Opinião

Autocontenção do TCU em matéria de interpretação normativa

Autor

  • Vitória Costa Damasceno

    é advogada pesquisadora do Observatório do TCU da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e associada ao escritório Piquet Magaldi e Guedes Advogados com atuação especialmente em contencioso administrativo perante Tribunais de Contas administração contratual e consultivo.

5 de dezembro de 2022, 16h14

Aspecto frequentemente discutido na atuação do Tribunal de Contas da União é a alegada interferência da corte em assuntos regulatórios. Há críticas, inclusive, de que a corte de contas, ocasionalmente, substitui os entes reguladores em suas atribuições legais.

Sobre o tema, recentemente foi proferida decisão interessante pelo Plenário do Tribunal em representação de deputado federal por meio da qual se questionou a aprovação, pela Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), da aquisição da WarnerMedia pela AT&T (TC 006.740/2020-0, Acórdão 2090/2022-P).

A representação foi proposta como uma espécie de recurso à decisão definitiva adotada pela agência reguladora, buscando no TCU uma interpretação diversa acerca dos mesmos dispositivos legais, com o objetivo final de ver a operação inviabilizada no Brasil. A tentativa, no entanto, não prosperou, tendo a corte de contas optado no caso pela autocontenção.

O representante, no caso, discordava da interpretação regulatória feita pela Anatel acerca de dispositivos da Lei n.º 12.485/2011 (Lei do Serviço de Acesso Condicionado — SeAC), em particular a restrição disposta em seu artigo 5º quanto à participação cruzada. Em síntese, a Lei do SeAC veda que produtoras e programadoras com sede no Brasil detenham mais de 50% de participação, direta ou indireta, em empresas prestadoras de serviços de telecomunicações de interesse coletivo. Trata-se de um dispositivo que visa a evitar o risco de que grandes empresas concentrem toda a cadeia de valor do audiovisual, formando monopólios ou oligopólios vedados constitucionalmente.

A controvérsia no caso concreto se deu, especificamente, por conta da expressão "com sede no Brasil", visto que tanto a AT&T quanto a WarnerMedia possuíam sede nos Estados Unidos, mas atuavam em território nacional.

Como a AT&T detinha, à época, a operadora de TV por assinatura SKY, enquanto a WarnerMedia detinha um conjunto de ativos de mídia, a interpretação de tal expressão determinaria se a vedação quanto à participação cruzada (artigo 5º da Lei nº 12.485/2011) incidiria ou não no caso.

Ou seja, a Anatel foi provocada a decidir quanto à incidência ou não da vedação à participação cruzada a programadoras e produtoras sem sede no Brasil. Após deliberação, a maioria dos membros do conselho diretor da agência concluiu pela conformidade da operação com o artigo 5º da Lei nº 12.485/2011, tendo sido nesse sentido a decisão institucional.

Ao analisar a matéria, então, o TCU afastou a tentativa de revisão da decisão tomada pela Anatel. No entendimento do Plenário, expresso pelo Acórdão nº 2.090/2022-P, a interpretação do artigo 5º do SeAC pela Anatel não poderia ser considerada como irregularidade.

Isso porque compete "exclusivamente à Anatel interpretar a legislação de telecomunicações e decidir sobre casos omissos", sendo que "cada ente possui independência para, fundamentadamente, decidir a respeito da interpretação que entenda mais adequada ao mercado que regula". A Corte concluiu, assim, que "não há ilegalidade que possa ser apontada sob critério meramente interpretativo se a interpretação foi válida e exercida dentro dos limites literais da norma e das competências estabelecidas".

De outro lado, caso o TCU impusesse uma interpretação — o que chegou a ser proposto pela unidade técnica que instruiu o caso —, "estaria exercendo competência que não lhe cabe". Nesse sentido, recordou-se o Acórdão n.º 2.121/2017-P, segundo o qual "o TCU não é instância revisora ou recursal das decisões das agências reguladoras".

Cabe observar que houve também um aspecto pragmático na decisão. A Corte de Contas constatou que as empresas em questão haviam passado por alteração significativa no controle de suas operações, não havendo mais efeitos práticos no que se refere ao artigo 5º da Lei do SeAC. Isso é, a problemática da participação cruzada não se aplicaria mais ao caso concreto, visto que a AT&T havia vendido sua participação na Sky e anunciado que também repassaria parte da WarnerMedia para outro grupo.

Em todo caso, trata-se de atuação do Tribunal de Contas da União que merece ser enaltecida, ao reconhecer que não cabia a sua esfera de competência fixar, para o caso concreto, interpretação a dispositivo legal diversa da atribuída pelo ente regulador competente. Ou seja, afastou-se a pretensão de que o TCU atuasse como instância recursal imprópria de decisão regular da Anatel.

Com efeito, deve o TCU limitar-se a um controle de segunda ordem no que tange ao mérito de decisões de competência das agências reguladoras, não substituindo essas entidades, pois não se trata de tribunal revisional da atividade estatal federal. Nesse sentido, é sensível a intervenção da Corte em decisão tomada no exercício da função administrativa, especialmente quando não se fala em qualquer tipo de ilegalidade a ser corrigida, mas antes em decisão regulatória tida por inadequada.

O caso em análise é exemplo, assim, da autocontenção do TCU, o que se mostra relevante em meio às discussões quanto à extensão da atuação da Corte de Contas. Na busca pela segurança jurídica, é essencial a definição de limites claros, bem como o respeito a esses limites, o que se entende ter ocorrido quanto à decisão da Anatel no caso da aquisição da WarnerMedia pela AT&T.

Autores

  • é advogada, pesquisadora do Observatório do TCU da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e associada ao escritório Piquet, Magaldi e Guedes Advogados com atuação especialmente em contencioso administrativo perante Tribunais de Contas, administração contratual e consultivo.

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