Opinião

Monografia jurídica: entre o inventário literário e a pesquisa científica

Autor

  • Fernando Procópio Palazzo

    é advogado mestrando em criminologia pela Erasmus Universiteit Rotterdam e Universiteit Ghent e especialista em Direito Penal e criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal.

16 de dezembro de 2022, 7h06

Introdução
A Portaria nº 1.886, de 30 de dezembro de 1994, do Ministério da Educação, instituiu em seu artigo 9º a necessidade de apresentação e defesa oral de uma monografia final para a conclusão do curso de Direito. Conforme apontado em parecer elaborado pela Comissão de Especialistas de Ensino de Direito (2000), um dos objetivos almejados diz respeito a uma "sólida formação geral e humanística, com capacidade de análise e articulação de conceitos e argumentos, de interpretação e valoração dos fenômenos jurídico-sociais, aliada a uma postura reflexiva e visão crítica que fomente a capacidade de trabalho em equipe, favoreça a aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica, além da qualificação para a vida, o trabalho e o desenvolvimento da cidadania".

Não obstante, passadas mais de duas décadas da implementação da referida exigência, levantam-se questionamentos sobre o quão próximo ou quão distante a mesma tem estado do escopo desejado. Não são poucos os especialistas que criticam a constante banalização do ensino jurídico e a necessidade de se repensá-lo (Campelo Filho, 2017; Streck, 2017; Rosa, 2013).

Ao tratar particularmente da confecção de artigos jurídicos, Vladimir Passos de Freitas (2021), questiona qual o alcance que as miríades de trabalhos apresentados atingem. Entre diversos problemas considerados, destaca-se a necessidade de que os artigos convirjam para soluções que aprimorem a sociedade e não se percam em um vórtice teórico e descritivo que apenas reproduz ideias já existentes e pouco aponta de concreto para novas soluções. Surge, então, a indagação de como se chegou a essa condição. Seria, pois, ela um desdobramento de um déficit na apresentação da monografia jurídica na graduação? Sob esse prisma, revela-se importante entender o quanto os rumos adotados para a confecção desse importante trabalho poderão impactar a formação do profissional de Direito.

Em abono dessas premissas, emerge a relevante questão de compreender qual o real papel da monografia na formação do bacharel em Direito. Como a sua elaboração tem sido conduzida nas universidades do país? Como esse processo tem sido entendido pelos milhares de alunos que dela participam? Seria a monografia jurídica um compilado puramente descritivo de elementos históricos e centenas de citações com bem-aventuranças jurídicas ao final? Em outras palavras, seria a monografia apenas um trabalho de sobreposição e justaposição de ideias ou um trabalho direcionado a uma produção científica inicial preparatória para futuras carreiras jurídicas? Em linhas iniciais, revela-se oportuno, desde já, mencionar comparativamente interessante vedação constante no manual de renomada faculdade de Direito europeia [1], na qual se proíbe a apresentação de "puro inventário de literatura" e prima-se pela busca de elementos inovadores demonstráveis como resultado do trabalho executado. Tal diretriz constitui um importante referencial para balizar a análise em tela.

Com efeito, essas formulações constituem as premissas inaugurais para o presente trabalho, o qual se dará em pequena escala no intuito de provocar a discussão sobre o tema, revisitar falhas e aprimorar o processo. Para tanto, a metodologia adotada consistiu em uma pesquisa híbrida integrando métodos qualitativos e quantitativos, a saber: revisão da literatura existente, formulação de questionário com 25 perguntas e com a participação de 106 bacharéis em Direito de 32 faculdades de Direito do Brasil, cinco entrevistas semiestruturadas em profundidade com bacharéis em Direito, uma entrevista com um especialista na área, professor dr. Eduardo de Oliveira Leite, e a análise estrutural de 40 monografias jurídicas apresentadas no ano de 2021.

