Opinião

Instituto da desconsideração da personalidade jurídica em risco

Autores

  • Priscila Ziada Camargo

    é sócia do escritório Ernesto Borges Advogados responsável pela área de Recuperação de Crédito do escritório presidente da Comissão de Direito Bancário da OAB/MS conselheira na Comissão de Agronegócios da TMA|Brasil e membro da Subcomissão de Recuperação de Crédito da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban).

  • Fernanda Regina Negro de Oliveira

    é coordenadora jurídica no Escritório Ernesto Borges Advogados especialista em Direito Processual Civil e em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e membro da Comissão de Sociedade de Advogados da OAB/MS.

  • Diego Jose Leal de Proença

    é advogado no Escritório Ernesto Borges Advogados mestrando em Direito Humanos e Fundamentais pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) especialista em Direito Processual Civil (Faculdade Damásio) e juiz leigo no Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT).

13 de dezembro de 2022, 19h15

Acaso sancionado, o Projeto de Lei nº 3401/2008 poderá enfraquecer o instituto da desconsideração da personalidade jurídica e aniquilar os avanços até então obtidos legal e jurisprudencialmente.

Consubstanciada na necessidade de responsabilização das pessoas naturais por atos reprováveis praticados pela pessoa jurídica, a desconsideração da personalidade jurídica se revela como instituto necessário para equilíbrio das relações empresariais no Brasil.

O ato de ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, se apresenta como a maneira de coibir fraudes e abusos de direito que tenham sido praticados em prejuízo de terceiros e através da utilização desvirtuada da empresa [1].

A doutrina de afastamento da autonomia societária ganhou força no Brasil em meados do século 20, destacando os estudos realizados por Rubens Requião de que a "personalidade jurídica passa a ser considerada doutrinariamente um direito relativo, permitindo ao juiz penetrar o véu da personalidade para coibir os abusos ou condenar a fraude, através de seu uso" [2].

Com isso, a desconsideração da personalidade jurídica passou a ser considerada pelo judiciário brasileiro como uma forma de estender a responsabilidade societária à(s) pessoa(s) física(s) que, se escudando através da entidade empresarial, cometerem atos reprováveis.

Essa doutrina ganhou força no sistema jurídico brasileiro, passando de mera construção jurisprudencial e doutrinária, para ocupar seu espaço em leis e códigos, autorizando assim que, para que a entrega a atividade jurisdicional pudesse ser mais efetiva e alinhada com a devida proteção a determinado bem jurídico tutelado, pudessem os magistrados desconsiderar a personalidade jurídica.

A exemplo, destaca-se algumas das normas jurídicas brasileiras que preveem a possibilidade de demover a personalidade jurídica para responsabilização dos seus sócios: o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor de 1990 [3], o artigo 50 do Código Civil de 2002 [4], o artigo 34 da Lei de Defesa da Concorrência [5] e o Artigo 14 da Lei Anticorrupção [6].

No mesmo sentido, a jurisprudência brasileira, a partir dos requisitos dispostos pela legislação, possui entendimento sedimentado de que havendo a presença dos critérios autorizadores para desconsideração da personalidade jurídica, a sua decretação é medida de rigor [7], inexistindo, portanto, dúvidas acerca da importância dessa doutrina.

Em inequívoco contrassenso, o Projeto de Lei nº 3401/2008 foi aprovado e encaminhado para sanção presidencial, contudo, acaso não seja vetado integralmente importará na desvirtuação do instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica, com evidente enfraquecimento da possibilidade de responsabilização em juízo contra atos societários abusivos.

O citado Projeto de Lei foi apresentado em 2008 [8], e se baseava na necessidade de regulamentação de um procedimento judicial para a desconsideração da personalidade jurídica.

Ocorre que o PL foi apresentado em momento anterior à aprovação do Código de Processo Civil de 2015 que reservou capítulo próprio para a matéria, tratando nos artigos 133 [9] sobre a regulamentação necessária e escorreita para a instauração e processamento da desconsideração de personalidade jurídica na forma incidental, de modo que totalmente descabida a regulamentação de questão já legislada.

