Opinião

Breve reflexão sobre a inelegibilidade causada por reprovação de contas

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23 de agosto de 2022, 13h08

Em todo ano eleitoral a imprensa usa e abusa da divulgação da lista que os tribunais de contas precisam encaminhar à Justiça Eleitoral com a relação dos que tiveram as contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável e por decisão irrecorrível do órgão competente.

Essa lista é intitulada como "a lista dos inelegíveis", como se quem nela figurasse, automaticamente, estivesse fora da disputa eleitoral. Com a devida vênia, é preciso ter o zelo de quem leva o andor para analisar este tema e não chegar a conclusões precipitadas.

Não estou aqui a criticar a divulgação em si. Até porque a disponibilização dessa lista é exigência da Lei das Eleições (Lei nº 9.504/97, artigo 11, §5º) e é um direito de todos e todas ter acesso a essas informações.

Porém, a notícia, da forma errônea como muitas vezes é divulgada, causa confusão no interlocutor e, na pior das hipóteses, pode causar até desequilíbrio da disputa do pleito eleitoral, pois se alguém votaria em determinado candidato que figura em tal lista, e, em razão de ter lido notícia, crê que ele está inelegível, pode acabar votando em outro.

Assim sendo, meu objetivo é explicar, ainda que brevemente, sobre essa hipótese de inelegibilidade prevista em nossa legislação eleitoral.

Primeiro, é preciso consignar que a Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010, conhecida como "Lei da Ficha Limpa", trouxe diversas alterações na legislação eleitoral, e, dentre elas, modificou o artigo 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar nº 64/90, para dispor que são inelegíveis "os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente".

Como se pode notar, para a incidência da inelegibilidade acima descrita não basta que o gestor tenha as suas contas rejeitadas. A rejeição das contas deve ser: a) em razão de irregularidade insanável; b) a irregularidade deve configurar ato doloso de improbidade administrativa; e, c) a decisão da corte de contas deve ser irrecorrível.

Se o candidato "X", que registrou a sua candidatura perante a Justiça Eleitoral, figurou na famigerada lista do tribunal de contas, caberá a qualquer candidato, a partido político, coligação ou ao Ministério Público, no prazo de cinco dias, contados da publicação do pedido de registro do candidato, impugnar o registro de candidatura com base no artigo 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar nº 64/90.

Havendo impugnação, o candidato tem o prazo de sete dias para a contestação, juntar documentos, indicar rol de testemunhas e requerer a produção de outras provas. Depois da devida instrução, a Justiça Eleitoral proferirá a sentença, deferindo ou indeferindo o registro de candidatura, reconhecendo ou não a inelegibilidade do candidato.

Confesso que sempre fui muito reticente em relação a essa hipótese de inelegibilidade, por duas razões. A primeira, se foi o tribunal de contas que analisou o processo do gestor, em todas as suas circunstâncias, como pode ficar a cargo da Justiça Eleitoral a aferição de houve ou não ato doloso de improbidade administrativa?

A segunda, é que nos procedimentos instaurados pelos tribunais de contas, não se imputa a existência de ato de improbidade, nem tampouco se abre a possibilidade de os fiscalizados se defenderem, com todas as garantias do devido processo judicial.

Os tribunais de contas exercem função muito importante, porém, suas decisões são administrativas, e não jurisdicionais, embora a Constituição utilize o termo "julgar". Como leciona o eminente professor José dos Santos Carvalho Filho [1]:

"O termo julgar no texto constitucional não tem o sentido normalmente atribuído aos juízes no exercício de sua função jurisdicional. O sentido do termo é o de apreciar, examinar, analisar as contas, porque a função exercida pelo Tribunal de Contas na hipótese é de caráter eminentemente administrativo".

Noutro dizer, não se trata de atividade jurisdicional, onde tenham sidos garantidos, efetivamente, a ampla defesa e o contraditório, pois o termo julgar é utilizado no sentido de examinar e analisar as contas.

Então, a meu sentir, para que seja configurada a hipótese de inelegibilidade prevista no artigo 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar nº 64/90, se faz necessário que tenha havido pronunciamento judicial, transitado em julgado, reconhecendo a prática dolosa de ato de improbidade administrativa no que diz respeito à irregularidade que causou a reprovação das contas.

Importante mencionar que o Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Recurso Extraordinário nº 636.886, reconheceu a prescritibilidade de pretensões de ressarcimento ao erário baseadas em decisões proferidas por Tribunais de Conta, e uma das razões foi justamente porque não há a análise, pela referida Corte de Contas, da prática de ato de improbidade administrativa, por faltar-lhe competência constitucional para tanto.

Portanto, como vimos, não basta constar nas listas dos tribunais de contas para estar inelegível, porquanto a configuração da inelegibilidade prevista no artigo 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar nº 64/90 é complexa, tendo o seu núcleo central no cometimento de ato doloso de improbidade administrativa.

De toda a sorte, é bom sempre olhar um pouco mais de perto, com cautela, e não se deixar levar por notícias tendenciosas, que infelizmente são comuns nesse período eleitoral.

Aproveito o ensejo para desejar um ótimo pleito a todos e todas!


[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, 31ª ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 1.076-1.077.

Autores

  • é advogado, consultor jurídico da Fundação de Apoio e Desenvolvimento do Ensino, Pesquisa, Extensão Universitária no Acre (Fundape), pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp e pós-graduando em Direito Público pelo Instituto Elpídio Donizetti.

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