Opinião

Ampliação da legitimidade para apresentar impugnação ao edital na Lei de Licitações

Autor

4 de dezembro de 2022, 9h11

Em linhas gerais, há consenso doutrinária de que a nova Lei de Licitações (NLL) foi uma grande oportunidade perdida pelo legislador, que desperdiçou a possibilidade de modificar o burocrático e ineficiente sistema brasileiro de contratação pública ao replicar a Lei 8.666/1993 em sua quase integralidade, acrescida de uma verdadeira consolidação de decretos federais e entendimentos firmados pelo Tribunal de Contas da União (TCU), em uma espécie de colcha de retalhos legislativa [1].

Ocorre que, a despeito das críticas, existem algumas modificações importantes na NLL, como é o caso do instrumento da Impugnação ao Edital, que sofreu sensível alteração, mas que poderá passar despercebida pelo leitor menos atento.

Veja-se que, na Lei 14.133/2021, a impugnação ao edital está prevista no artigo 164, que dispõe que "qualquer pessoa é parte legítima para impugnar edital de licitação por irregularidade na aplicação desta Lei […]".

Por sua vez, a impugnação foi prevista no artigo 41 da Lei 8.666/1993 com teor diverso, ao prever, em seu §1º, que "Qualquer cidadão é parte legítima para impugnar edital de licitação por irregularidade na aplicação desta Lei […]", e, em seu §2º, que "Decairá do direito de impugnar os termos do edital de licitação perante a administração o licitante que não o fizer até o segundo dia útil que anteceder a abertura dos envelopes de habilitação […]".

Assim, existem substanciais diferenças entre os marcos legislativos, com especial destaque à superação da dicotomia "cidadão x licitante", que foi definitivamente enterrada pela NLL, que prevê a legitimidade de "qualquer pessoa" para impugnar o instrumento convocatório.

Neste sentido, a Lei 8.666/1993 previa diferenciação para o caso de impugnação apresentada por cidadão (artigo 41, §1º) e para a apresentada por licitante (artigo 41, §2º), o que não é reproduzido pela Lei 14.133/2021, que não realiza qualquer distinção.

A este respeito, Joel De Menezes NIEBUHR observa que "nos termos da Lei nº 14.133/2021, não há distinção, para efeito de impugnação ao edital, entre licitantes e não licitantes  até porque, antes da data marcada para a apresentação dos envelopes, não se sabe, a rigor jurídico, quem é e quem não é licitante. O direito à impugnação é reconhecido a ambos, os prazos são os mesmos, tanto para impugnação quanto para a resposta". (2022, p. 668).

Porém, a NLL vai além ao prever que a impugnação poderá ser apresentada por "qualquer pessoa", de forma a ampliar a legitimidade para impugnar, concedendo ampliação democrática ao ato, o que se coaduna à ideia da "nova Administração surgida ao longo do século XX, conectada ao Estado Social e a concepções democráticas e participativas  alargada, diversificada, desconcentrada e descentralizada, prestadora, constitutiva, consensual", como explica Rodrigo GALVÃO (2002, p. 108).

A Impugnação ao Edital é um dos instrumentos previstos no microssistema licitatório que efetiva, por excelência, a ideia de Administração Pública democrática, pois, como observa Victor Aguiar Jardim De AMORIM, "[…] tem por objeto possibilitar qualquer pessoa a apontar à Administração a existência de vícios de legalidade, irregularidades e inconsistências nos editais e respectivos anexos, de modo a viabilizar a sua correção e adequação". (GUIMARÃES; et. al., 2022, p. 156).

E frisa que "O fundamento constitucional é identificado no direito de petição, consagrado no artigo 5º, XXXIV, 'a', da CRFB". (GUIMARÃES; et. al., 2022, p. 156), que dispõe que "são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder".

Portanto, a impugnação ao ato convocatório é ferramenta que possui assento constitucional no direito fundamental de petição (CF, artigo 5º, XXXIV, a), mas também no direito à ampla defesa e ao contraditório (CF, artigo 5º, LIV e LV) e no direito à participação popular na Administração Pública.

Trata-se de um direito de qualquer pessoa (não somente do cidadão ou do licitante, como outrora previsto na Lei 8.666/1993), que poderá questionar a regularidade das cláusulas editalícias.

Dessarte, um dos fundamentos da impugnação é fomentar a participação popular na atividade administrativa, consistindo em aplicação prática da ideia de direito coletivo e transindividual de participação da formação da vontade administrativa.

