Opinião

Segurança nos registros de titularidade e transferência de ações em livros digitais

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12 de dezembro de 2022, 15h31

Um ponto da legislação societária que não costuma suscitar maiores digressões diz respeito aos requisitos para a formalização do registro da titularidade de ações e das correlatas atualizações. Trata-se de matéria procedimental que visa regular, por normas objetivas, sistemática que garanta certeza e eficiência na composição e alteração do quadro acionário.

Essa abordagem se explica em grande medida pelo bem jurídico que se pretende regular, pois não se pode admitir incerteza sobre a titularidade acionária. Ao passo que alguns aspectos da companhia demandam abordagem mais adequada à flexibilidade exigida pelo dinamismo das operações da companhia — como a teoria da aparência na representação da sociedade, a lavratura de atas em forma de sumário, as novas formas de assembleias remotas e assinatura eletrônica de suas atas , eventual insegurança sobre o quadro acionário daria azo a questionamentos contínuos da validade de todos os aspectos da pessoa jurídica em função da suposta falta de legitimidade das deliberações assembleares, da formação da administração  e portanto de suas decisões  e da destinação dos dividendos.

Este cenário foi alterado pela regulamentação sobre livros digitais, representada pela Instrução Normativa nº 82 do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (Drei), de 19/2/2021, que, havendo entrado em vigor em 19/6/2021, tem fomentado considerações que demandam atenção para que a regularidade dos registros não seja comprometida na migração entre os diferentes sistemas, afetando a segurança dos lançamentos e ensejando questionamentos futuros, com prejuízos aos acionistas e à companhia.

Antes de adentrar nas especificidades do novo regramento, vale compartilhar as premissas do cenário legal aplicável. A titularidade de ações emitidas por dada sociedade anônima é evidenciada pelos assentamentos do livro de registro de ações nominativas, e sua transferência pelo livro de transferência de ações nominativas, ambos de adoção obrigatória pela companhia. É o que dispõe o artigo 31 da Lei 6.404/76  Lei das Sociedades por Ações (LSA) , segundo o qual referida propriedade presume-se pela inscrição do nome do acionista no livro de Registro de Ações Nominativas  ou pelo extrato fornecido pela instituição custodiante, na qualidade de proprietária fiduciária das ações. Já a transferência das ações nominativas se dá mediante termo lavrado no livro de Transferência de Ações Nominativas, datado e assinado pelo cedente e pelo cessionário, ou por seus legítimos representantes, de acordo com o parágrafo primeiro do mencionado artigo 31.

É relativa a presunção garantida pela LSA a respeito dos lançamentos no livro de registro de ações (juris tantum). Quando ela dispõe que a propriedade acionária se presume pela inscrição do nome do acionista no livro de registro de ações, significa que tal presunção somente pode ser afastada por decisão judicial em contrário (EIZIRIK, Nelson: A Lei das S/A Comentada, 2º vol., fl. 222).

Nesta conjugação de disposições para afastar eventual insegurança, a LSA imputa à companhia a responsabilidade por fiscalizar os assentamentos no livro de registro de ações, cabendo a esta, segundo o artigo 103, "verificar a regularidade das transferências e da constituição de direitos ou ônus sobre os valores mobiliários de sua emissão". Igualmente os artigos 39 e 40 impõem à companhia o dever de verificar a regularidade dos ônus e direitos averbados.

Daí advém a redação do artigo 104, pelo qual a companhia é responsável pelos prejuízos que causar aos interessados por vícios ou irregularidades verificados nos mencionados livros. A invalidade de lançamento nos livros depende de ação própria contra a companhia a buscar a anulação do lançamento irregular, bem como indenização por perdas acarretadas e eventual responsabilização penal. Carvalhosa aponta a responsabilidade objetiva da companhia, e subjetiva dos administradores (e/ou empregados responsáveis, ou instituição financeira) em face da companhia (Comentários à Lei das Sociedades Anônimas, 2º vol., fls. 280-282).

