Opinião

Organização judiciária cearense como modelo da alegoria da caverna de Platão

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2 de dezembro de 2022, 6h32

No Ceará, o Poder Judiciário estadual adotou uma peculiar forma de criação de jurisdição ao incluir em seus módulos jurisdicionais a novel 3ª Vara Empresarial, de Recuperação de Empresas e de Falência do Estado, após um rearranjo em outras unidades, com ampliação de competência territorial, extinção de vara e vinculação de comarcas do interior. Um verdadeiro "pacote jurisdicional".

tjce.jus.br
Ocorreu que, ao buscarmos a referida atualização normativa, fomos tomados de grande surpresa ao não localizarmos no sítio eletrônico da Assembleia Legislativa qualquer referência de alteração da Lei estadual nº 16.397/17, que dispõe sobre a Organização Judiciária do Estado, uma falha imputável quiçá ao departamento de tecnologia da informação da Casa Legislativa. Foi quando constatamos pelo acervo do Diário da Justiça do TJ-CE que a referida "reforma" normativa se deu por meio de Resolução do Tribunal Pleno (nº 11/2022, de 18 de agosto de 2022), que dispôs sobre a "transformação de unidades judiciais e administrativas", a alteração da estrutura de pessoa Poder Judiciário do Estado do Ceará e outras providências.

Veja-se que a Resolução nº 11/2022 do Tribunal Pleno do TJ-CE extinguiu a 5ª e a 6ª Vara de Execuções Fiscais da Comarca de Fortaleza, "transformando" os cargos de juízes de direito das unidades então extintas em titulares de dois juizados auxiliares, um da Fazenda Pública e outro da Violência Doméstica.

Seguiu então com a alteração das competências das 1ª e 2ª Varas de Recuperação de Empresas e Falência da Comarca de Fortaleza para todo o território estadual, alterando suas denominações para Varas Empresariais e agregando ao grupo a 3ª Vara, esta decorrente da "alteração de competência da 2ª Vara de Registros Públicos" da Capital.

Com a mudança das competências das varas empresariais, todos os feitos afetos a recuperações judiciais e falências, inclusive os crimes de natureza falimentar, bem assim as execuções por quantia certa contra devedor (a) insolvente, inclusive o pedido de declaração de insolvência; e os processos que tenham como assunto principal um daqueles constantes do ramo Direito de Empresas, passarão a tramitar perante uma das Varas Empresariais, com jurisdição em todo o território do Estado.

Segundo a Constituição do Estado, são órgãos do Poder Judiciário os juízes de direito (inciso V) e "outros órgãos criados por lei" (artigo 94, inciso XI), sendo a LOJ "de iniciativa do Tribunal de Justiça e disporá sobre a estrutura e funcionamento do Poder Judiciário do Estado" (artigo 96), devendo a criação de unidades judiciais ou mesmo sua modificação de competência ser dada por meio de lei que modifique a vigente Organização Judiciária. Além do que a própria garantia de inamovibilidade (artigo 98, inciso II) dos atuais magistrados das Varas de Recuperação Judicial foi igualmente violada, pois possuem domicílio legal na Comarca de Fortaleza e são instados à atuação jurisdicional em todo o território estadual, interiores inclusive.

Em relação à própria extensão da competência aos bordos de todo o ente federativo estadual, não se trata de questão nova, embora inusual. Em 2017, a Lei estadual nº 16.505/18 acrescentou a Subseção IV à Lei de Organização Judiciária do Ceará com a criação da Vara de Delitos de Organizações Criminosas, "com sede na Capital e jurisdição em todo o território do Estado do Ceará". Ao visto, a obediência à normatividade restou cumprida à época, com a legislação aprovada pela Assembleia Legislativa e de iniciativa do Tribunal de Justiça.

O mesmo cenário se dá em relação à especificidade da matéria empresarial, como já ocorreu no ano de 2018 com a criação da Vara de Crimes contra a Ordem Tributária da Comarca de Fortaleza pela Lei nº 16.676/18, que alterou a LOJ para acrescentar o artigo 63-A a figura do juiz de direito da referida unidade então criada. A matéria encontra-se, inclusive, sumulada pelo próprio Sodalício, a teor do verbete nº 34, que reconhece como "constitucional a instituição de juízo especializado por Lei Estadual, em consonância com o artigo 125 da Constituição Federal".

