Opinião

Discricionariedade na aplicação da pena máxima no processo administrativo disciplinar

Autor

  • Manoel Messias de Sousa

    é advogado servidor público aposentado do MPU pós-graduado em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF) e diretor-executivo da Escola de PAD de Brasília.

22 de agosto de 2022, 7h08

Prevalece hoje na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal [1] [STF] e do Superior Tribunal de Justiça [2] [STJ] o entendimento segundo o qual quando a Administração Pública se depara com situação em que a conduta do servidor acusado em processo administrativo disciplinar se amolda às hipóteses de demissão ou de cassação de aposentadoria, ela não dispõe de discricionariedade para aplicar pena disciplinar menos gravosa, por se tratar de ato vinculado.

A matéria já está, inclusive, sumulada no STJ no enunciado da Súmula 650, que estabelece:

"A autoridade administrativa não dispõe de discricionariedade para aplicar ao servidor pena diversa de demissão quando caraterizadas as hipóteses previstas no artigo 132 da Lei nº 8.112/1990". (SÚMULA 650, 1ª SEÇÃO, julgado em 22/09/2021, DJe 27/09/2021).

Isso significa que o administrador público que, no caso concreto, enquadrar a conduta do agente público faltoso no rol do artigo 132 da Lei nº 8.112/90, não tem qualquer margem de discricionariedade na aplicação da pena, tratando-se de ato plenamente vinculado.

Logo, ao Poder Judiciário só lhe resta apreciar a regularidade do processo administrativo disciplinar, à luz dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal [CF, artigo 5º, LIV e LV].  

De acordo com essa compreensão majoritária do STF e do STJ, se um servidor público, por exemplo, com mais de 5, 10, 20 ou 30 anos de bons serviços prestados à Administração Pública, bons antecedentes e sem  nunca haver respondido antes um procedimento disciplinar, receber R$ 40,00, por vantagem indevida, somente pelo fato de sua conduta se enquadrar formalmente no artigo 132, XI ["corrupção"] da Lei nº 8.112/90, a sanção disciplinar a ser aplicada, no caso, será, necessariamente, a demissão, sem nenhuma chance para se impor uma outra pena menos gravosa. Não se está aqui a defender a impunidade ou o servidor mau-caráter. Não é disso que se trata.

Entretanto, com todo respeito aos que pensam em contrário, esse entendimento da jurisprudência majoritária do STF e do STJ despreza totalmente os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana [CF, artigo 1º, III], individualização da pena [CF, artigo 5º, XLVI] e [artigo 128 da Lei nº 8.112/90), proporcionalidade e razoabilidade [artigo 2º da Lei nº 9.784/99].

A doutrina brasileira [3] também critica de forma veemente esse entendimento da jurisprudência majoritária do STF e do STJ, ressaltando tratar-se evidentemente de um limitador da discricionariedade da autoridade julgadora quando da aplicação de penalidades disciplinares mais gravosas ao servidor faltoso.

É certo que o Poder Judiciário não pode dizer, de modo substitutivo, como o administrador público deverá julgar um processo administrativo disciplinar; mas deve, por outro lado, emitir juízo principiológico e finalístico de como não deveria ter julgado ou agido. Ou seja, deve pontuar se o ato de demissão do agente público emanado da Administração Pública está correto ou não; se é legal ou não; se está de acordo com o direito ou não; se é razoável e proporcional ou não, sob pena de violação aos princípios constitucionais já reportados.

As normas não devem ser apenas lidas, como também sentidas e ouvidas. O jurista deve ser um regente de orquestra, apto a dominar e coordenar todos os instrumentos do direito [4].

Sobre o princípio da legalidade, Gustavo Binenbojm, citado por Antônio Carlos Alencar Carvalho [5], pontua:

"(…), em função da eficácia irradiante dos direitos fundamentais e da constitucionalização do direito administrativo, mesmo existindo lei, as normas constitucionais em causa surgem como critério orientador imediato da interpretação, integração e aplicação de todos os atos infraconstitucionais por parte da Administração Pública; diante de leis ostensivamente violadoras dos direitos fundamentais, a Administração Pública se encontra vinculada a preferir a Constituição à lei, desaplicando as leis feridas de inconstitucionalidade; a atuação administrativa só será válida, legítima e justificável quando condizente, muito além da simples legalidade, com o sistema de princípios e regras delineados na Constituição de maneira geral e com os direitos fundamentais.
(…).
Toda a legislação infraconstitucional tem de ser interpretada e aplicada à luz da Constituição, que deve tornar-se uma verdadeira bússola, a guiar o intérprete no equacionamento de qualquer questão jurídica".

Nessa mesma toada, assevera Mauro Roberto Gomes de Mattos [6]:  

"(…) o princípio da legalidade, na atual fase do direito administrativo, não se restringe apenas ao texto frio da lei, pois a busca do bem comum permite que o administrador público recorra também ao apoio de outros ramos do direito, sempre respeitando a respectiva hierarquia legal, e tendo como objetivo de implementar as devidas garantias dos administrados.
(…)
a verificação dos princípios constitucionais fundamentais, possuem certa preponderância sobre o próprio princípio da legalidade escrita, pois como foi aduzido anteriormente, a lei perdeu força para projetar a Constituição como a fonte mais importante do ordenamento jurídico. Isso não quer dizer que a lei deixou de ser importante para o Poder Público, contudo a mesma foi constitucionalizada. Sucede que na atualidade a força normativa da lei é dosada pela Constituição, ou seja, para que ela tenha plena aplicação, necessariamente terá que ser recepcionada pela Lei Maior. É o fim do mito da perfeição da lei, pois ela está subordinada à Constituição."

