Opinião

Responsividade no direito administrativo sancionador de agências reguladoras

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13 de dezembro de 2022, 15h14

A teoria responsiva da regulação foi criada por Ian Ayres e John Braithwaite como uma posição intermediária no debate entre regulação e desregulação [1]. Os defensores da regulação defendiam a necessidade de uma regulação do tipo comando e controle, por meio da qual o regulador impusesse comportamentos a serem seguidos pelo regulado sob pena de aplicação de sanção. Já os defensores da desregulação argumentavam pela ineficácia desse tipo de atuação, defendendo uma atuação consensual do regulador, por meio da qual o regulador privilegiasse o diálogo com o regulado.

Os autores apontaram a insuficiência dessas visões extremadas, demonstrando empiricamente a incapacidade delas solucionaram, sozinhas, as dificuldades encontradas pelos reguladores. A proposta tornou-se um dos principais focos dos estudos sobre regulação, existindo uma dificuldade em definir o significado da teoria responsiva, tendo em vista sua constante evolução [2].

Em sua origem, a teoria responsiva tinha como foco a processualização da atividade regulatória. Os autores sugeriram a estruturação piramidal do modelo regulatório, no qual a base contenha medidas de caráter persuasivo. A atividade de fiscalização e responsabilização deve ser organizada em níveis, revelados nos traços de uma pirâmide, a nortear o enforcement. À medida que o regulador escale a pirâmide regulatória, as medidas tornam-se mais severas.

Na teoria, defende-se que a maioria dos atos regulatórios devem estar concentrados na base da pirâmide, na medida em que comportamentos cooperativos devem ser estimulados e prevalecer, progredindo-se para medidas mais severas de acordo com a necessidade de sua utilização. Por fim, no ápice, a big gun  incapacitação definitiva dos agentes para a prática da atividade  seria reservada para os poucos casos extremos [3]. Desse modo, a teoria responsiva propõe um método para a estruturação do sistema regulatório e um processo para a atuação do regulador [4].

A teoria responsiva da regulação foi alvo de elogios e críticas. Por um lado, a teoria evidenciou a necessidade de sistemas regulatórios dinâmicos e que se adaptem ao contexto no qual o regulador está inserido. Porém, seus críticos apontam as inúmeras dificuldades com a aplicabilidade prática do modelo, tendo em vista a necessidade de identificar e qualificar o comportamento individualizados dos agentes e as infrações, bem como responder adequadamente a ambos [5]. Os elogios e as críticas provocaram o avanço da teoria, tanto por meio de novos estudos de seus autores, quanto por meio de seus críticos.

O desenvolvimento da teoria foi acompanhado pela incorporação de valores e finalidades especificas. Desde seu trabalho inicial, os autores já apontavam a importância de valores republicanos e democráticos [6]. No entanto, tais valores não eram o foco do modelo, de modo que a teoria poderia ser abraçada por pessoas com diferentes posições políticas.

Em escritos posteriores, Braithwaite passou a defender mais fortemente alguns desses valores, tidos por ele como basilares à teoria. O autor relacionou a regulação responsiva com a ideia de justiça restaurativa, propondo uma transformação da ordem social [7]. Nesse sentido, propõe que uma regulação responsiva é vantajosa não só por ser menos custosa e mais efetiva na proteção de valores republicanos, mas, também, por fazer com que o regulado veja a regulação como mais legitima [8]. A legitimidade também é perseguida pelos resultados alcançados pela regulação, em termos de conformidade.

A teoria responsiva pressupõe que, usualmente, medidas menos gravosas são as mais adequadas, mas sem negar a importância de sanções mais severas. Um sistema regulatório responsivo tem que se adequar ao contexto no qual está inserido. No entanto, para que o sistema seja eficaz, é necessário existirem instrumentos sancionatórios capazes de modificar o comportamento dos regulados que resistem à regulação. Além disso, o contexto pode impor a adoção de medidas severas, tendo em vista a existência de grave risco a terceiros derivados de desconformidades. Desse modo, a pirâmide regulatória deve ser vista como um tipo ideal e não como um modelo estático a ser sempre seguido pelos reguladores [9].

Adoção da teoria responsiva pelas agências reguladoras federais
A Administração Pública brasileira parece considerar a regulação responsiva como um dos princípios de um sistema regulatório adequado, seguindo uma tendência internacional. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) prevê a regulação responsiva como um princípio da aplicação das normas regulatórias [10].

As agências reguladoras e os próprios órgãos de controle passaram a defender a implementação da regulação responsiva, fazendo, muitas vezes, referência à OCDE. Nesse sentido, servidores da Controladoria-Geral da União avaliaram o processo sancionador das agências reguladoras federais tomando, como base, as recomendações da OCDE e os princípios da regulação responsiva [11]. Além disso, as agências reguladoras federais viram a responsividade como a base de possíveis melhorias de seus sistemas regulatórios.

