Opinião

A toga deve ser mais preta: por mais negras e negros na magistratura

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11 de dezembro de 2022, 11h46

O Brasil possui, segundo o último Pnad (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios) de 2021[1], do IBGE, 56,1 % da sua população entre pretos pardos por autodeclaração (47% de pardos e 9,1% de pretos). Esse dado representa, de fato, a realidade que encontramos nas ruas da grande maioria das cidades brasileiras. Contudo, essa não é a mesma sensação que temos ao circular dentro dos tribunais brasileiros, mais especificamente quando observamos a composição da magistratura nacional. Segundo o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), por meio do relatório estatístico de negras e negros no Poder Judiciário, publicado em setembro de 2021, dos 11.944 juízes que informaram sua raça, somente 12,8% (1.534) se autodeclaram pardos ou pretos [2]. Com isso, podemos perceber que, independentemente dos critérios estatísticos, a realidade da magistratura está bem distante da equidade racial que deveríamos buscar no nosso país.

Preliminarmente, no tocante aos dados estatísticos levantados pelo CNJ, precisamos esclarecer que a coleta das informações é um processo bastante complexo. Primeiro porque a informação é prestada por autodeclaração dos juízes brasileiros. Essa forma de obter os dados deve ser respeitada em razão das questões individuais de autoidentificação, mas impedem a precisão da análise. Contudo, o relatório elabora ainda permite algumas importantes considerações sobre o tema. Com objetivo de apresentar dados mais confiáveis, é necessário aprofundar um pouco no relatório do CNJ. O conselho esclarece, de início, que 5.605 magistrados (31,9%) não informaram sua raça/cor no levantamento, parcela bem significativa. Com isso, para tentar aproximar mais os dados da realidade, buscamos tribunais nos quais os magistrados se aproximaram dos 100% de identificação da raça/cor pelos magistrados para verificarmos as proporções nessas cortes. No TRT-15 (99,9%), no TRT-5 (96,1%), no TRT-12 (93,3%), no TJ-MA (97,6%), no TJ-RS (98,5%), no TJ-PR (93,7%) e no TRF-3 (97,8%), observamos que quase a totalidade dos magistrados declarou a raça/cor que se identificam.

Vejamos o TRT-15 (Campinas), apenas 6,7% dos magistrados se identificam como negros ou pardos. Já o TRT-5 (Bahia), possui 39,6% dos magistrados que se identificam como negros ou pardos. Em Santa Catarina, no TRT-12, apenas 6,5% dos magistrados se identificam como negros ou pardos. Ao passarmos para cortes estaduais, observamos o Tribunal de Justiça do Maranhão, no qual 19,4% dos magistrados se identificam como negros ou pardos. No TJ-RS, apenas 1,9% dos magistrados se identificam como negros ou pardos. Já no TJ-PR, apenas 5,9% dos magistrados se identificam como negros ou pardos. Por fim, analisando um dos tribunais da Justiça Federal, o TRF-3 (SP – MS), apenas 2,2% dos magistrados se identificam como negros ou pardos.

A média dessa amostragem, sem qualquer valor científico ou estatístico, ficou em 11,74%, mas não podemos ignorar que todos os números levantados, seja do levantamento nacional (12,8%), seja dessa média ilustrativa (11,74%) estão bem abaixo da realidade étnica racial do Brasil em geral.

Mas nem tudo são espinhos. O já referido relatório do Conselho Nacional de Justiça apresenta um aumento do ingresso de negros na magistratura nacional nos últimos anos. No período anterior ao ano de 2015, tínhamos um percentual de 12% de novos magistrados negros ingressando nas carreiras da magistratura dos diversos ramos do Poder Judiciário. No período entre 2016 e 2018, esse índice subiu para 20% e no interregno entre 2019 e 2020 chegou a 21%. No referido ponto, cabe observar o histórico da criação das cotas raciais nos concursos públicos no Brasil. A Lei Federal nº 12.990/2014 veio para criar a reserva de vagas de 20% aos negros nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito federal. Alguns estados e municípios replicaram as cotas raciais nos concursos realizados nas respectivas esferas de poder. O próprio CNJ, por meio da Resolução nº 203/2015, recentemente atualizada, também determinou a reserva de vagas para candidatos negros às carreiras da magistratura. Não há dúvida que esse aumento do percentual de negros que ingressaram recentemente na magistratura nacional decorrem da referida iniciativa legislativa. A legislação, contudo, possui prazo de validade que expirará em junho de 2024.

