Opinião

Leniência plus: uma exceção à regra do "vencedor leva tudo"?

Autor

  • Shana Schlottfeldt

    é analista legislativo da Câmara dos Deputados professora colaboradora do mestrado profissional em Poder Legislativo do Cefor-CD (Centro de Formação Treinamento e Aperfeiçoamento da Câmara dos Deputados) doutora pela UnB (Universidade de Brasília) visiting PhD student at University of York mestre pela Universidad Carlos 3º de Madri especialista em Direito Parlamentar e Poder Legislativo pelo ILB (Instituto Legislativo Brasileiro) do Senado bacharela em Direito pela UnB LLB exchange student at Australian National University pesquisadora do Observatório da LGPD-UnB pesquisadora do Grupo de Estudos em Direito das Telecomunicações (Getel/UnB/CNPq) autora do livro "All Eyes on Me: riscos e desafios da Tecnologia de Reconhecimento Facial à luz da Lei Geral de Proteção de Dados".

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27 de agosto de 2022, 7h07

O ordenamento jurídico brasileiro possui um verdadeiro microssistema anticorrupção cujas bases estão calcadas não apenas em enunciados constitucionais acerca da configuração do Estado brasileiro, dos direitos fundamentais, dos princípios da Administração Pública, mas também assentes em dispositivos que delineiam as diversas esferas de responsabilização e sanção, tais como a penal, a civil, a administrativa, e a política [1].

Complementarmente e esse microssistema, foi editada, a Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção — LAC), que "dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências" vez que, a corrupção, em grande medida, é "fenômeno que passa por organizações, mais do que decorre de iniciativas individuais isoladas […] envolve práticas reiteradas e complexas redes em que interagem diversos atores sociais, públicos e privados, com alto grau de institucionalização" [2].

Ainda que para a pessoa jurídica, sua realidade infracional seja única, a depender dos atos praticados, estará sujeita a distintas esferas de responsabilização, e.g., perante o órgão da Administração Pública lesado (artigos 86 a 88, Lei nº 8.666/1993 ou artigo 47, Lei nº 12.462/2011); o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) (artigo 36, Lei nº 12.529/2011); o Tribunal de Contas da União (artigos 46 e 58, Lei nº 8.443/1992) etc.

Este artigo tem por objetivo tratar de um recorte do cenário atual da LAC no que diz respeito à chamada leniência plus. Mais especificamente, avalia a possibilidade de sua aplicação no Processo Administrativo de Responsabilização (PAR) [3], no âmbito do Poder Executivo, com a participação da Controladoria-Geral da União (CGU) (artigo 8º, § 2º c/c artigo 16, todos da LAC).

A LAC tem sido apelidada de "Lei da Improbidade Empresarial", "Lei de Improbidade das Pessoas Jurídicas" e "Lei da Empresa Limpa", em referência às leis semelhantes que se aplicam a pessoas físicas. Nesse diapasão, cada vez mais, tem-se aplicado modelos de "detecção e comprovação de desvios a partir de negócios jurídicos de notícia e prova do ilícito por parte do próprio infrator, a incluir a confissão e a consensualidade, através da colaboração premiada" na busca dos demais envolvidos [4].

A ampliação da incidência de institutos negociais de colaboração pode ser observada tanto com a delação ou colaboração premiada, na esfera criminal; quanto com o acordo de leniência, no âmbito civil [5]. Destarte, em linhas gerais, à semelhança da delação premiada, o acordo de leniência torna possível a concessão de benefícios legais exculpantes à pessoa jurídica envolvida em atos danosos que colabora efetivamente com as investigações e com o processo administrativo na identificação dos demais envolvidos e na obtenção de informações e documentos que comprovem o ilícito. Destaque-se que as infrações dificilmente seriam identificadas ou comprovadas adequadamente sem a participação do insider.

