Retrospectiva 2022

O diferencial de alíquota do ICMS e a data de início de sua cobrança

Autores

  • Felipe Jim Omori

    é sócio do KLA Advogados em São Paulo. Pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet e mestre em Direito Econômico Financeiro e Tributário pela Faculdade de Direito da USP.

  • Matheus Guimarães Barreto

    é advogado associado do KLA Advogados em São Paulo graduado pela Faculdade Nacional de Direito/UFRJ e pós-graduando em Direito Tributário pelo Ibet.

15 de dezembro de 2022, 11h16

Os primeiros dias de 2022 foram de tensão e questionamentos pelos contribuintes e fiscos estaduais acerca da cobrança do Difal. É que a Lei Complementar 190/2022, que instituiu e regulamentou o diferencial em âmbito nacional, foi publicada apenas em 5/1/2022, o que trouxe uma série de questionamentos acerca da possibilidade de cobrança do tributo pelos estados, em razão do chamado princípio da anterioridade.

Spacca
Spacca

O Difal é a sigla utilizada para se referir ao diferencial de alíquota do ICMS, aplicável em algumas situações em que uma determinada operação ocorre entre dois estados (operações interestaduais).

O tributo passou a ter previsão constitucional por meio da EC nº 87/2015, que alterou os incisos VII e VIII, do § 2º, do artigo 155 da Constituição Federal para estabelecer que, nas operações interestaduais destinadas a consumidor final não contribuintes do ICMS, o imposto seria repartido entre os estados de origem e destino da mercadoria comercializada, criando uma nova exigência tributária no ordenamento — o Diferencial de Alíquotas (Difal).

Então, se uma pessoa que não é contribuinte habitual do ICMS adquire um produto vindo de outro estado, o imposto incidente sobre essa venda será repartido entre esses dois estados envolvidos na operação. Há uma previsão das chamadas alíquotas interestaduais, que são utilizadas para apurar o ICMS devido ao estado de origem (de onde a mercadoria saiu). Essas alíquotas variam de acordo com a região do estado e origem da mercadoria.

A diferença entre essa alíquota interestadual e a alíquota base do ICMS utilizada pelo estado de destino (onde está a pessoa que comprou a mercadoria) é, justamente, o Difal, que será de titularidade desse estado de destino.

A lógica do tributo é garantir melhor distribuição da receita entre os estados, tendo em vista que, antes da sua instituição, as regiões Sul e Sudeste concentravam a origem de mercadorias nas vendas interestaduais para não contribuintes (principalmente no e-commerce).

Desde a sua instituição, porém, os contribuintes questionavam a necessidade de uma lei complementar para regulamentar as regras gerais de incidência do Difal. Os estados, por sua vez, editaram um convênio no âmbito do Confaz e aprovaram leis ordinárias estaduais para viabilizar a cobrança.

O julgamento do STF
O tema foi parar no Plenário do Supremo, que, em 24/2/2021, concluiu o julgamento do RE 1.287.019/DF, definindo a seguinte tese: "
A cobrança do diferencial de alíquota alusivo ao ICMS, conforme introduzido pela Emenda Constitucional nº 87/2015, pressupõe edição de lei complementar veiculando normas gerais".

Assim, os ministros entenderam que o Difal efetivamente impôs nova relação jurídico-tributária entre os estados e os contribuintes, de modo que seria necessária a publicação de lei complementar instituindo e regulamentando o novo imposto.

Contudo, os ministros modularam os efeitos da decisão, que passaria a valer apenas em 2022.

Na prática, portanto, cabia ao Congresso editar a Lei Complementar instituindo e regulamentando o tributo até setembro de 2021 para que o Difal já pudesse ser cobrado em janeiro de 2022.

Esse marco era importante, pois a Constituição prevê que um novo tributo ou sua majoração (com poucas exceções) apenas podem ser cobrados no exercício seguinte ao da publicação da lei respectiva, e depois de decorridos 90 dias desse evento. São as chamadas anterioridade anual e nonagesimal, respectivamente.

O objetivo dessas regras é garantir aos contribuintes que haja tempo hábil para entendimento e aplicação da nova norma, em observância à não-surpresa e à segurança jurídica.

Contudo, como se sabe, a sanção presidencial e consequente publicação da Lei Complementar nº 190 ocorreu apenas em 2022.

O que se viu nos primeiros meses do ano foi um caótico cenário de diversas Secretarias de Fazenda estaduais publicando comunicados dando conta de quando passariam a cobrar o Difal e outros tantos contribuintes impetrando Mandados de Segurança com o objetivo de apenas pagar o tributo em 2023.

Parte dos estados, como Maranhão, Pernambuco, Piauí e Rio de Janeiro publicaram notas informando o seu posicionamento de que o Difal continuaria sendo cobrado normalmente desde janeiro de 2022, sob o fundamento de que a LC 190/2022 teria dado fundamento às leis estaduais que já previam a cobrança do tributo naqueles locais.