No tocante à efetividade do sistema de cotas, não há qualquer dúvida disso no ponto de vista quantitativo. Os próprios números do CNJ, apresentados acima, demonstram o aumento de maneira consistente do número de novos juízes negros. Os dados das cotas raciais nas universidades brasileiras, implementadas há mais tempo, reforçam também esse aspecto quantitativo indiscutível [3]. Contudo, cabe questionar se qualitativamente isso se confirma, ou seja, se os candidatos aprovados dentro das vagas reservadas na magistratura, além da questão racial, vêm de comunidades mais humildes dentro das várias camadas da sociedade brasileira. Sabemos que o combate ao racismo e a desigualdade racial não pode ser atribuído apenas aos negros mais pobres nem sequer apenas aos negros de maneira geral. Portanto, não é correto, no momento, defender que a legislação que atribui apenas uma regra geral, nesse caso, restrinja o acesso das cotas raciais por meio também de um critério econômico. Talvez, em virtude da vigência temporária da Lei nº 12.990/2014, que deveria ser prorrogada por pelo menos mais 10 anos e já começa a ser discutida no Congresso Nacional (PL 1.958/2021 [4] ), seria o caso de avaliar a inclusão de um critério econômico semelhante ao utilizado nas universidades públicas. Após um amplo debate e um estudo minucioso, na hipótese da confirmação de que a ampla maioria dos candidatos que utilizaram as cotas raciais nos concursos públicos seja de origem mais rica, caberia propor a criação de um novo critério para o próximo ciclo, ou seja, que o candidato tenha cursado 65% da sua vida escolar na escola pública (ensino fundamental, ensino médio e ensino superior) combinado com o critério de autodeterminação.

Outro ponto importante que deve ser abordado são as supostas fraudes e divergências em relação ao critério de autodeterminação. Não cabe o argumento de que a autodeclaração não pode ser revista pelos órgãos públicos pela simplória alegação de que todos os brasileiros são miscigenados em alguma proporção. O CNJ, por meio da Resolução nº 457/2022, alterou a Resolução nº 203/2015, para criar e disciplinar um sistema de controle efetivo do preenchimento do critério de autodeterminação das cotas raciais. As fraudes devem ser combatidas e punidas sem dúvida. E as divergências devem ser resolvidas por meio de critérios objetivos e claros para evitar injustiças.

Por derradeiro, a título de ilustração, observamos que, atualmente, nos quadros do STF e demais Tribunais Superiores (STJ, TST, TSE e STM), existe apenas um ministro preto, conforme amplamente noticiado pelos meios de comunicação [5]. O relatório do CNJ sobre os negros e negras no Poder Judiciário, por meio dos dados apresentados pelo STM e STJ, registrou que os referidos tribunais possuem respectivamente 21,7% e 18,6% de ministros pretos ou pardos. O TST não participou do levantamento por ausência de envio dos dados. O STF não participou do relatório por não se encontrar dentro dos tribunais passíveis de correição pelo CNJ. Por fim, o TSE não foi considerado por possuir integrantes de outros ramos do Poder Judiciário, fato que poderia interferir nos números do levantamento. O insignificante número de um único ministro preto nos quadros do STF, STJ, e STM é muito preocupante. A forma de acesso aos referidos tribunais é eminentemente política e não sofre interferência da Lei Federal nº 12.990/2014 (Lei das Cotas raciais nos concursos). Apesar da evidente necessidade de se garantir mais cadeiras aos representantes de uma parcela significativa da sociedade nos Tribunais Superiores e no STF, percebemos que esse critério sequer tem sido considerado recentemente. O ministro Joaquim Barbosa foi o último integrante preto do STF, empossado em 2003 e aposentado em 2014. Já se passaram mais de 08 anos, e nenhum novo ministro empossado, desde então, é preto ou pardo.

Portanto, não há dúvida de que precisamos escurecer as salas de sessões do Poder Judiciário brasileiro, mas do lado da autoridade e não do lado do acusado. Ao afirmar que a toga deve ser mais preta não pretendemos fazer apenas um jogo de palavras. Togas são vestes talares, cujo comprimento alcança os calcanhares. A toga preta é um traje que simboliza poder. A cor preta revela imparcialidade, igualdade, além de representar a erudição e a dignidade. Não há qualquer objetivo, obviamente, de designar juízes parciais, mas de garantir a efetividade das normas e princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito. A sociedade precisa de maneira plural ver seus representantes identificados com o povo. E o Poder Judiciário não pode ficar distante dessa realidade, sob pena de perder legitimidade. A toga deve ser, a cada dia, mais preta porque teremos ainda mais elementos para reforçar, de fato, nosso sentimento de justiça e pertencimento. Magistrados pretos não são melhores nem piores do que magistrados brancos, eles apenas têm histórias de vida diferentes e que precisam ser multiplicadas nas salas de julgamentos.

Não adianta, simplesmente, questionar se o próximo governo deve indicar um novo ministro preto para o STF, como fez com o ministro Joaquim Barbosa em 2003, ou se o Superior Tribunal de Justiça, com 33 ministros, deve ampliar a composição de pretos e pardos, o mesmo se aplicando ao Tribunal Superior do Trabalho com 27 ministros e o Superior Tribunal Militar com 15 ministros. A resposta para essa parte da questão é obviamente, sim. Mas, primeiro, é preciso estabelecer uma consciência coletiva de que esse aumento é importante para o país como sociedade, e depois, de como aumentar o número de jovens pretos e pardos com formação jurídica e, por fim, como incrementar o número de jovens pretos e pardos realizando concursos para magistratura. As cotas raciais nos concursos públicos da magistratura são instrumentos fundamentais para mudar essa realidade. Outras formas de alavancar e qualificar esse ingresso de negros na magistratura é voltar o olhar do terceiro setor para criação de programas de apoio e incentivo aos jovens negros de classe baixa que tenham esse objetivo. Sabemos perfeitamente quantos jovens ficam por esse caminho por falta de apoio e incentivo.

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