Algumas agências reguladoras federais definiram expressamente como objetivo a adoção de uma regulação responsiva. A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) possui um plano específico para implementação de um sistema regulatório responsivo, denominado Projeto Atuação Responsiva (PAR). Esse projeto está estruturado em três eixos, os quais estão relacionados a diferentes objetivos a serem alcançados [12]. A ANTT já produziu algumas normas relacionadas à implementação dos objetivos do PAR, tendo especial relevância o regulamento das concessões rodoviárias. Esse regulamento normatiza uma série de instrumentos relacionados à regulação responsiva no âmbito das concessões rodoviárias federais [13], conforme informado pela própria ANTT [14].

A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) também editou norma prevendo a implementação de uma regulação responsiva. A Resolução Interna nº 8, de 26 de fevereiro de 2021, aprovou as diretrizes para elaboração da agenda regulatória da agência. Uma das diretrizes norteadoras do processo de regulamentação é a adoção de mecanismos de regulação responsiva [15]. Nesse sentido, a agência tem buscado criar instrumentos viabilizadoras de uma atuação responsiva. Comprovação disso é o Regulamento de Fiscalização Regulatória da Anatel, o qual adota a atuação de forma responsiva como premissa da fiscalização regulatória [16]

A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) seguiu a tendência de buscar privilegiar a responsividade. O Plano Estratégico para 2020-2026 institui, como um dos objetivos e indicadores estratégicos, garantir a regulação efetiva para a aviação civil de forma a permitir a inovação e a competitividade. Para a agência, isso é possível por meio da criação de um modelo regulatório responsivo [17]. A Anac também desenvolve o Projeto Regulação Responsiva, o qual visa construir um sistema cooperativo e um ambiente favorável às relações entre regulador e regulado. Nesse sentido, a agência aponta alguns exemplos de regulação responsiva já adotados [18].

A adoção da regulação responsiva pelas agências reguladoras federais precisa enfrentar alguns limites. Dentre eles, vale destacar os limites impostos pelo próprio sistema jurídico brasileiro, com suas marcas de civil law. A teoria desenvolvida por Ayres e Braithwaite pressupõe a existência de uma flexibilidade na atuação do regulador. Essa flexibilidade depende das balizas conferidas pelo sistema normativo no qual a agência reguladora está inserida.

O Brasil está inserido na tradição romano-germânica, na qual o Direito é significativamente menos flexível do que nos países de common law. Nesse sentido, a adoção da responsividade pelas agências reguladoras federais está limitada pela própria estrutura jurídica à qual elas pertencem.

É importante lembrar que a regulação responsiva é uma teoria sobre regulação, e não sobre direito público. Os seus criadores visavam estabelecer um método regulatório capaz de atingir determinadas finalidades. Nesse sentido, tiveram a capacidade de estabelecer parâmetros para a atuação do regulador, tendo em vista as diferentes políticas públicas a serem atingidas [19]. Por outro lado, o direito público foi forjado como limite ao absolutismo estatal, definindo sua estrutura e delimitando seus poderes-deveres [20]. Essa distinção evidencia uma das dificuldades para implementar a regulação responsiva no Brasil, onde o princípio da legalidade possui indiscutível relevância.

A legalidade é um princípio estruturante do sistema jurídico brasileiro [21], o que dificulta a adoção da responsividade pelas agências reguladoras federais. Os autores quase ignoram a legalidade ao desenvolver a teoria da regulação responsiva.

Apesar de afirmarem a importância do rule of law nos sistemas republicamos [22], o tema é tratado em apenas uma página e contém apenas quatro citações ao longo de toda a obra. Alguns autores já enfrentaram o tema [23], mas ainda são poucos os trabalhos que se empenharam em analisar a relação entre responsividade e rule of law. Por isso, é importante analisar as dificuldades enfrentadas para a implementação da teoria em um sistema jurídico ancorado no princípio da legalidade.

Como mostra o marco regulatório da ANPD, em construção, a regulação responsiva deve avançar no Direito Administrativo Sancionador Regulatório, no Brasil, como desdobramento da eficiência que deve ser alcançada na regulação. Todavia, o grande desafio é promovê-la, com o cuidado redobrado de instituir modelos administrativos sancionadores, observando também  a legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade, e todos os demais princípios constitucionais explícitos ou implícitos do Direito Administrativo, bem como os princípios materiais inerentes aos direitos e garantias fundamentais que também conformam a atividade administrativa sancionadora, com a supremacia constitucional que lhe é reconhecida.


[1] AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John, Responsive regulation: Transcending the deregulation debate, New York: Oxford University Press, 1992, p. 3.

[2] BRAITHWAITE, John, The Essence of Responsive Regulation Fasken Lecture, U.B.C. Law Review, v. 44, n. 3, p. 475–520, 2011, p. 477–479.

[3] Ibid., p. 489.