Portanto, não se olvida que a criação de jurisdição e sua conformação territorial se dá no campo da legalidade estrita, com a formação de norma em seu sentido estrito de nascedouro legislativo. E nos parece que a mixórdia da Resolução nº 11/2022 teve nascedouro na má interpretação de outra norma. Em 2019, restou editada a Lei estadual nº 16.922, que alterou a LOJ cearense para permitir a alteração administrativa do Tribunal de Justiça por meio de Resolução do seu Tribunal Pleno.

Dessa forma, restou alterado o artigo 42 da LOJ para permitir ao Tribunal de Justiça, com o quórum qualificado de 2/3 dos seus integrantes, a extinção de cargos vagos, a fixação, alteração, agregamento, remanejamento, regionalização e especialização da competência "dos órgãos previstos neste artigo", inclusive com a redistribuição de feitos, tudo para a racionalização e adequada prestação jurisdicional.

De fato, o artigo 42 da LOJ trata da "justiça de primeiro grau", que poderá, como visto, ter suas unidades fixadas, alteradas, agregadas, remanejadas, regionalizadas e especializadas, mas tudo em respeito à competência estatuída na própria lei de organização judiciária, como se dá com as especializações de varas cíveis da Capital, que possuem quatro unidades especializadas em julgamento de Seguro DPVAT; cinco para decisões em ações revisionais de contrato bancário e alienações fiduciárias; e quatro para execuções de títulos extrajudiciais. A especialização cível foi procedida por meio da Resolução nº 06/2017.

Uma vez exitosa a gestão do acervo e organização das unidades cíveis da Capital, parece-nos que o Tribunal Pleno seguiu à sua capacidade de organização administrativa, inovando com a extinção de unidades judiciárias e criação de outras, além da ampliação de jurisdição, por meio da Resolução nº 11/2022. É indiscutível que a capacidade de gestão administrativa do Tribunal Pleno se dá sobre as Superintendências, Secretarias, Assessorias, Diretorias, Gerências, Coordenadorias, Serviços, Seções, Núcleos e Centrais do Tribunal de Justiça, e não sobre a criação de unidades jurisdicionais, exatamente porque aquela se revela como sua "autonomia administrativa e financeira" (artigo 99 da CE). Diferentemente é o caso da jurisdição, que se legitima pela Constituição do Estado e pela lei de organização judiciária, nos termos do artigo 125 da Carta Fundamental já citada alhures, sendo ainda de competência privativa dos tribunais "propor a criação de novas varas judiciárias" (artigo 96, inciso i, alínea d). Por simetria, é o texto da Constituição Estadual que preceitua competir ao Tribunal de Justiça a proposição à Assembleia Legislativa de lei para a alteração da "organização e da divisão judiciária" (artigo 108, inciso I, alínea e).

De todo o visto empiricamente, saúda-se o entendimento doutrinário de Tourinho Filho, para quem a competência jurisdicional é "o âmbito, legislativamente delimitado, dentro do qual o órgão exerce o seu Poder Jurisdicional" [1]. E em atenção ao Estado de Direito reinante em solo brasileiro, haverá de se respeitar o "princípio da supremacia da Constituição, de acordo com o qual nenhum ato estatal poderá estar em desconformidade com a Constituição, combinado com o princípio da primazia da Lei, em que todos os atos editados em forma legislativa assumem uma condição preferencial em face de outros atos, e os atos legislativos existentes e em vigor deverão ser seguidos pelos poderes estatais" [2].

Ora, se a Carta Fundamental indica a legitimação do Poder Judiciário estadual com a competência dada pela Constituição dos estados e pelas Leis de Organização Judiciária, estas de iniciativa do Tribunal de Justiça, não pode o próprio Tribunal arvorar-se da alteração normativa sem ecoar na Lei de Organização Judiciária. Afinal, onde consta no artigo 50 da LOJ a inclusão das Varas Empresariais do Estado? E o seu inciso XIV, que prevê a existência de seis Varas de Execuções Fiscais, foi derrogado, revogado ou alterado sem comando legislativo?