A LAC traz os seguintes requisitos, de caráter cumulativo e taxativo, para a celebração do acordo de leniência:

"Artigo 16 […] §1º O acordo de que trata o caput somente poderá ser celebrado se preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos:
I – a pessoa jurídica seja a primeira a se manifestar sobre seu interesse em cooperar para a apuração do ato ilícito;
II – a pessoa jurídica cesse completamente seu envolvimento na infração investigada a partir da data de propositura do acordo;
III – a pessoa jurídica admita sua participação no ilícito e coopere plena e permanentemente com as investigações e o processo administrativo, comparecendo, sob suas expensas, sempre que solicitada, a todos os atos processuais, até seu encerramento" [6].

Busca-se, assim como na teoria dos jogos, fazer com que os envolvidos delatem seus parceiros no ilícito, colaborando, como mencionado, na identificação dos demais envolvidos na infração e na obtenção de informações e documentos que comprovem a ilegalidade.

Sem embargo, pelo artigo 16, §1º, I, da LAC, acima citado, caso uma Empresa "A" já tenha firmado acordo de leniência com a Administração, este não seria possível a uma Empresa "B" para os mesmos atos e fatos.

Destaque-se que nos Estados Unidos da América, há o programa de Anistia Plus (Amnesty Plus), que pode ser utilizado por empresas que não lograram obter a leniência sobre uma conspiração "X", a qual já estava sob investigação da Divisão Antritruste do Departamento de Justiça dos Estados Unidos da América (DoJ), mas que ao realizarem investigação interna (programa de compliance), descobrem uma conspiração "Y", desconhecida pelo DoJ. Nesse caso, a empresa pode receber leniência para a segunda conspiração e ter uma reconsideração pela Divisão no envolvimento na primeira [7], é a chamada leniência plus.

A leniência plus, pode, portanto, ser compreendida como aquela em que a empresa não se qualifica para a celebração do acordo de leniência, mas presta informações sobre um ato ilícito distinto, acerca do qual o ente processante não tem conhecimento. Nesse caso, a colaboradora receberia isenção integral da multa em relação ao novo ato e, quanto ao anterior, uma atenuação percentual inferior à que teria direito caso tivesse preenchido as condições para a celebração do acordo [8]. Ressalte-se que qualquer que seja a modalidade de leniência, não importa em isenção da pessoa jurídica em reparar o dano.

O acordo de leniência previsto na LAC pode tornar-se obsoleto como ferramenta negocial de combate à corrupção, se não interpretado e empregado de modo transversal e amplo. Neste sentido, a leniência plus se coaduna com o objetivo maior do instituto da leniência e, fundamentalmente, com o propósito de combate à corrupção, dado que a colaboração da pessoa jurídica permite a obtenção de informações e documentos de condutas distintas e, até então, desconhecidas pela administração.

O instituto de leniência, no contexto da preservação da competitividade, da livre concorrência e iniciativa existe no Brasil desde 2000, com a Medida Provisória nº 2.055/2000, convertida na Lei nº 10.149/2000, que dispôs sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica, no âmbito da atuação do Cade. Sob esse aspecto, o acordo de leniência adotou a lógica do "vencedor ganha tudo" (the winner takes it all) servindo como um importante mecanismo de detecção e condenação de cartéis, ainda que não se restringisse a tal prática [9]. Não é de surpreender que tenha sido também o Cade, s.m.j., a primeira instituição brasileira a aplicar e sistematizar a leniência plus no âmbito de sua atuação [10].

Ribeiro[11] compartilha do entendimento que a dinâmica da leniência plus possa ser aplicada no âmbito do PAR, mas pondera que tal aplicação deve cercar-se de alguns cuidados, tais como:

"[…] delimitar a pactuação do acordo posterior pelo acatamento, em especial, dos seguintes critérios: 1) a relevância das provas apresentadas pelo leniente plus; 2) a potencial materialidade da infração delatada, devendo-se levar em consideração a magnitude do ato lesivo, a extensão do dano causado, o número de empresas envolvidas etc.; e 3) a probabilidade de detecção do ilícito sem a denúncia ofertada pela empresa leniente."