Porém, o Projeto de Lei aprovado foi além de somente regulamentar algo já regulamentado, trazendo em seu bojo artigos que contradizem a legislação já existente no Brasil, e apresentando circunstâncias que criam verdadeiros entraves para a responsabilização dos sócios ou da pessoa jurídica sobre atos cometidos de maneira abusiva.

O texto aprovado pelo Congresso e que aguarda sanção presidencial, prevê em seu Artigo 1º que a desconsideração da personalidade jurídica se dará para "estender obrigação da pessoa jurídica a seu membro, instituidor, sócio ou administrador", bem como em seu artigo 5º que a decretação somente se dará "nos casos expressamente previstos em lei, sendo vedada a sua aplicação por analogia ou interpretação extensiva".

A combinação desses artigos restringe, de maneira teratológica, a possibilidade de, por exemplo, que seja decretada a desconsideração da personalidade jurídica inversa, que é a medida que responsabiliza a pessoa jurídica por abusos cometidos por seu sócio, que é algo já previsto no artigo 133, §2º do Código de Processo Civil. Assim, além de ir de encontro com a construção doutrinária e jurisprudencial sedimentada sobre a matéria, o projeto contradiz o que a legislação processual civil já prevê.

Outro ponto que causa estranheza é a inovação apresentada acerca da obrigatoriedade de se ouvir o Ministério Público antes da decretação da desconsideração da personalidade jurídica. A atual legislação já possibilita a intervenção do Ministério Público quando entender necessário, contudo, com o projeto de lei a participação será exigida até mesmo em casos em que não houver qualquer interesse social na causa, o que é totalmente desnecessário e poderá prejudicar o andamento dos incidentes, causando ainda mais atrasos na sua tramitação e, consequentemente, na satisfação do crédito.

De fato, sua participação facilitaria a responsabilização criminal daqueles que infringirem a lei, principal linha de sustentação do tema, entretanto, necessário sopesar o binômio benefício x efetividade, visto que o mesmo fim pode ser alcançado através do envio de ofício pelo magistrado condutor ao Ministério Público para prosseguir com a investigação e, se o caso, a consequente responsabilização criminal.

O artigo 5º, §1º deste projeto de lei prevê, de forma totalmente temerária e descaracterizando de maneira evidente a desconsideração da personalidade jurídica, que esta não poderá ser decretada sem que o magistrado faculte "à pessoa jurídica a oportunidade de satisfazer a obrigação, em dinheiro, ou indicar os meios pelos quais a execução possa ser assegurada".

A questão aqui é que um dos requisitos para decretação da desconsideração da personalidade jurídica é a existência de abuso da personalidade jurídica, seja por desvio de finalidade ou confusão patrimonial, ou seja, existência de má-fé pelo sócio, nos termos do que prevê o Código Civil.

Então, imaginar o cenário onde mesmo que o magistrado constate a ocorrência de má-fé, mas que possa permitir que antes da decretação da desconsideração da personalidade jurídica o réu tenha uma "segunda chance", é enfraquecer total e completamente o instituto na forma como construído em nosso ordenamento.

Ignorar a má-fé anteriormente cometida, seja nos autos de origem, seja nas ações de conhecimento ou em fase anterior a instauração do processo, o prestigiando com a conveniência de trazer para a desconsideração da personalidade jurídica situações que provavelmente já foram oportunizadas ou realizadas em outras oportunidades, é praticamente convalidar atos abusivos que deveriam, em regra, ser repelidos.

A desconsideração da personalidade jurídica na forma como apresentada pelo Código de Processo Civil é medida incidental, sendo que não existe razão jurídica suficiente para que sejam repetidos atos que já foram ou que deveriam ter sido tomados nos processos de origem, sob pena de descaracterizar o incidente e fulminar a sua efetividade na busca pela responsabilidade dos réus.

