Opinião

Pela proteção dos neurodireitos no Brasil

Autor

  • Evelyn Melo Silva

    é advogada mestranda em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro especialista em Direito Digital e membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB-RJ.

29 de agosto de 2022, 6h09

Em 29 de setembro de 2021, o Chile se tornou o primeiro país do mundo a instituir proteção legal aos neurodireitos, ou direitos do cérebro e da mente, com a aprovação da Lei n° 21.383.

A alteração do artigo 19, inciso 1°, da Carta Fundamental chilena teve por objetivo proteger a integridade e a segurança psíquica em relação ao avanço das neurotecnologias, estabelecendo que o desenvolvimento científico e tecnológico estará a serviço das pessoas e será realizado com respeito à vida e à integridade física e mental.

A senadora Carolina Goic Boroevic e os senadores Guido Girardi Lavín, Francisco Chahuán Chahuán, Juan Antonio Coloma Correa y Alfonso De Urresti Longton, autores do projeto de lei que positivou os neurodireitos, afirmam que, na esfera pública, desde 2013, os Estados Unidos, a União Europeia e a China investem milhões no estudo do cérebro humano. Do ponto de vista da esfera privada, os senadores chilenos mencionam que, desde 2019, companhias tecnológicas como o Facebook e a Microsoft investem em startups de neurotecnologia. Recentemente, no dia 25 de agosto de 2020, uma das startups de neurotecnologia que desenvolve inteligência artificial, a Neuralink, do empresário Elon Musk, demonstrou o uso experimental, em um porco, de uma interface cérebro-computador sem fio, que permitia registrar a atividade neural do animal.

O debate que originou o termo "neurodireitos" vem da pesquisa e do desenvolvimento tecnológico, especificamente da neurotecnologia e da inteligência artificial, e de como os cientistas acharam necessário a criação de uma nova categoria jurídica para garantir a privacidade dos dados neurais das pessoas, a autodeterminação e o senso de identidade dos indivíduos, e a regulamentação do uso da neurotecnologia para evitar expansão artificial das capacidades humanas, a fim de proteger a atividade cerebral, a integridade física e a dignidade humana.

Tanto o desenvolvimento tecnológico da inteligência artificial, quanto da neurotecnologia podem gerar riscos para a humanidade. Antecipando algumas dificuldades futuras, as entidades e organismos internacionais criaram regras e orientações com parâmetros éticos mínimos para aplicação dessas tecnologias em seres humanos.

No entanto, para regulamentar o tema, os pesquisadores Rafael Yuste, Sara Goering, Blaise Aguera y Arcas e outros recomendaram a criação de uma nova categoria jurídica: os neurodireitos. No artigo "Quatro prioridades éticas para neurotecnologias e IA", publicado na edição de novembro de 2017, da revista Nature, os autores destacam quatro áreas de preocupação da neurotecnologia, que também se aplicam à inteligência artificial: (1) garantia da privacidade e consentimento dos dados neurais das pessoas, (2) proteção à autodeterminação e senso de identidade dos indivíduos, (3) uso da neurotecnologia para a expansão artificial das capacidades humanas, e (4) combate ao preconceito.

No debate sobre a preocupação em proteger a autodeterminação e senso de identidade dos indivíduos, contra a manipulação da sua vontade e seus sensos morais, éticos e de responsabilidade, os cientistas propõe a proteção de neurodireitos [1].

Os senadores chilenos acima citados foram os pioneiros a apresentar o projeto de lei para positivar os neurodireitos. Eles se reuniram em conferência com os pesquisadores Rafael Yuste, Sara Goering, que publicaram o já citado artigo na revista Nature, e elaboraram a tese de que esse novo marco regulatório reconhece a existência de cinco novos direitos humanos: (1) direito à privacidade mental, referente aos dados cerebrais das pessoas; (2) direito à identidade e à autonomia pessoal; (3) direito ao livre arbítrio e à autodeterminação; (4) direito ao acesso equitativo ao aprimoramento cognitivo (para evitar a produção de desigualdades) e (5) direito à proteção contra vieses em algoritmos ou processos automatizados de tomada de decisão; conforme explicado na justificativa do projeto.

Esses cinco novos direitos humanos guardam estreita relação com as quatro preocupações apontadas pelos cientistas Yuste, Goering e outros.

O direito à privacidade mental consiste na privacidade das informações produzidas pela atividade cerebral. A preocupação pela proteção desse direito decorre da primeira preocupação apontada pelos pesquisadores, de se garantir a privacidade e o consentimento no uso de dados neurais das pessoas. Considerando que as informações produzidas nos nossos cérebros podem ser acessadas por dispositivos neurotecnológicos, esses neurodados são dados pessoais que merecem proteção. Até porque, dos neurodados decorrem o direito à autodeterminação.

Por sua vez, os direitos à identidade e à autonomia pessoal e ao livre arbítrio e à autodeterminação estão associados à segunda preocupação apontada pelos cientistas, que versa sobre a necessidade de proteger a autodeterminação e senso de identidade dos indivíduos. Isto porque, com a intervenção de dispositivos ligados diretamente ao sistema nervoso humano, a identidade pessoal pode ser alterada ou manipulada de alguma forma, a ponto de reduzir a consciência ou gerar interstícios amnésicos, entre outros efeitos indesejados.