Cumpre mencionar que a leniência plus é uma construção doutrinária, que não encontra previsão legal expressa, mas para a qual se entende que foi aberta possibilidade por meio de uma interpretação extensiva do artigo 37, I, do Decreto nº 11.129, de 11 de julho de 2022, que regulamenta a LAC e que, apesar de bastante recente  no momento da escrita deste artigo sequer contava com um mês de vigência , reproduziu a integra do artigo 30, I, do Decreto nº 8.420/2015, que o precedeu. O dispositivo citado ressalva expressamente que a observância do requisito do artigo 16, §1º, I, da LAC, apenas será exigível "quando tal circunstância for relevante", in verbis:

"Artigo 37.  A pessoa jurídica que pretenda celebrar acordo de leniência deverá:
I – ser a primeira a manifestar interesse em cooperar para a apuração de ato lesivo específico, quando tal circunstância for relevante;" [12].

Ou seja, diante de circunstância relevante, seria possível a celebração de acordo de leniência, ainda que a pessoa jurídica não tenha sido "a primeira a manifestar interesse em cooperar para a apuração de ato lesivo específico", i.e., ter-se-ia uma abertura interpretativa que excepciona a regra do "vencedor ganha tudo", sob a perspectiva de uma atuação mais ampla e efetiva do poder público sancionador (sob o auspício que, dada a assimetria informacional, o infrator sabe mais da própria infração do que qualquer outro agente).

E tal redação é também encontrada na Portaria Conjunta nº 4/2019, que define os procedimentos para celebração do acordo de leniência de que trata a LAC, no âmbito da CGU e dispõe sobre a participação da Advocacia-Geral da União (AGU):

"Artigo 7º Compete à comissão responsável pela condução da negociação do acordo de leniência: […]
II – avaliar se os elementos trazidos pela pessoa jurídica proponente atendem aos seguintes requisitos:
a) ser a primeira a manifestar interesse em cooperar para a apuração de ato lesivo específico, quando tal circunstância for relevante;
b) a admissão de sua participação nos atos ilícitos;
c) o compromisso de ter cessado completamente seu envolvimento nos atos ilícitos;
d) a efetividade da cooperação ofertada pela proponente às investigações e ao processo administrativo; e
e) a identificação dos agentes públicos e demais particulares envolvidos nos atos ilícitos" [13].

Compreende-se que os aspectos legais dos acordos de leniência seriam, lato sensu, aplicáveis à leniência plus, entendida aqui como uma espécie do gênero leniência. Em que grau e extensão tais aspectos seriam aplicáveis é algo que está sendo delineado com a prática/casos concretos. Como parâmetro indicativo, aponta-se que, no âmbito do Cade, o benefício de redução na leniência plus é da ordem de um terço da penalidade aplicável à empresa quando esta mesma empresa não se qualificar para um acordo de leniência [14].

No concernente ao momento de proposição do acordo, não há prazo fatal, à exceção do teor do artigo 16, §4º da LAC, que dispõe que "o acordo de leniência estipulará as condições necessárias para assegurar a efetividade da colaboração e o resultado útil do processo", a demonstrar que a leniência plus deve ser entabulada antes do advento da conclusão decisória do PAR, no que é corroborado pelo artigo 38, §2º, do Decreto nº 11.129/2022 que dispõe que "A proposta do acordo de leniência poderá ser feita até a conclusão do relatório a ser elaborado no PAR".

Destaque-se que não foi reproduzido no Decreto nº 11.129/2022, o conteúdo do artigo 35 do Decreto nº 8.420/2015 que previa que, caso o acordo não viesse a ser celebrado, os documentos apresentados durante a negociação seriam devolvidos, sem retenção de cópias, à pessoa jurídica proponente, sendo vedado seu uso para fins de responsabilização, exceto quando a administração pública federal tivesse conhecimento deles independentemente da apresentação da proposta do acordo de leniência.

Cabe, também, destacar que, até a celebração do acordo de leniência pelo ministro-chefe da CGU, a identidade da pessoa jurídica signatária do acordo não é divulgada ao público, ressalvada a possibilidade de a proponente autorizar a divulgação ou o compartilhamento da existência da proposta ou de seu conteúdo. O objetivo é manter as tratativas sob o crivo do sigilo, a fim de garantir ambiente seguro às empresas interessadas em delatar os atos corruptivos e preservá-las de eventuais retaliações por parte das demais infratoras e de repercussões negativas perante o meio social e empresarial em que estão inseridas (preservação do princípio da função social da empresa, pois entende-se que a empresa também agrega valores sociais: manutenção de postos de trabalho, papel econômico decorrente da circulação de bens e serviços que proporcionam recolhimento de tributos, aprimoramento tecnológico do país etc).