São questionamentos que pululam e que revelam mais do que fora suscitado. Dentre eles, qual o limite de criação de jurisdição pelo Tribunal de Justiça? A resposta já foi dada pelo ministro Eros Grau em relevante julgamento somente comparável à sua envergadura perante o Supremo Tribunal Federal, no que interessa para o momento:

"(…) Especializar varas e atribuir competência por natureza de feitos não é matéria alcançada pela reserva da lei em sentido estrito, apenas pelo princípio da legalidade afirmado no artigo 5º, II da Constituição do Brasil, vale dizer pela reserva da norma. No enunciado do preceito  ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei  há visível distinção entre as seguintes situações: [i] vinculação às definições da lei e [ii] vinculação às definições decorrentes  isto é, fixadas em virtude dela  de lei. No primeiro caso estamos diante da reserva da lei; no segundo, em face da reserva da norma [norma que pode ser tanto legal quanto regulamentar ou regimental]. Na segunda situação, ainda quando as definições em pauta se operem em atos normativos não da espécie legislativa  mas decorrentes de previsão implícita ou explícita em lei  o princípio estará sendo acatado". (STF – HC 91509 RN, relator ministro EROS GRAU, Data de Julgamento: 27/10/2009, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-027 DIVULG 11-02-2010 PUBLIC 12-02-2010 EMENT VOL-02389-01 PP-00165).

No caso, a Resolução nº 11/2022 não se limitou à especialização das unidades judiciárias, como anteriormente fez o tribunal quando da especialização das varas cíveis, mas de fato extinguiu duas varas especializadas de Execução Fiscal e outra de Registro Público para delas criar dois Juizados e uma Vara Empresarial, ampliando, nesta última, o limite territorial de jurisdição não previsto em norma legal, quebrantando explicitamente o princípio da reserva legal, sem reflexo de alteração na Lei de Organização Judiciária. É dizer, finalmente, que não houve especialização de varas pré-existentes, mas efetiva "extinção" de módulos jurisdicionais e "criação" de unidades judiciais com distintas competências, matéria afeta ao parlamento estadual, nos termos das Cartas Políticas Federal e Estadual.

Em arremate, temos que a simples existência de tamanha altercação na ambiência visceral do Tribunal de Justiça nos traz à mente a conhecida alegoria da caverna de Platão, na qual pessoas presas no interior de uma caverna e que não vêm uns aos outros ou a si próprios são forçadas a olhar apenas para as sombras que passam na parede ao fundo, criadas pela luminosidade de uma fogueira existente na entrada. Para os prisioneiros, a verdade se apresentava apenas como aquelas sombras projetadas, não tendo conhecimento da realidade fora daquele cenário oscilante e de penumbra. Se um dos prisioneiros pudesse se libertar, por certo evitaria não olhar diretamente para a luz, pois a sensibilidade dos olhos o ofuscaria. Mesmo que as outras pessoas lhe dissessem que a realidade não era apenas as sombras, ele, de olhos semicerrados, desacreditaria e tentaria repousar a vista novamente na caverna que lhe pareceria confortável. Acaso acreditasse e retornasse para compartilhar a realidade com seus amigos prisioneiros, não os alcançaria, pois ao acostumar-se com a luz, dificilmente se locomoveria na escuridão. E ao vê-lo assim, cego, os demais acreditariam que sair da caverna os tornaria também cegos, optando por permanecer na penumbra.

Sabemos que a Resolução nº 11/2022 é falha, padece de inconstitucionalidade visível, mas seus signatários acreditam tê-la produzido na melhor das intenções judicantes, quiçá guiados pelo arrebol da celeridade, eficiência e outras tantas bandeiras desfraldas em detrimento dos trâmites legais do Estado democrático de Direito. Aquele que ousar apontar essa realidade, possivelmente será visto como tedioso, monótono, importuno. Contudo, não nos é dado negar a realidade quando necessária sua colocação, ao que escutamos o brado de Sobral Pinto a nos relembrar que "a advocacia não é profissão de covardes". Cumpre aos que, vendo a realidade, dela também não fujam ou se acomodem, mas sejam dela protagonistas, dentro dos seus limites e atribuições. Que nosso Tribunal de Justiça alencarino jamais seja comparado à escuridão e que seus luzidios integrantes sejam efetivas fontes de conhecimento e magnanimidade.


[1] Manual de processo penal. 5ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 231.

[2] SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 302.

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