Opinião

Segurança jurídica e coisa julgada em matéria tributária

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26 de agosto de 2022, 9h05

Neste breve texto pretende-se abordar duas questões que se inter-relacionam, tendo em comum o fato de que são muito importantes para o sistema tributário brasileiro, qual seja, a coisa julgada e a segurança jurídica. Todavia, parece que ambos os institutos estão sendo deixados em um segundo plano. Vamos as breves reflexões para entender o que esta ocorrendo.

A coisa julgada está prevista no artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição de 1988, por meio do qual se assegura a imutabilidade do conteúdo das decisões judiciais definitivas. Logo, sendo garantia fundamental também ganha à proteção de cláusula pétrea, não podendo sequer ser objeto de deliberação de proposta de emenda tendente a aboli-la, conforme dispõe o artigo 60, § 4º, inciso IV, da Constituição. Nesse sentido, inclusive, cabe destacar que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 146.133, deixou bem claro que a coisa julgada é uma autoridade que goza da proteção constitucional de cláusula pétrea. Essa importância demonstra o prestígio que a Suprema Corte dá ao assunto da estabilidade das relações jurídicas, reconhecendo que é um assunto que decorre diretamente da segurança jurídica.

Apesar de todo esse destaque dado a estabilidade das decisões judiciais, muito se tem falado sobre a "flexibilização da coisa julgada", quando se trata de julgamento de ação direta de constitucionalidade e recurso extraordinário, com repercussão geral reconhecida, que resultou em alteração de posicionamento anterior do próprio STF. É nesse ponto que o debate envolvendo os limites da coisa julgada em matéria tributária se apresenta. Isso por que a problemática se concretiza quando um determinado contribuinte obtém uma decisão judicial favorável com trânsito e julgado, permitindo o não pagamento de tributo de relação jurídica continuada, mas, posteriormente, o STF decide de forma contrária. Assim, questiona-se quais devem ser os efeitos de uma ação rescisória movida em razão da alteração da jurisprudência do STF sobre determinada questão tributária e se é possível atribuir efeitos ex tunc à rescisão do julgado?

Essa questão se mostra bastante relevante na medida em que concordando que a mudança de jurisprudência permita a propositura e, até mesmo, procedência de ação rescisória, poderia representar a quebra direta da confiança do contribuinte. Isso por que imaginando que um contribuinte que há mais de cinco anos não recolhe um determinado tributo por força de decisão judicial que teria declarado sua cobrança inconstitucional e que já esteja transitado em julgado uma decisão posterior, fundada em mudança de entendimento do STF sobre a validade do mesmo tributo, poderia legitimar a propositura e procedência de eventual ação rescisória e, consequentemente, a autuação do contribuinte de forma retroativa ao tempo que deixou recolher a exação.

Esse complicado contexto que se impõe foi desenhado a partir da entrada em vigor do CPC/2015 que trouxe uma nova hipótese de ação rescisória, referindo à situação em que há declaração de inconstitucionalidade de norma jurídica pelo STF. Nessa situação, o artigo 525, parágrafos 12 e 15, do Código de Processo Civil dispõe que, ocorrendo decisão em sede controle difuso de constitucionalidade que reconheça a validade da norma jurídica, está permitida a propositura de ação rescisória no prazo de 5 anos contados do transito em julgado da nova decisão proferida pelo STF.

Essa nova disposição ampliou bastante o tema e a possibilidade de utilizar a ferramenta da ação rescisória, na medida em que o diploma processual anterior autorizava somente a propositura de ação rescisória na hipótese de violar literal disposição de lei (artigo 485, inciso V, do CPC revogado). Para ajustar a hipótese de aplicação, a jurisprudência do STF consolidou a Súmula 343, estabelecendo uma restrição no sentido de que, caso a jurisprudência dos tribunais não fosse controversa acerca da interpretação de texto legal, não seria cabível ação rescisória com fundamento no artigo 485, inciso V, do CPC/1973 então vigente.

Dessa forma, com o advento do CPC/2015 e as disposições do art. 525, a existência de controvérsia sobre a interpretação (e não validade) da norma jurídica deixou de ser condição para a propositura de ação rescisória. Em função dessa ampliação de hipótese de propositura de ação rescisória, passou a questionar se os efeitos da decisão rescindenda teria (ou não) efeitos retroativos , mesmo que fundada em alteração da jurisprudência do STF sobre a constitucionalidade de determinada norma tributária, comprometendo a segurança jurídica e a confiança do contribuinte.