Por seu turno, a maioria dos demais estados publicou atos internos estabelecendo que a cobrança do tributo se daria em períodos que variava de 30 de março a 5 de abril, em uma suposta observância ao Princípio da Anterioridade Nonagesimal, que segundo os entes públicos seria suficiente para garantir a constitucionalidade da cobrança.

A "lógica" por trás dessa argumentação é que a Lei Complementar nº 190/2022 traz, em seu artigo 3º, menção expressa tão somente à referida anterioridade nonagesimal.

Além da evidente falta de harmonia entre os estados e claro cenário de insegurança, nenhum dos estados decidiu voluntariamente observar o Princípio da Anterioridade anual.

A discussão e o Poder Judiciário
Diante do caos instaurado no país, era esperado que milhares de contribuintes seguissem em uma "corrida ao Judiciário", buscando maior segurança.

O que se viu, porém, é que os juízos e tribunais pátrios ainda não foram capazes de entregar essa segurança, trazendo ainda mais cenários casuísticos e incertos, tendo havido cassação de liminares em bloco, impedimento de garantias constitucionais pelos contribuintes e, novamente, questionamentos ao STF.

Os argumentos geralmente trazidos pelas Fazendas Estaduais nos processos podem ser resumidos em:

(1) a LC nº 190/2022 meramente regularia o Difal, sem instituir ou majorar tributo, o qual já teria sido criado pelas legislações estaduais, ou pela própria Emenda Constitucional nº 87/15.

Essa argumentação ignora justamente o que foi julgado no Tema 1.093 de Repercussão Geral, pois a própria premissa para a conclusão do STF é de que o Difal equivale a novo tributo e, portanto, necessita de Lei Complementar para que sua cobrança seja válida.

Assim, em que pese as legislações estaduais preverem a cobrança do Difal antes da entrada em vigor da LC 190/2022, tais leis foram declaradas inconstitucionais pelo Supremo, justamente por terem sido editadas antes da existência de uma lei complementar sobre o tema.

(2) o artigo 3º da LC 190/2022 seria inconstitucional, pois teria extravasado a competência legislativa de normas gerais e interferido no pacto federativo.

Esse artigo prevê que a Lei Complementar nº 190/2022 entrará em vigor na data de sua publicação, observado, quanto à sua produção de efeitos, o disposto na já destacada alínea "c" do inciso III do caput do artigo 150 da Constituição.

Ocorre que a alínea "c" do artigo 150, III da Constituição apesar de tratar especificamente da anterioridade nonagesimal, também prevê expressamente que deverá ser observada a alínea "a" do mesmo artigo constitucional. Esta, por sua vez, fala da anterioridade anual.

Ademais, uma vez que a premissa adotada pelo STF no leading case foi o de que, justamente, a competência tributária estadual está limitada e deve observar a edição de Lei Complementar nacional que institua e defina normas gerais sobre o imposto criado pela EC 87/2015, não haveria que se falar em invasão de competência pela lei complementar.

Com a proliferação dos mandados de segurança, naturalmente os juízes de Direito passaram a analisar e, muitas vezes, deferir pedidos de medidas liminares com o fito de suspender a exigibilidade do crédito tributário referente ao Difal pelo ano de 2022.

Em resposta a isso, algumas Fazendas Públicas apresentaram pedidos de suspensão de liminares aos presidentes dos Tribunais de Justiça. O instituto, relativamente pouco aplicado no dia a dia forense, tem previsão no artigo 15 da Lei nº 12.016/2009 e na Lei nº 8.437/1992, e prevê que "quando, a requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada ou do Ministério Público e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, o presidente do tribunal ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso suspender, em decisão fundamentada, a execução da liminar e da sentença".

De um aspecto processual e sob a ótica dos contribuintes, a decisão é perversa, pois afasta a aplicação de uma decisão judicial obtida em seu processo individual e o força a continuar submetido à tributação do Difal. Assim, na prática, enquanto as Fazendas Públicas continuarem apresentando recursos, os contribuintes não podem fazer valer decisões eventualmente favoráveis.

Ao longo do ano, identificamos decisões de Suspensão de Liminares proferidas pelos presidentes dos Tribunais de Justiça da Bahia; Ceará; Distrito Federal; Espírito Santo; Goiás; Maranhão; Pernambuco; Piauí; Paraná; Santa Catarina; São Paulo; Sergipe; e Tocantins.

As razões para deferimento das medidas muitas vezes não encontram qualquer base jurídica, mas limitam-se a uma análise econômica da situação. Veja-se destaque da decisão do presidente do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, nos autos do processo de Suspensão de Liminares nº 5010518-52.2022.8.24.0000:

"Nesse passo, conforme as informações prestadas pela Secretaria de Estado da Fazenda do Estado de Santa Catarina, por meio do Ofício SEF/GABS nº 168/2022 e instruídas com a petição inicial (Evento 1 – INIC1), a suspensão imediata da cobrança do Diferencial de Alíquota do ICMS (DIFAL) poderá comprometer valor considerável do orçamento do Estado de Santa Catarina, com repercussão financeira no ano de 2022 na ordem de até R$ 420.000.000,00 (quatrocentos e vinte milhões de reais).
Assim, neste momento processual, vislumbra-se a existência de risco de grave lesão à economia, a partir da potencial proliferação de demandas semelhantes e concessão da suspensão da exigibilidade do Diferencial de Alíquota do ICMS (DIFAL) no exercício financeiro de 2022 a uma pluralidade de contribuintes, o que importará em significativo impacto nas contas públicas do Estado de Santa Catarina com a supressão de considerável receita e comprometimento do seu equilíbrio financeiro."