Em busca da metodologia científica
À luz das diretrizes curriculares para o curso de Direito acima mencionadas, a monografia jurídica tem por um dos seus objetivos avaliar a capacidade de articulação, aptidão de argumentos, de interpretação e valoração dos fenômenos jurídico-sociais. No entanto, diversos fatores concorrem para que esse desiderato não seja atingido, sendo a deficiência no domínio da metodologia científica um dos principais. Segundo Eduardo de Oliveira Leite, autor da obra Monografia Jurídica, os alunos possuem carências porque não estão acostumados a ler, de modo que passam a adotar uma postura passiva com relação a qualquer conteúdo cognoscível. Essa lacuna teria origem no ensino médio, em que os alunos chegam à faculdade com diversas carências em ler, pesquisar e interpretar, o que impactará na produção científica na graduação. Aponta o renomado professor que enquanto alunos de outros países, sobretudo na Europa e Estados Unidos, ingressam nas universidades já munidos de tal experiência, no Brasil o cenário é diverso e reverbera na dificuldade que os mesmos demonstram para elaborar trabalho de cunho científico. Nesse ponto, ressalta, ainda, a importância da disciplina de metodologia científica e como essa é um "recurso fundamental para atingir estágios mais elevados de pesquisa e criatividade científica".

Corroborando esse pensamento, entre os participantes do questionário apenas 56,7% afirmaram terem tido aulas de metodologia científica de forma aprofundada, envolvendo distinções de métodos de pesquisa, formulação de pergunta, base teórica, construção de hipótese, análise de dados, formação da conclusão etc. Por outro vértice, 74,5% afirmaram que gostariam de ter tido aulas mais aprofundadas sobre metodologia científica para escreverem as suas monografias jurídicas, 52,8% responderam que nenhuma orientação metodológica foi prestada por parte de seus orientadores, 47,2% relataram não terem feito qualquer menção à metodologia científica em suas monografias, e 20,8% desconheciam por completo os termos pesquisa qualitativa ou quantitativa. Ademais, entre as 40 monografias analisadas nenhuma destacou um capítulo para mencionar a metodologia adotada, 25 a mencionaram em um parágrafo em suas introduções e 15 nada referiram a respeito. Entre as 25 monografias que fizeram menção à metodologia, apenas 6 apontaram estarem adotando um estudo qualitativo e 3 uma análise híbrida.

Nesse viés, na literatura, Welber Barral (2003) confirma esse deficitário cenário e assevera que "metodologia é sobretudo estudar técnicas que facilitem a pesquisa e melhorem seus resultados; estudar Metodologia não é ficar decorando as infames regras da ABNT". Outrossim, na percepção de Eduardo de Oliveira Leite, os alunos não estão habilitados a apresentar trabalhos de cunho científico e por isso repetem fórmulas prontas que não condizem com nada e os professores orientadores não podem no exíguo lapso temporal de um ano colmatar lacunas que os alunos trazem de suas formações escolares.

Com efeito, todos esses fatores parecem ser um ponto central na compreensão do porquê de tantas deficiências na elaboração das monografias jurídicas.

Inventário literário e as perucas da erudição
Quanto ao conteúdo apresentado, o problema parece surgir já na definição do tema a ser abordado. Como toda cadeia de causalidade, a equivocada escolha do tema impactará no resultado produzido. Nesse contexto, apenas 27,4% dos entrevistados afirmaram ter redigido suas monografias jurídicas com base em um problema de pesquisa. Nessa esteira, para a maioria dos entrevistados (73,6%) a escolha do tema pautou-se em uma ideia abstrata, a qual, despida de base sólida, erigiu-se em elementos claudicantes que não proporcionaram resultados desejáveis ao final. A esse propósito, Eduardo de Oliveira Leite reitera ponderações feitas em seu livro sobre o tema e afirma que o escopo da monografia não é ser uma mera compilação de obras alheias, sem qualquer parâmetro metodológico e, se assim o é, é porque o orientador endossou tal postura contrária a um verdadeiro trabalho científico. Sob esse aspecto, interessante observar que 61,3% dos entrevistados afirmaram terem sido orientados a citar grande número de autores e expressivos 79,2% responderam sentir em algum momento que estavam mais referindo outros autores do que apresentando as suas próprias ideias. Nesse aspecto, oportuno referir comparativamente a compreensão da acima citada universidade europeia, no sentido de que o trabalho não pode ser reduzido a um singelo inventário literário. Em reforço, nesse ponto parece residir grande equívoco no que tange aos limites e a importância de apresentar uma revisão literária da questão investigada e a mera repetição irrefletida de autores no intuito de promover uma aparente cientificidade. Em outras palavras, o aluno, imbuído pela equivocada percepção de que terá legitimidade de acordo com o maior número de citações e autores em seu texto, estará nada mais fazendo do que um erudito trabalho de colagem. Em tom analógico, Arthur Schopenhauer (2013) compara a pessoa que se vale de inúmeras referências com os homens que usam perucas:

A peruca é o símbolo mais apropriado para o erudito puro. Trata-se de homens que adornam a cabeça com uma rica massa de cabelo alheio porque carecem de cabelos próprios. Da mesma maneira, a erudição consiste num adorno com uma grande quantidade de pensamentos alheios, que evidentemente, em comparação com os fios provenientes do fundo e do solo mais próprios, não assentam de modo tão natural, nem se aplicam a todos os casos ou se adaptam de modo tão apropriado a todos os objetivos, nem se enraízam com firmeza, tampouco são substituídos de imediato, depois de utilizados, por outros pensamentos provenientes da mesma fonte. (A arte de escrever)

Sistematicamente, portanto, a equivocada confusão entre a base teórica para subsidiar a construção do trabalho almejado (theoretical framework) e a simples reprodução de inúmeras citações como sendo o próprio objeto da monografia comprometem não só a sua qualidade, mas também o próprio objetivo da mesma. A esse propósito, Welber Barral (2003) pondera que muitos professores orientadores desconhecem postulados científicos e por isso acabam repetindo modelos equivocados. Acrescenta o autor que esse distorcido cenário resulta ainda na fórmula em que "uma citação é plágio, várias citações é uma monografia".

Oportuno considerar, por fim, que 67% dos participantes foram aconselhados a escrever um capítulo contendo o histórico do tema e destes 15,1% o acharam irrelevante e 34,9% responderam que o mesmo apenas contribuiu para encorpar a monografia sem qualquer proveito intelectual.

Nesse cenário, a percepção de uma compilação exacerbada de citações e referências sem qualquer propósito, transformando a monografia em um simples inventário literário emerge como um problema constante e carente de premente correção a fim de se lograr uma atividade intelectual produtiva.

A tecnologia a disposição da pesquisa científica
Por outro ângulo, vale destacar que a construção do referencial teórico para a confecção da monografia demanda tempo e aptidão para ler e articular ideias, como apontou Eduardo de Oliveira Leite. Tal atividade costumeiramente se apresenta sob a forma de fichamentos, os quais também são tradicionalmente demandados nos cursos de pós-graduação. No entanto, extrai-se das entrevistas em profundidade realizadas não ser de amplo conhecimento a utilização de softwares que facilitem a coleta de dados e auxiliem na revisão ampla e dinâmica da literatura. Em termos de pesquisa qualitativa, destacam-se o ATLAS.ti e NVivo, ao passo em que em relação à pesquisa quantitativa o Excel e o SPSS são instrumentos altamente eficazes para compilar informações. A utilização de tais softwares pode causar estranheza aos estudantes de Direito, os quais crescem equivocadamente habituados à ideia ultrapassada de que estão atrelados a uma leitura primitiva de textos sem qualquer dinamização e otimização de recursos. O aprimoramento de técnicas de pesquisa é uma consequência imediata do avanço da metodologia de pesquisa. A consequência natural dessa promissora simbiose serão resultados científicos atrativos que proporcionarão proveitos não apenas pessoais e profissionais, mas também sociais com trabalhos que agreguem respostas e soluções tão necessárias nos mais diversos âmbitos.

Impacto da monografia jurídica
Entre os participantes do questionário, 51,9% afirmaram acreditar que suas monografias jurídicas trouxeram alguma contribuição social para o tema investigado e 66% responderam negativamente sobre terem desenvolvido e aprimorado o tema em suas carreiras profissionais. Em outra direção, apenas 25% dos participantes responderam estar totalmente satisfeitos com o trabalho apresentado. Esses dados assumem relevo, na medida em que se observa um desperdício acadêmico e intelectual no esforço empreendido para a apresentação da monografia. Pouco mais da metade dos participantes acreditou ter elaborado algo socialmente relevante e dois terços não deram continuidade ao tema pelo qual se debruçaram por meses em suas vindouras carreiras. Em comentário pertinente, Eduardo de Oliveira Leite argumenta que, na forma como a monografia jurídica é hoje exigida, trata-se apenas de uma tarefa obrigatória para a conclusão do curso e os alunos não crescem intelectualmente. Por conseguinte, esse processo científico deficitário repercutirá no trabalho intelectual dos futuros profissionais. Nas palavras do referido especialista, "aluno que não raciocina, que não pensa e que não analisa, vai ser um mero reprodutor de fórmulas pré-estabelecidas, sem qualquer criticidade, comprometendo a pretensão de seus clientes e, o que é pior, revelando uma imagem que não corresponde ao verdadeiro Direito".