Claro que o paragrafo 13º do artigo 525 do CPC trouxe uma novidade (já bastante utilizada pelo STF), permitindo que fosse modulado os efeitos dessa decisão em atenção a segurança jurídica. Só que o problema é quando não há decisão que entenda pela modulação temporal de efeitos: aí o contribuinte seria cobrado retroativamente? É o que leva a crer, porquanto a análise dos dispositivos legais leva a conclusão de que a decisão rescisória terá sempre efeito retroativo como regra e, excepcionalmente, por questão de segurança jurídica, poderá ter efeito prospectivo.

Mas agora imagine-se que um determinado contribuinte que há mais de cinco anos deixou de recolher um tributo por conta de decisão judicial, transitada em julgado, ao qual o declarou inconstitucional, venha a se deparar com uma mudança de entendimento do STF sobre a validade do mesmo tributo. Essa alteração promovida pelo STF poderia legitimar a propositura e procedência de ação rescisória, com a posterior autuação do contribuinte relativamente a todo o período?

Ao que parece a resposta para essa questão somente poderia se dirigir para uma direção, qual seja, jamais a posterior mudança de entendimento do STF sobre a validade do tributo poderia legitimar a propositura e procedência de ação rescisória que permita a autuação do contribuinte para pagamento dos valores do tributo relativamente a todo o período. Isso acontece por que estabelecer efeitos retroativos para atingir decisão transitada em julgada em favor do contribuinte violaria fatalmente a segurança jurídica e proteção da confiança.

Embora pareça que a resposta já esteja ao nosso alcance e que seja lógica, essa discussão está longe de encerrar. Só que o sistema processual tributário brasileiro gosta de fazer algumas "pegadinhas" e, eis que surgiu uma nova surpresa envolvendo os limites da coisa julgada em matéria tributária: uma nova decisão do STF que tenha mudado entendimento anterior teria o condão de automaticamente (sem ação rescisória) permitir a cobrança de tributo não pago por força de decisão que declarou inconstitucional sua cobrança, com trânsito em julgado em favor do contribuinte?

Essa questão é objeto de discussão no RE 949.297 e do RE 955.227 (Temas 881 e 885), com repercussão geral reconhecida, ao qual apresenta até o momento um resultado bastante desfavorável aos contribuintes. Bom, se com a exigência de ação rescisória, a segurança jurídica e a proteção da confiança se viam colocadas para "escanteio" imagina se vier a ser confirmada a decisão do STF no sentido de que cessam os efeitos da coisa julgada em matéria tributária quando se trata de tributo pago de modo continuado.

Não se esta a negar que a declaração de inconstitucionalidade ou constitucionalidade possui efeitos ex tunc (retroativos). Contudo, aplicar de forma isolada essa sitemática pode significar a criação de grave insegurança jurídica a todos os contribuintes – imagine só: nenhum contribuinte que tenha ganhado alguma ação judicial envolvendo exação tributária continuada conseguirá dormir em paz de agora em diante, com medo de acordar e receber um auto de infração ou solicitação de autorregulação pelo Fisco.

Além disso, mesmo que se diga que a alteração de entendimento não afetaria o período anterior a ação judicial favorável ao contribuinte com transito em julgado (ao qual teria exercido o direito a repetição do indébito, se for o caso), mas somente surtiria efeitos para as relações tributárias futuras, surpreender o contribuinte com uma carta de autorregulação ou auto de infração é, no mínimo, irrazoável. Isso por que espera-se que, independentemente de modulação temporal de efeitos, pelo menos ocorra uma notificação por parte do fisco de que a alteração seria aplicada ou surtiria efeitos do momento em que o contribuinte tomar ciência em diante, com permissão ao exercício do contraditório e ampla defesa na esfera administrativa. Infelizmente, agir de forma diferente significa que todos os contribuintes terão de eternamente ficar preocupados com eventual alteração de entendimento do STF e acompanhando, mesmo não sendo da área jurídica, tudo que a Suprema Corte decide em matéria tributária, em eterno medo de ser surpreendido.

Por fim, cabe esclarecer que o objetivo deste breve ensaio não é esgotar o assunto, mas o de fomentar uma discussão sobre o tema, pois relativizar(ou não) um instituto tão importante como é a coisa julgada influencia decisivamente na vida dos cidadãos brasileiros. É nesse sentido que a responsabilidade do Supremo é enorme neste caso, pois, dependendo de seu posicionamento, poderá criar um precedente que provocará a perda da confiança daqueles que acreditam que ainda verão seus direitos e garantias constitucionais assegurados pelo guardião da Constituição.

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