Com o indeferimento ou suspensão de liminares, muitos contribuintes optaram então por exercer o seu direito de realizar o depósito judicial dos valores de Difal, nos termos do artigo 151, II do Código Tributário Nacional (CTN).

Como é notório, o depósito judicial é a forma mais segura para os contribuintes de suspender a exigibilidade do crédito tributário, visto que lhes assegura o direito de reaver a quantia depositada integralmente após o final do processo, se vencedores da demanda. Por outro lado, não há imposição de acréscimos moratórios caso o Fisco vença a disputa.

No entanto, mesmo o direito de depositar judicialmente os valores passou a ser negado por alguns magistrados, gerando ainda mais contencioso em torno da matéria.

O fundamento para indeferimento do pedido de depósito judicial na hipótese muitas vezes é o de que o Difal não estaria constituído, ou seja, de que se trataria de valor controverso, não se podendo atestar a integralidade ou suficiência do depósito.

Esse raciocínio, porém, parece não se atentar para a sistemática do próprio Difal, que incide a cada operação e é um tributo sujeito a lançamento por homologação, o que significa que ele é constituído pelo próprio contribuinte.

O que se quer depositar, portanto, é o tributo que já incidiu e foi constituído pelo contribuinte. Sendo assim, a única diferença na hipótese é que em vez de se gerar uma Guia para Recolhimento do Difal, será gerada e paga uma guia de depósito judicial em mesmo valor e no mesmo prazo. Não há, essencialmente, nenhuma diferença neste depósito para qualquer outro depósito feito em processos tributários.

Além disso, ao juízo cabe apenas declarar a suspensão da exigibilidade do crédito tributário efetivamente depositado, não sendo função do magistrado realizar a conferência do montante depositado com aquele efetivamente apurado pelo contribuinte.

Por outro lado, acaso verifique que há qualquer saldo em aberto, é direito e dever do Fisco efetuar a cobrança, inclusive com os encargos legais cabíveis.

Neste sentido, é pacífica a jurisprudência do E. STJ [1] acerca da faculdade conferida ao contribuinte, de realizar depósito judicial independentemente de autorização prévia, com vistas a suspender a exigibilidade dos débitos discutidos, nos termos do citado artigo 151 do CTN.

A par de todas essas discussões decorrentes dos milhares de processos ajuizados pelos contribuintes, a discussão de mérito, como era de se esperar, voltou ao Supremo por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7.066/DF, distribuída em conjunto com as ADIs 7.070 e 7.078 à relatoria do ministro Alexandre de Moraes. Na ação, a Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq) argumenta exatamente que, como a lei foi promulgada em 2022, a cobrança só poderia vigorar em 2023.

Após indeferimento, em maio, de medida liminar pelo ministro relator — que foi o único membro da Corte a votar contra os contribuintes no julgamento do RE 1.287.019/DF — o julgamento de mérito se iniciou apenas em 04/11/2022, havendo, até a conclusão deste artigo:

– Cinco votos pela cobrança do Difal apenas a partir de 1/1/2023 (observância conjunta dos princípios da anterioridade nonagesimal e de exercício);

– Um voto pela cobrança do Difal a partir de 4/2022 (observância única do princípio da anterioridade nonagesimal);

– Um voto pela cobrança do Difal desde 1/1/2022 (inexistência da instituição de novo tributo pela LC 190/2022).

O julgamento do tema, após alguns adiamentos e pedidos de vista, está previsto para ser concluído em 16/12/2022, faltando apenas um voto para que o Supremo forme maioria pela inconstitucionalidade da cobrança do Difal pelo ano de 2022.

O ano que começou com tensão e questionamentos pelos contribuintes e Fiscos estaduais acerca da cobrança do Difal se aproxima do fim com ainda mais tensão. Esperamos que o STF efetivamente resolva o tema ainda em 2022 e dê mais segurança e tranquilidade aos contribuintes para começar o próximo ano.


[1] REsp 1.703.966/SP, rel. ministro HERMAN BENJAMIN, 2ª TURMA, julgado em 7/12/2017, DJe 19/12/2017; REsp 1.691.774/SP, rel. ministro HERMAN BENJAMIN, 2ª Turma, julgado em 10/10/2017, DJe 16/10/2017; AgRg no REsp 976.148/SP, rel. ministro LUIZ FUX, 1ª Turma, julgado em 24/8/2010, DJe 9/9/2010.

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