Neste contexto, por irradiar efeitos perante terceiros, é outorgada ao livro de registro de ações natureza de registro público (LAMY FILHO, Alfredo: Direito das Companhias, 1º vol., fl. 763), tendo qualquer pessoa interessada a prerrogativa de solicitar certidão de seus lançamentos, nos termos do parágrafo primeiro do artigo 100 da LSA. Nesta linha, a competência para resolver as dúvidas suscitadas a respeito das averbações e transferências de ações nos livros de registro ou transferência deve ser do juiz incumbido de solucionar dúvidas levantadas pelos oficiais dos registros públicos, segundo o parágrafo primeiro do artigo 103; se a questão se referir à substância do direito, aí a competência será da vara cível.

Vê-se que o sistema legal, acompanhado da ação de exibição integral de livros prevista no artigo 105, confere coerência e precisão ao assunto, que inclusive já fora atualizado, pelo parágrafo 3º de seu artigo 100, a respeito da substituição dos livros por modelos mecanizados ou eletrônicos por força da Lei 14.195/21. Vale ainda recordar neste tocante que, no intuito de se promover ainda maior segurança quanto à titularidade acionária, a Lei 8.021/90 havia extinguido a possibilidade de emissão das ações ao portador e endossáveis, inviabilizando modos de transferência por tradição e por endosso que, ao passo que permitiam maior celeridade e simplificação, dificultavam por vezes a identificação dos acionistas para fins de cômputo de votos e pagamento de dividendos. Mediante a consequente alteração do artigo 20 e exclusão dos artigos 32 e 33 da LSA, formatou-se o cenário para se admitir exclusivamente a emissão de ações sob a forma nominativa, que pode ser registrada (artigo 31) ou escritural (artigo 34).

A interação destes controles com a Junta Comercial competente se dá, como sabido, por meio do ato de autenticação dos livros. A Lei 8.934/94, ao listar em seu artigo 32 os atos compreendidos pelo registro mercantil, abrange "a autenticação dos instrumentos de escrituração das empresas mercantis registradas", em linha ainda com seu artigo 39. A autenticação consiste somente na verificação do cumprimento ou não das formalidades exigidas para o preenchimento dos termos de abertura e encerramento; trata-se portanto de mera constatação, para fins de credibilidade do instrumento, do regular preenchimento dos requisitos formais de constituição do livro. Não se faz análise ou juízo de valor, portanto, dos lançamentos nele feitos.

O regramento trazido pela IN 82 do Drei, ao passo que busca modernizar a materialização dos livros sociais  que se dava por livros físicos, cujas folhas eram preenchidas respeitando-se a individualização de cada acionista e o lançamento em ordem cronológica de suas movimentações , deve amoldar-se ao contexto normativo acima trazido, que o precede e é hierarquicamente superior. O artigo 3º da IN 82, em linha com o citado parágrafo 3º do artigo 100 da LSA, introduz o sentido da nova norma ao dispor que tais livros deverão ser "exclusivamente digitais", podendo ser produzidos ou lançados em plataformas eletrônicas, armazenadas ou não nos servidores das Juntas Comerciais.

A norma exige a adoção obrigatória de livros digitais, abdicando de qualquer formato físico. Apesar da polêmica gerada sobre o Drei ter ou não ultrapassado sua competência regulatória, e do fato de Juntas Comerciais ainda provisoriamente admitirem a submissão de livros físicos, deve-se admitir que se trata de medida consentânea com práticas mais modernas de registro de dados, permitindo o preenchimento e apresentação de arquivos de forma rápida, segura e eficaz.

De fato, num momento em que os negócios passam por grandes progressos e a tecnologia se torna aliada cada dia mais presente, com a crescente inclusão digital das pessoas e a adoção progressiva de ferramentas de inteligência artificial, a manutenção de registros físicos de dados mostra-se anacrônica e desconexa da realidade.

No contexto societário a mudança faz todo sentido e coaduna com outras rotinas societárias já vinham se modernizando, como a condução remota de assembleias, a assinatura eletrônica e digital de atos societários, a interatividade remota com Juntas Comerciais e CVM e cartórios, a realização de pedidos públicos de procuração em formato eletrônico, e a gestão de processos de crowdfunding.