Em seu turno, o direito à igualdade contra o aumento da capacidade cerebral está umbilicalmente ligada à preocupação contra o uso da neurotecnologia para a expansão artificial das capacidades humanas. Neste sentido, é necessário regulamentar a tecnologia para evitar a desigualdade entre as pessoas. Desta preocupação decorrem, inclusive, questões éticas, sobre quem poderá ter acesso a essa tecnologia, e como o uso não regulamentado pode acabar aumentando as desigualdades socioeconômicas.

Por último, no que concerne ao direito ao controle de viés de algoritmos, este novo direito humano está diretamente ligado à preocupação pelo combate ao preconceito, apontado pelos autores na revista Nature. Os algoritmos de inteligência artificial devem ter seu design o mais pluralmente possível e não devem ter uma base de dados viciada, para que não reproduzam as chagas dos preconceitos presentes na sociedade, e não discriminem pessoas negras, mulheres, indígenas, pessoas com deficiência etc., de forma a combater preconceitos na tomada de decisões automatizadas. Neste sentido, e em correlação com o direito à autodeterminação, a aplicação da inteligência artificial à neurotecnologia merece especial atenção, uma vez que a tecnologia de monitoramento da mente humana é baseada em algoritmos que podem ter vieses em seu design, e esses vieses poderiam ser implementados diretamente no cérebro humano.

No Brasil, a Emenda Constitucional nº 115/2022 incluiu no rol de garantias fundamentais o direito à proteção de dados pessoais, que são regulamentados pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), Lei nº 13.709/2018. Cabe destacar que, originalmente, os dados neurais não foram incluídos em nenhuma dessas duas legislações. No entanto, o projeto de lei nº 522/2022 visa alterar a LGPD para modificar a redação do artigo 5º, inciso II, que define dado pessoal sensível, para incluir "dado neural", além de criar os incisos XX, XXI e XXII para definir dado neural, interface cérebro-computador e neurotecnologia, respectivamente.

Indaga-se se a inclusão da definição de "dado neural" na Lei Geral de Proteção de Dados é suficiente para proteger essa categoria de direito. Assim, é preciso considerar que: (1) no primeiro precedente legal, a iniciativa chilena optou por alçar os neurodireitos ao rol de direitos fundamentais; (2) os neurocientistas já apontaram os riscos da falta de balizas legais robustas para delimitar as pesquisas e o desenvolvimento científico à luz de limites éticos e legais; (3) há um esforço normativo dos tratados internacionais em proteger a integridade neural das pessoas, vistos nas normas acima estudadas; e (4) a Constituição da República brasileira elegeu a igualdade formal como guia das garantias fundamentais, no caput do artigo 5º, elencado nos incisos uma série de desdobramentos da incidência do direito ao tratamento equitativo entre as pessoas, sem discriminações, mas também com acesso às mesmas oportunidades, sem com qualquer intervenção ou violação nas atividades neurais, seja pelo risco de violar o direito à privacidade mental, referente aos dados cerebrais das pessoas, o direito à identidade e à autonomia pessoal, o direito ao livre arbítrio e à autodeterminação, o direito ao acesso equitativo ao aprimoramento cognitivo (para evitar a produção de desigualdades) e o direito à proteção contra vieses em algoritmos ou processos automatizados de tomada de decisão, que não estão contemplados atualmente na Constituição brasileira. Com base nestas considerações, pode-se dizer que os neurodireitos devem ter assento constitucional, porque constituem a dignidade da pessoa humana, princípio fundamental protegido no artigo 1º, III/CRFB, porque sua proteção é um desdobramento da igualdade formal assegurada no caput do artigo 5º/CRFB e, portanto, devem ser reconhecidos como uma categoria de direitos e garantias fundamentais e, por estas razões, deveriam ser incorporados à Constituição por meio de emenda à Constituição.

Desta forma, conclui-se que o Brasil está no mesmo patamar de proteção conferido pelo Chile, conferindo a mesma importância e proteção, como orientado nos tratados internacionais de direitos humanos, avançando na proteção desta nova categoria de direitos, motivo pelo qual sugere-se uma proposta de emenda à Constituição que inclua o inciso LXXX no artigo 5º da Constituição da República, com a seguinte redação: "são a todos assegurados a privacidade mental, os dados neurais, a autonomia e autodeterminação individual, o acesso equitativo ao aprimoramento cognitivo e o processo natural de tomada de decisão, no desenvolvimento científico e tecnológico".

 


[1] YUSTE, R., GOERING, S., ARCAS, B. et al. Four ethical priorities for neurotechnologies and AI. Nature 551, 159–163 (2017). Disponível em: https://doi.org/10.1038/551159a. Acesso em: 20 fev. 2022.

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  • é advogada, mestranda em direito público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, especialista em direito digital e membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB-RJ.

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