[4] VORONOFF, Alice, Direito Administrativo Sancionador. Justificação, interpretação e aplicação, Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 117.

[5] Ibid.

[6] "Therefore we subscribe to a version of republicanism that has been admirably summarized by Sunstein (1988) as involving four basic commitments: 1) deliberation in government that shapes as well as balances interests (as opposed to simply doing deals between prepolitical interests); 2) political equality (which we read as requiring the organizational empowerment of disorganized constituencies); 3) universality, or debate to reconcile competing views, as a regulative ideal; and 4) citizenship, community participation in public life", In: AYRES; BRAITHWAITE, Responsive regulation, p. 18.

[7] "Restorative justice [is] more than a variation on an old theme about how to do disputing, more than a reform at the margins of the criminal justice system. If we marry it to responsive regulation, there is potential for it to transform the place of regulation and law in sustaining the economy, managing relations between nations, reinventing education and building a richer democracy", In: BRAITHWAITE, John, Restorative justice & responsive regulation, New York: Press, 2002, p. 266.

[8] BRAITHWAITE, The Essence of Responsive Regulation Fasken Lecture, p. 485–486.

[9] "But the theory simply creates a presumption that less interventionist remedies at the base of pyramids are normally the best place to start. Normatively justified responsiveness to context does at times require us to go straight to the peak of a pyramid". In: Ibid., p. 492–493.

[10] "Enforcement should be based on 'responsive regulation' principles; that is, inspection enforcement actions should be modulated depending on the profile and behaviour of specific businesses", In: OECD Regulatory Enforcement and Inspections Toolkit | en | OECD, disponível em: <https://www.oecd.org/gov/regulatory-policy/oecd-regulatory-enforcement-and-inspections-toolkit-9789264303959-en.htm>. acesso em: 1 jul. 2022.

[11] "Nesse sentido, há necessidade de se aperfeiçoar os mecanismos relacionados ao pro­cesso sancionador, por exemplo, por meio de princí­pios como a regulação responsiva, segundo a qual as ações de fiscalização devem ser moduladas, depen­dendo no perfil e comportamento de negócios espe­cíficos", In: GONÇALVES, Rodrigo Carvalho et al, Avaliação da Capacidade Institucional para Regulação no Brasil: resultados e perspectivas, Revista da CGU, v. 13, nº 24, p. 195–206, 2021, p. 201.

[12] Portaria DG/ANTT/MI nº 636/2020, artigo 2º, §1º, a) Eixo I: Promover uma maior efetividade na regulação por meio de desenhos de regulação responsiva que permeie nas atividades de fiscalização e regulamentação. b) Eixo II: Padronizar os modelos utilizados na tramitação dos processos, bem como tornar mais célere todas as etapas de tramitação do processo sancionador, independente do grau de complexidade das atividades realizadas em cada fase. c) Eixo III: Aperfeiçoar o modelo de processamento dos autos de infração para melhorar sua eficiência de forma a conferir maior celeridade ao processamento e reduzir o tempo de tramitação dos processos sancionadores, principalmente na etapa de julgamento.

[13]  RCR-1, artigo 10.  A ANTT aprovará periodicamente a classificação das concessionárias, a partir de critérios     estabelecidos em regulamentação da ANTT. Parágrafo único.  Às concessionárias será dispensado tratamento distinto de acordo com sua colocação na classificação, conforme previsto na regulamentação da ANTT.

[14] LUSTOSA, Pedro Aurélio Azevedo, O Regulamento de Concessões Rodoviárias da ANTT como "porta de entrada" para a Regulação Responsiva no setor, 2021, p. 254.

[15] Artigo 2º, XI.

[16] Resolução nº 746/2021, artigo 5º, IV.

[17] "Significa, portanto, construir um modelo de regulação responsiva e inteligente, sem barreiras e intervenções desnecessárias ao desenvolvimento e à competitividade".

[19] "In contrast to public law approaches, regulatory scholarship is substantially oriented around instrumental concerns with achieving specified goals. Policies with differential impact on different sections of society, at the level of rule making (e.g., applying rules to a narrow subsection of society only) or enforcement (e.g., enforcing rules responsively and thus with differing intensity dependent on the characteristics and motivations of the regulation), might each draw criticism from those within the public law approach committed to the rule of law", In: BROWN, Ciara; SCOTT, Colin, Regulation, Public Law, and Better Regulation, European Public Law, v. 17, nº 3, 2011, p. 476.

[20] BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha, Princípios Gerais de Direito Administrativo, 3. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 28.

[21] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, O princípio da legalidade e algumas de suas consequências para o direito administrativo sancionador, Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, v. I, p. 61–75, 2003, p. 69.

[22] AYRES; BRAITHWAITE, Responsive regulation, p. 53.

[23] Cf. FREIGANG, Jan, Is Responsive Regulation Compatible with the Rule of Law?, European Public Law, v. 8, nº 4, p. 463–472, 2002.

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