se não houver a presença do elemento subjetivo do dolo, o processo deve ser extinto.

Prevaleceu também a tese do afastamento da retroação benigna defendida pelo relator por entender que a norma constitucional que prevê a retroatividade da lei penal mais benéfica se assenta nas particularidades deste ramo do direito (princípio do favor libertatis), fundamento que, segundo a maioria dos ministros da Suprema Corte, não existe em caráter administrativo sancionador, tratando-se de norma excepcional que deve ser interpretada de maneira restritiva, em homenagem à regra geral da irretroatividade da lei e a preservação do ato jurídico perfeito.

Não se deve olvidar que em matéria cível, o direito brasileiro, em regra, prestigia o princípio tempus regit actum, pois, conforme o art. 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), "a Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada" e o Código de Processo Civil determina no art. 14 que "a norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada". Além do mais, a Constituição limita a chamada retroatividade in mellius à esfera da lei penal, silenciando quanto ao demais ramos do direito (artigo 5º, XL, CF/88).

No meu sentir, a decisão da Corte Suprema está correta. É errônea a ideia de aplicar princípios estritos do direito penal automaticamente a questões do direito administrativo sancionador, pois são ramos independentes e autônomos, com carga axiológica diversa.

A retroatividade da lei para beneficiar o réu é exceção que não pode se tornar regra no ordenamento brasileiro, sob pena de se violar a segurança jurídica e gerar instabilidade das relações, o que poderia acarretar uma indesejável prescrição em massa dos processos instaurados por improbidade administrativa.

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