Também muito preocupante, é o teor do artigo 6º que, em contradição com o que já prevê o artigo 50 do Código Civil, apresenta que os efeitos da desconsideração não poderão atingir os bens do sócio que não tenha diretamente praticado o ato abusivo.

Neste particular, colocando em perspectiva, a concretização de abuso da personalidade jurídica praticada por um sócio em nome de sua empresa que venha a beneficiá-la diretamente e também a todo o seu quadro societário, acaso seja sancionado o referido projeto, não ensejará na responsabilização de todos os beneficiados pelo ato fraudulento.

Destaca-se ainda que o Projeto prevê, caso seja sancionado, a sua aplicação irrestrita e imediata a todos os processos que estejam tramitando em território nacional, podendo gerar insegurança jurídica e violação da isonomia entre os litigantes.

Deste modo, eventual aprovação do Projeto de Lei fará com que a necessidade de boa-fé entre as relações empresariais seja colocada em xeque. Inúmeros serão os casos de impunidade que poderão ser orquestrados a partir dos artigos acima mencionados, visto que as alterações pretendidas com a Projeto em questão somente fomentará um cenário que dificultará a responsabilização de réus que agem de má-fé através de pessoas jurídicas.

A sanção presidencial ao Projeto de Lei nº 3401/2008 além de permitir que haja uma completa mudança brusca e prejudicial no rumo da evolução da construção doutrinária, jurisprudencial e legislativa acerca da desconsideração da personalidade jurídica, apresentará entraves para o afastamento da autonomia societária utilizada como impunidade, o que por sua vez permitirá que atos societários abusivos sejam cada vez mais comuns, afetando, assim, diretamente a sociedade e o ordenamento jurídico brasileiro.


[1] COELHO, Fábio Ulhôa. Manual de Direito Comercial. 23ª Ed. Saraiva, São Paulo. Saraiva, 2011, p. 130.

[2] REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica (disregard doctrine). Revista dos Tribunais, v. 58, nº 410, p. 12–24, dez., 1969. Revista dos Tribunais Online: Thomson Reuters. Revista dos Tribunais | vol. 803/2002 | p. 751 – 764 | Set / 2002 Doutrinas Essenciais de Direito Civil | vol. 3 | p. 1239 – 1261 | Out / 2010 Doutrinas Essenciais Obrigações e Contratos | vol. 2 | p. 733 – 752 | Jun / 2011 DTR20121657

[3] Artigo 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. §1° (Vetado). §2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código. §3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código. §4° As sociedades coligadas só responderão por culpa. § 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

[4] Artigo 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

[5] Artigo 34. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. Parágrafo único.

[6] Artigo 14. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa.

[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AgInt no Agravo Em Recurso Especial Nº 1.811.324/ DF, relator ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 09/08/2022.

[8] BRASIL. Congresso Nacional. Projeto de Lei N.º 3401/2008. Disciplina o procedimento de declaração judicial de desconsideração da personalidade jurídica e dá outras providências. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=562997 Acesso em 01/12/2022.

[9] CAPÍTULO IV DO INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA Artigo 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo. §1º O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei. §2º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica. Artigo 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial. §1º A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao distribuidor para as anotações devidas. §2º Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica. §3º A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese do §2º. §4º O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica. Artigo 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 dias. Artigo 136. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória. Parágrafo único. Se a decisão for proferida pelo relator, cabe agravo interno. Artigo 137. Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente.

Autores

  • é sócia do escritório Ernesto Borges Advogados responsável pela área de Recuperação de Crédito do escritório, presidente da Comissão de Direito Bancário da OAB/MS, conselheira na Comissão de Agronegócios da TMA|Brasil e membro da Subcomissão de Recuperação de Crédito da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban).

  • é coordenadora jurídica no Escritório Ernesto Borges Advogados, especialista em Direito Processual Civil e em Direito Empresarial pela FGV.

  • é advogado no Escritório Ernesto Borges Advogados, mestrando em Direito Humanos e Fundamentais pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), especialista em Direito Processual Civil (Faculdade Damásio) e juiz leigo no Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT).

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