A este respeito, Augusto Neves DAL POZZO e Renan Marcondes FACCHINATTO, esclarecem que "A norma do artigo 164 da Lei Federal nº 14.133/2021, ao prever a possibilidade de qualquer pessoa  física ou jurídica  impugnar um edital de licitação por eventuais irregularidades ou para a solicitação de esclarecimento consagra um importante instrumento de participação popular no exercício da função administrativa". (2021, p. 698, destacou-se)

Victor AMORIM, em coro, explica que, "Ao contrário do que se observava no artigo 41 da Lei nº 8.666/1993, o caput do artigo 164 da NLL confere ampla legitimidade para a impugnação, podendo ser apresentada por 'qualquer pessoa', seja física ou jurídica, independentemente de seu potencial de figurar como licitante e mesmo eventual justificativa do interesse ou objetivo com a formulação da peça impugnatória". (GUIMARÃES; et. al., 2022, p. 157).

Trata-se de consolidação de uma tendência que já vinha sendo observada em outros instrumentos normativos, de menor impacto: o Decreto Federal nº 3.555/2000, que aprovou o regulamento da modalidade pregão em âmbito federal, dispôs em seu artigo 12 que as impugnações poderiam ser apresentadas por qualquer pessoa (o que se aproxima da NLL neste cariz) no prazo de até dois dias úteis antes da data da sessão pública de recebimento das propostas, devendo o pregoeiro decidir sobre a impugnação no prazo de 24h.

Por sua vez, o Decreto Federal nº 10.024/2019, responsável por regulamentar a licitação na modalidade pregão eletrônico na esfera federal, também prevê que qualquer pessoa (sem distinção entre cidadão e licitante) poderá impugnar o edital, porém com outros prazos: em até três dias úteis antes da data da sessão, devendo a Administração Pública responder à impugnação em até dois dias úteis da data do seu recebimento.

Assim, a NLL, ao prever a legitimidade de qualquer pessoa para impugnar o edital, se aproxima dos mencionados decretos federais neste aspecto (diferindo em outros, como os prazos distintos para a apresentação da impugnação pela pessoa e da consequente resposta pela Administração, que foram unificados).

Porém, deve-se destacar que a positivação de referida tendência em um instrumento legislativo que se dispõe a estabelecer "normas gerais de licitação e contratação para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios" [2] (NLL, artigo 1º, caput) é relevante.

Não se fala mais apenas em legitimidade de "qualquer pessoa" para apresentar impugnação em face a editais de pregão (presencial ou eletrônico) em âmbito federal, mas em legitimidade para "qualquer pessoa" impugnar a totalidade dos editais previstos em âmbito nacional, não importando a modalidade de licitação ou o Ente Federado.

Referida previsão, portanto, torna uma norma nacional a ampliação da legitimidade para impugnar editais, em conformidade com a democratização da Administração Pública, calcada nos fundamentos constitucionais da soberania popular, explicados por DAL POZZO e FACCHINATTO:

Aqui, vale sempre a menção de que no exercício de uma função  e no caso das licitações públicas, está-se a falar da função administrativa  o agente público atua para o desempenho de finalidades públicas, devendo, por isso, responder perante a sociedade que ele representa. Nesse sentido, a possibilidade de qualquer pessoa  e não necessariamente algum agente interessado pessoalmente no objeto do certame  poder questionar os termos do edital tem fundamentos jurídicos concretos, que descendem do próprio Texto Constitucional, em especial no que concerne à soberania popular (artigo 1º, parágrafo único), ao direito de petição (artigo 5º, XXXIV, 'a') e ao devido processo legal (artigo 5º, LIV). Afinal, o exercício de participação e do controle social não se limita, apenas, ao momento do exercício do voto nas eleições periódicas, mas é admitido pelo Direito a todo tempo. (DAL POZZO, 2021, p. 698).

Outro fundamento democrático da impugnação é o auxílio da Administração Pública na identificação de erros e defeitos na feitura do ato convocatório, vez que os particulares estarão auxiliando o Ente Público nessa tarefa.

Portanto, deve-se abandonar o entendimento de que a impugnação é algo intrinsicamente ruim, vez que pode ser o momento para que a Administração: entendendo que a impugnação é pertinente, retifique o conteúdo do edital visando evitar a perpetuação de uma irregularidade; ou, entendo que o edital está correto, ratifique-o, reafirmando a sua regularidade.

Não se olvide que os erros praticados pela Administração podem prejudicar severamente os licitantes e, inclusive, levar à declaração de nulidade do certame em certos casos, razão pela qual é vantajoso ao Ente Público que os particulares demonstrem eventuais erros para que sejam corrigidos antes do prosseguimento do feito [3].