São inegáveis os benefícios diretos, a curto e longo prazos, que a digitalização dos livros sociais pode trazer às companhias. A título de exemplo, facilita-se a obtenção de assinaturas de acionistas cedentes e cessionários, que podem formalizar seu consentimento imediato e remoto mediante assinatura digital, tornando-se muito mais rápida e eficiente a finalização de lançamentos envolvendo pessoas residentes em locais distintos  e não é incomum companhias se depararem com riscos jurídicos advindos da falta de assinatura por acionistas que não são mais localizados ou que já faleceram ; reduz-se o custo de exercício de direitos e deveres societários, não sendo mais necessário movimentar os acionistas ou os próprios livros, o que se torna ainda mais relevante nos casos em que os livros são mantidos na sede da companhia e esta por vezes é localizada em locais distantes dos centros urbanos; extingue-se a possibilidade de extravio de livros, evitando-se os custos atrelados à recomposição de seus lançamentos e à publicação do respectivo aviso, e eliminam-se as chances de perda de dados por desgaste pelo passar do tempo; minimizam-se os custos de gestão de registros pelas companhias, com processos mais ágeis e transparentes de lançamentos e manutenção; se fornece um mecanismo eficiente de controle de participações acionárias de companhias que possuem evolução dinâmica do cap table, especialmente startups com planos de opções de ações e várias rodadas de investimento; dinamiza-se o processo de autenticação pelas Juntas Comerciais, já assoberbadas de demandas; e ainda são promovidos benefícios ao meio ambiente pelo menor consumo de papel.

Em termos operacionais, a IN, aplicada em âmbito nacional, manteve a autonomia das Juntas Comerciais de cada Estado para definirem suas questões materiais, com uma única exigência comum – o arquivo deve ser salvo em modelo PDF/A, de forma a impedir a alteração do documento. Isso em linha com a exigência de que os sistemas eletrônicos utilizados devem garantir, no mínimo, a segurança, a confiabilidade e a inviolabilidade dos dados.

Apesar da aparente simplicidade do procedimento, dúvidas são comuns tanto no preenchimento quanto na submissão dos livros. Dados os fatos de que cada Junta Comercial possui seu próprio padrão de autenticação e que a autenticação não implica uma análise ou validação do conteúdo dos livros  observado inclusive que "a autenticação dos instrumentos pela Junta Comercial não a responsabiliza pelos fatos e atos neles escriturados, não sendo de competência dos órgãos de registro a análise das formalidades intrínsecas neles contidas", nos termos do parágrafo 1º do artigo 7º da IN , são usualmente vistos questionamentos a respeito de aspectos relevantes como, por exemplo, qual modelo mais adequado à diagramação e estruturação do conteúdo dos livros (que é de livre escolha da companhia, conforme parágrafo 1º do artigo 18-A da IN 82), qual o modo mais seguro de formalização da anuência dos acionistas (cuja coleta, conferência e conservação, como ressaltado pelo caput do artigo 18-A, são de responsabilidade da companhia), qual a extensão adequada de cada volume dos livros, qual a forma mais segura de garantir a confiabilidade do sequenciamento dos volumes, dentre outros. É sempre recomendável adotar a abordagem mais conservadora, vale dizer, aquela que garanta a absoluta clareza dos registros e que não dará margem futuramente a questionamento de terceiros que não tenham participado do processo de constituição e preenchimento dos livros.

O tema é permeado de diversos outros aspectos operacionais que não deixam de ser relevantes  como a segurança da informação para evitar vazamento de dados armazenados pelas Juntas, o que foi objeto da subsequente IN DREI 79/22; a autenticação automática dos livros conforme artigo 10 da IN 82; os óbices à autenticação de livros em branco; a possibilidade de livros, ainda que relativos a períodos anteriores, serem assinados pelos atuais responsáveis pela companhia; e o preenchimento de livros físicos já autenticados até que se esgotem.

Em síntese, os livros digitais representam um marco na gestão das participações acionárias. Para as companhias que ainda não tenham tido a oportunidade de efetuar a migração dos lançamentos passados de titularidade acionária, se trata de momento oportuno para forçosamente se debruçarem no resgate, compilação e validação dos dados do passado como etapa necessária para não deixar margem a questionamentos. Em se tratando de futuro, o livro digital constitui uma ferramenta valiosa para a gestão do quadro acionário ao reduzir custos, garantir a confiabilidade e rapidez dos registros, e permitir um acompanhamento eficaz e transparente do cap table em todo perfil de companhia, desde as mais estáticas e tradicionais até as mais arrojadas em termos de movimentações por meio de títulos conversíveis, stock option plans e rodadas de investimento.

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