Por fim, o descumprimento de acordo de leniência, além da perda dos benefícios pactuados, enseja o prosseguimento do PAR e a aplicação das sanções nele apuradas.

Diante do exposto, entende-se que, em que pese a LAC afirmar que o acordo de leniência só pode ser firmado com a primeira pessoa jurídica a manifestar interesse em cooperar para a apuração de ato lesivo específico, a expressão "quando tal circunstância for relevante", existente em alguns dispositivos legais sucedâneos, permite abertura para negociação, não afastando completamente a possibilidade de acordo. Seria o que se denomina de leniência plus, que tem o potencial de fortalecer o instituto da leniência como ferramenta de combate à corrupção, ao representar mais um instrumento à disposição do mecanismo negocial estatal.


[1] SCHLOTTFELDT, Shana. Acordo de Leniência e o Acordo de Cooperação Técnica de agosto de 2020: porque o Ministério Público não é (e não deveria ser) signatário. Revista Thesis Juris — RTJ, São Paulo, v. 10, nº 2, p. 294-316, jul./dez. 2021. Disponível em: http://doi.org/10.5585/rtj.v10i2.18688. Acesso em: 30 jul. 2022. p. 295.

[2] MPF, Ministério Público Federal. Estudo Técnico nº 01/2017 — 5ª CCR. 2017. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr5/publicacoes/estudo-tecnico/doc/Estudo%20Tecnico%2001-2017.pdf. Acesso em: 30 jul. 2022. p. 9.

[3] O PAR destina-se a apurar a responsabilidade administrativa de pessoas jurídicas pela prática de atos lesivos contra a Administração Pública, podendo resultar na aplicação de sanções previstas na LAC.

[4] MPF, op. cit., p. 33.

[5] SCHLOTTFELDT, op. cit., p. 297.

[6] BRASIL. Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm. Acesso em 30 jul. 2022.

[7] SILVA, Rodrigo Chamorro da. Acordo de Leniência e Compliance. 2018. Dissertação (Mestrado em Direito) — Faculdade de Direito, Fundação Escola Superior do Ministério Público, Porto Alegre, 2018. p. 117.

[8] Ibid, p. 200.

[9] SCHLOTTFELDT, op. cit., p. 297.

[10] CADE, Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Programa de Leniência Antitruste do Cade. Brasília: Cade, 2017. Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/guias-do-cade/2020-06-02-guia-do-programa-de-leniencia-do-cade.pdf. Acesso em: 29 jul. 2022. p. 55-63.

[11] RIBEIRO, Márcio de Aguiar. Responsabilização administrativa de pessoas jurídicas à luz da lei anticorrupção empresarial. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 234.

[12] BRASIL. Decreto nº 11.129, de 11 de julho de 2022. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2022/Decreto/D11129.htm. Acesso em: 30 jul. 2022.

[13] BRASIL. CGU, Controladoria-Geral da União; AGU Advocacia-Geral da União. Portaria Conjunta nº 4, de 23 de setembro de 2019. 2019. Disponível em: https://repositorio.cgu.gov.br/handle/1/67773. Acesso em: 30 jul. 2022.

[14] CADE, op. cit., p. 55.

Autores

  • é analista legislativo da Câmara dos Deputados, doutora pela Universidade de Brasília (UnB), visiting PhD student na Universidade de York, mestre pela Universidade Carlos III de Madrid, pós-graduanda em Direito Parlamentar e Poder Legislativo pelo Instituto Legislativo Brasileiro (ILB/Senado), bacharela em Direito pela UnB, LLB exchange student na Universidade Nacional Australiana, pesquisadora do Observatório da LGPD-UnB e pesquisadora do Grupo de Estudos em Direito das Telecomunicações (Getel/UnB).

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