Conclusão
O presente ensaio procurou fazer uma análise em pequena escala dos fatores que influenciam a elaboração da monografia jurídica, necessária para a conclusão do curso de Direito. Partindo da literatura base sobre o tema, os dados coletados foram interpretados e resultaram na percepção de que a monografia jurídica na forma em que é exigida na atualidade longe está de alcançar os objetivos originalmente preconizados. Falhas na formação do aluno, no ensino da metodologia científica e no escopo do trabalho a ser desenvolvido consubstanciaram-se fatores primordiais a serem corrigidos para a escorreita apresentação do trabalho científico de final de curso. Na atual conformação, além de lacunas metodológicas, observa-se, igualmente, uma desatualização tecnológica e informacional, sendo o produto final uma erudição que nada produz. A apresentação de um inventário literário estéril e sem qualquer propósito se revelou um elemento constante e um ponto que urge imediata correção. O objetivo da monografia não é apenas compilar, usar conceitos abertos, guarda-chuva, sem direcionamento, para ao final apenas desejar bem-aventuranças sociais e jurídicas sem nada apontar de concreto. Sendo uma atividade pobre intelectualmente, perde-se esforço acadêmico e a oportunidade de despertar no aluno vocações profissionais e engajamento em problemas concretos que surgirão em sua jornada forense. Saliente-se, por necessário, não se estar exigindo de uma monografia o mesmo que se espera de um metrando ou doutorando, mas sim a consciência da técnica adequada para a construção de uma base correta não apenas para atividade acadêmica, mas para a própria articulação de textos e construções jurídicas que serão demandadas de qualquer operador do Direito.

Conclusivamente, recomenda-se o aprimoramento e foco na metodologia científica nos cursos de Direito, revisão e adequada orientação sobre o excessivo uso de citações sem qualquer efeito prático, atualizações em pesquisas por intermédio de softwares correlatos e direcionamento dos estudantes a desenvolver pesquisas com resultados concretos e que possam contribuir efetivamente nas suas formações profissionais. É preciso romper com ciclos viciosos e infrutíferos, retomar as rédeas da orientação científica e convergir para uma atividade que concorra não apenas para a simples conclusão do curso pelo aluno, mas também para o seu crescimento intelectual e profissional com repercussões para toda a sociedade. Mais do que um inventário literário as monografias precisam ser registros de ideias promissoras de juristas em estágio inicial das suas carreiras, com frutos a serem colhidos e reconhecidos no futuro.

 


BARRAL, Welber. (2003). Metodologia da pesquisa jurídica. Fundação Boiteux.

FILHO, Francisco Soares Campelo. (2017). O advogado e a sua formação: é preciso (re)pensar o ensino jurídico no Brasil. https://www.conjur.com.br/2017-ago-19/campelo-filho-preciso-repensar-ensino-juridico-brasil

FREITAS, Vladimir Passos de. (2021). O que e quanto se aproveita dos artigos de Direito? https://www.conjur.com.br/2021-set-12/segunda-leitura-quanto-aproveita-artigos-direito

ROSA, Alexandre Morais da. (2013). McDonaldização do Processo Penal e analfabetos funcionais. https://www.conjur.com.br/2013-out-19/diario-classe-mcdonaldizacao-processo-penal-analfabetos-funcionais

SCHOPENHAUER, A. (2013). A arte de escrever. L&PM.

STRECK, Lenio Luiz. (2017). Resumocracia, concursocracia e a “pedagogia da prosperidade”. https://www.conjur.com.br/2013-out-19/diario-classe-mcdonaldizacao-processo-penal-analfabetos-funcionais

 


[1] Erasmus Universiteit Rotterdam. https://llm-guide.com/schools/europe/netherlands/erasmus-school-of-law

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