Portanto, a ampliação da legitimidade para a apresentação de Impugnação ao Ato Convocatório é importante novidade da NLL quanto comparada à Lei 8.666/1993 (e mesmo à Lei 13.303/2016, que perpetua a dicotomia "cidadão x licitante" em seu artigo 87), tornando norma geral (e, portanto, nacional) uma tendência democrática que estava restrita apenas ao pregão federal, que agora deverá ser de observância obrigatória por todos os Entes Federados, e em qualquer modalidade de licitação.

Porém, deve-se atentar que a efetiva ampliação da participação popular nas contratações públicas somente ocorrerá através do incentivo ao exercício da Impugnação ao Edital de certames licitatórios por qualquer pessoa, e não apenas por eventuais interessados em participar do pleito, vez que não basta a entrada em vigor da legislação para modificar a realidade social, demandando-se uma atuação proativa dos operadores do direito neste sentido.

 

Referências

DAL POZZO, Augusto Neves; CAMMAROSANO, Márcio; ZOCKUN, Maurício (org.). Lei de Licitações e Contratos Administrativos Comentada: Lei 14.133/2021. 1. Ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

GALVÃO, Rodrigo. Democratização da administração pública e bases constitucionais do processo administrativo. Revista de Direito Administrativo & Constitucional, 1. Ed., Curitiba: Juruá, 2002, p. 107-117.

GUIMARÃES, Edgar; et. al. Licitações e contratos administrativos: inovações da lei 14.133, de 1º de abril de 2021. 2. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 2022.

JUSTEN FILHO, Marçal. A interpretação da futura lei de licitações. JOTA, 2021. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/lei-de-licitacoes-direito-publicistas-02032021>. Acesso em 07 mai. 2022.

NIEBUHR, Joel de Menezes; et al. Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 2. Ed., Curitiba: Zênite, 2021.

NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação pública e contrato administrativo. 5. Ed., Belo Horizonte: Fórum, 2022.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos: teoria e prática. 11. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 2022.

 


[1] Sobre o tema, Marçal JUSTEN FILHO (2021) leciona que "a nova Lei é uma colcha de retalhos composta a partir da Lei 8.666, da Lei do Pregão, da Lei do RDC e do Decreto 7.581/2011". Assim, entende que "Na maior parte, o Projeto reitera as leis atuais. É uma espécie de 'Consolidação das Leis de Licitação'". (JUSTEN FILHO, 2021). Igualmente, Joel NIEBUHR defende que "De modo geral, em sua maior parte, a Lei nº 14.133/2021 representa uma espécie de consolidação de leis, decretos, portarias, instruções normativas e principais acórdãos do Tribunal de Contas da União sobre licitações e contratos administrativos". (NIEBUHR, 2021, p. 6).

[2] Referida previsão é debatida na doutrina, que entende que a NLL consistiria em norma mista, vez que congrega normas gerais, que são de observância obrigatória por todos os Entes Federados, podendo ser consideradas normas nacionais; e normas especiais, que somente são obrigatórias aos órgãos da Administração Pública Federal, razão pela qual consistem em normas federais, não nacionais. Neste sentido, Rafael Carvalho Rezende OLIVEIRA ensina que "Frise-se que o artigo 1º da Lei 8.666/1993 e o artigo 1º da Lei 14.133/2021 afirmam, literalmente, que todas as suas normas são gerais (nacionais) e devem ser observadas pela União, Estados, DF e Municípios. Todavia, conforme demonstrado anteriormente, os diplomas legais em comento possuem algumas normas específicas (federais). Dessa forma, a Lei 8.666/1993 e a Lei 14.133/2021 possuem caráter híbrido: por um lado, são leis nacionais no tocante às normas gerais; por outro lado, são leis federais em relação às normas específicas". (OLIVEIRA, 2022, p. 8).

[3] Neste cariz, DAL POZZO e FACCHINATTO observam que "Ademais disso, franquear o direito de petição aos cidadãos em matéria de impugnação ou esclarecimento de edital apresenta um efeito prático que não está atrelado apenas à maior legitimidade do exercício da função administrativa. Revela-se, outrossim, importante instrumento para correção de eventuais inconsistências do edital e o devido sopesamento dos benefícios da contratação pública. Com efeito, o questionamento (em sentido amplo  impugnação ou pedido de esclarecimentos) ao edital impõe, ao administrador, um ônus público de provar que o modelo de contratação proposto pelo edital é, de fato, o melhor diante das condições subjacentes". (2021, p. 698).

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!