Por tais razões, mostra-se de todo prudente que o STF e o STJ revejam o entendimento de que quando a Administração Pública se depara com situação em que a conduta do servidor acusado em processo administrativo disciplinar se amolda às hipóteses de demissão ou de cassação de aposentadoria, ela não dispõe de discricionariedade para aplicar pena disciplinar menos gravosa, por se tratar de ato vinculado.

Conclusão
Diante dessas premissas, conclui-se:

Convém que o STF e STJ examinem de forma meticulosa a folha funcional do servidor público punido disciplinarmente, e levem em consideração o que ali está registrado: se ostenta bons antecedentes; se não é reincidente; o tempo de serviço prestado à Administração Pública; os elogios, menções honrosas e agradecimentos registrados nos seus assentamentos funcionais, e os prejuízos eventualmente causados com a conduta investigada.

O Poder Judiciário leve em consideração os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana [CF, artigo 1º, III], individualização da pena [CF, artigo 5º, XLVI] e [artigo 128 da Lei nº 8.112/90), proporcionalidade e razoabilidade [artigo 2º da Lei nº 9.784/99] quando os julgamentos envolverem a fixação das penas máximas no processo administrativo disciplinar.

Os tribunais superiores adotem de forma uniforme o entendimento segundo o qual o controle jurisdicional no julgamento do processo administrativo disciplinar deve ser amplo, de modo a conferir garantia aos servidores públicos contra eventual excesso administrativo, não se limitando, tão somente aos aspectos formais do procedimento sancionatório, nos casos de enquadramento no artigo 132 da Lei nº 8.112/90.

O STF e o STJ têm acolhido em vários julgados os princípios da individualização da pena, da proporcionalidade e razoabilidade, como parâmetros de controle da atuação da Administração Pública no julgamento dos processos administrativos disciplinares nos casos vinculados, v.g. STF: 1) RMS 24.129/DF, relator ministro Joaquim Barbosa, 2ª TURMA, julgado em 20/03/2012, DJe 30/04/2012;  e 2) RMS 24.699-9/DF, relator ministro Eros Grau, 1ª TURMA, julgado em 30/11/2004, DJ 01/07/2005. STJ: 1) AINT NO ARESP 1.395.319/ES, relator ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª TURMA, julgado em 17/12/2019, DJe 19/12/2019); 2) MS 19.991/DF, relator ministro Mauro Campbell Marques, 1ª SEÇÃO, julgado em 09/04/2014, DJe 23/04/2014; 3) MS 21.586/DF, relator ministro Napoleão Nunes Maia FIlho, 1ª SEÇÃO, julgado em 22/05/2019, DJe 16/08/2019, 4) MS 21.553/DF, relator ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª SEÇÃO, julgado em 22/05/2019, DJe 16/08/2019; 5) MS 18.023/DF, relator ministro César Asfor Rocha, 1ª SEÇÃO, julgado em 9/5/2012, DJe  18/05/2012; 6) MS 14.703/DF, relator ministro Og Fernandes, 3ª SEÇÃO, julgado em 28/03/2012, DJe 03/05/2012; 7) MS 13.678/DF, relator ministro Maria Thereza de Assis Moura, 3ª SEÇÃO, julgado em 22/06/2011, DJe 01/08/2011; 8) MS 13.523/DF, relator ministro Arnaldo Esteves Lima, 3ª SEÇÃO, julgado em 13/05/2009, DJe 04/06/2009 e 9) MS 12.636/DF, relator ministro Félix Fischer, 3ª SEÇÃO, julgado em 27/08/2008, DJe 23/09/2008.


[1] STF: AgR no RMS 30.899-DF, relator ministro Teori Zavascki, Segunda Turma, j. 25/08/2015; RMS 32.288-DF, Rel. Min. Cármen Lúcia. Segunda Turma, J. 24/09/2013; RMS 34.817-AGR/DF, relator ministro Luiz Fux, julgado em 15/04/2020, DJe 15/05/2020.

[2] STJ: MS 20.963-DF, relator ministro Sérgio Kurina, Primeira Seção, DJe: 08/09/2020; MS 17.054-DF, relatora ministra Regina Helena Costa, Primeira Seção, DJe: 13/12/2019; MS 19.823-DF, relatora ministra Eliana Calmon, Primeira Seção, DJe: 23/08/2013.

[3] Por exemplo, Antônio Carlos Alencar Carvalho na obra "Penas máximas no processo administrativo disciplinar: uma visão neoconstitucionalista do poder vinculado da Administração Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2017".

[4] COSTA, José Armando da. Processo Administrativo Disciplinar: teoria e prática. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense. 2010, p. 49.

[5] CARVALHO, Antônio Carlos Alencar. Penas máximas no processo administrativo disciplinar: uma visão neoconstitucionalista do poder vinculado da Administração Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 132 e 81.

[6] MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Tratado de Direito Administrativo Disciplinar. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 120-124.

Autores

  • é analista do MPU/Apoio Jurídico/Direito, lotado na Procuradoria-Geral da República, em Brasília, com atuação em processo administrativo disciplinar e sindicância. Bacharel em Direito pela PUC-GO, é pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal e em Direito Constitucional.

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