Opinião

Entre sonhos e diálogos: racionalidade na tributação de combustíveis

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22 de agosto de 2022, 11h08

Falta só um minuto para o velho alarme de Martin Luís Rei Júnior despertá-lo. O sono era pesado, embora os sonhos fossem cada vez mais leves. Dono de uma pequena rede de postos de combustíveis do litoral sul fluminense há mais de três décadas, o movimento das quatro unidades das quais era responsável disparara nos últimos meses. Não era à toa. Após anos de discussões por respostas fáceis e soluções semielaboradas, enfim ele e seu negócio viviam, naquela antevéspera de Natal do ano de 2025, as consequências da racionalização e da simplificação do sistema tributário brasileiro.

"Nada perturba tanto algumas pessoas como ter de pensar e dialogar. Mas que bom que isso aconteceu três anos atrás. Ganhamos todos", não se cansava de dizer dr. Rei.

O contexto ao qual hoje Martin se refere está relacionado ao imbróglio tributário de 2022, quando várias mudanças legislativas foram impostas ao mercado de combustíveis. À ocasião, quase todas contestadas por diferentes ações constitucionais, o que colocara em xeque tanto as modernizações que se pretendia efetuar no então complexo e obscuro Sistema, quanto no asfixiado negócio do Rei fluminense. No fim, porém, prevalecera o improvável diálogo entre Poderes e sociedade.

"Suba o primeiro degrau com fé. Não é necessário que você veja toda a escada. Apenas dê o primeiro passo", diz atualmente Martin, ao sonhar acordado, recordando-se da decisão de manter o negócio no auge da dificuldade e crendo quase que de forma divina na modernização legislativa prometida à época para o regime tributário de combustíveis.

Hoje conhecedores dos degraus, desçamos um pouco e voltemos no tempo, deixando dr. Rei descansar por mais esse último minuto.

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Março de 2022. A história de Martin e de milhares de brasileiros começou a ser reescrita com a aprovação da Lei Complementar nº 192. Embora tenha se dado em ambiente político conturbado, fato é que esse ato normativo fora responsável por efetivar comandos tributários simplificadores e racionalizadores do sistema, em especial relacionados ao Imposto incidente sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).

Avanço ainda mais relevante se considerado que suas disposições já estavam presentes há mais 20 anos na Constituição, desde a Emenda nº 33/2001, adormecidas em eterno aguardo por regulamentações nacional e estaduais.

A primeira dessas três fundamentais mudanças foi a implementação do chamado "regime monofásico", talvez a mais importante dentre elas (artigo 155, § 2º, XII, 'h' da CF/88). No modelo até então vigente — a substituição tributária para frente (artigo 150, § 7º, da Carta) —, um contribuinte (substituto), situado no primeiro elo da cadeia econômico-produtiva, era responsável por recolher o imposto por si mesmo e pelos demais.

Ocorre que, como esse regime tomava por base presunções e estimativas de fatos (geradores) e de valores, era quase certo que, quando da venda do combustível ao consumidor final, fossem necessários "ajustes", conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal (Recurso Extraordinário nº 593.849/MG, de outubro/2016). Tratava-se das "temidas" complementações (aos Estados) e restituições (aos contribuintes), a depender, respectivamente, das diferenças "a menor" ou "a maior" entre presunção e realidade.

"Eu tinha duas certezas: de ter de pagar os questionáveis complementos ao Estado e de pedir as restituições e as receber sabia-se Deus quando. Para piorar, como estamos próximos da divisa com São Paulo, onde a carga tributária era muito inferior à do Rio, assumíamos o que podíamos desse custo. Mesmo assim, meu negócio estava morrendo", recorda-se Rei. "Só que devemos aceitar uma decepção, mas nunca perder a esperança infinita", pondera, destacando ainda que, com a monofasia da LC 192/22, o imposto passou a ser todo pago e devido apenas pelo produtor ou pelo importador (únicos contribuintes), não havendo mais o que ele, revendedor, devesse complementar ou tivesse do que ser restituído.

Aliás, as restituições… Martin (e milhares de contribuintes) bem se lembram delas… No regime de substituição tributária não havia na legislação claros prazos e formas para que os estados devolvessem o dinheiro que não lhes pertencia. Assim, todo tipo de obstáculo era criado. Por exemplo: às vezes, exigia-se até mesmo a apresentação de certidão de regularidade fiscal (artigos 205 e 206 do Código Tributário Nacional), como se houvesse alguma relação legal entre dívidas "certas" (dos estados) e "duvidosas" (dos contribuintes) — diz-se "certas", porque os valores a serem restituídos haviam sido sabidamente recolhidos a Estado diverso (local de efetivo consumo) daquele do qual se exigia a devolução, conforme facilmente atestável pelo Sistema Scanc (Convênio ICMS nº110/07), bem como "duvidosas", porque, na maioria das vezes, se tratava de valores ainda discutidos administrativa ou judicialmente.

"Nossas vidas começam a acabar no dia em que nos calamos sobre as coisas que importam. Por isso, cansei de me calar e busquei todos os meios lícitos para ajudar a mudar essa imoralidade", lembra-se dr. Rei Jr., revivendo os vários e-mails e telefonemas a gabinetes de mais de uma dúzia de parlamentares, além de um ou outro textinho sobre o assunto que escrevia e compartilhava, na época, em suas redes sociais e jornais virtuais.

Embora o que mais temesse fosse o silêncio dos bons, ser ouvido e buscar eco não foram de fato tarefas fáceis para Martin e outra dezena de Quixotes. A segunda alteração normativa no sistema tributário do mercado de combustíveis — o estabelecimento de alíquotas únicas, por produto, em todo o território nacional (artigo 155, § 4º, IV, ‘a’ da CF) —, igualmente foi de arranjo político complexo. Chegou-se a alegar "violação ao Pacto Federativo" — expressão volta e meia utilizada "solta", no quase abstrato vazio universal, meio que sem maiores preocupações jurídicas do que ela de fato possa significar (artigo 1º c/c 60, IV da CF). A justificativa "oficial" era de suposta afronta, pelo legislador complementar (União), da competência e da autonomia dos estados (lembre-se: mesmo que a previsão de uniformidade de alíquotas estivesse prevista na Constituição há mais de 20 anos…).

Entretanto, na realidade, as questões de fato eram muito mais concretas e pragmáticas. Em alguns estados a carga tributária dos combustíveis era tão elevada (como o próprio Rio) que seu peso no orçamento era decisivo. Além disso, a diferença de alíquotas entre entes gerava ingressos em seus caixas que deveriam ser apenas provisórios. Porém, por conta dos poucos ônus que sofriam pela não restituição "imediata e preferencial" (artigo 150, § 7º da CF/88), não raro postergavam-se próximos ao infinito.

Aliás, nesse "embalo das alíquotas", a terceira mudança — fixação de índices específicos (ad rem), aplicáveis sobre uma unidade de medida (art. 155, § 4º, IV, 'b' da CF) —, também foi muito combatida antes de ser efetivada. No cenário de alta internacional de preços vivenciada sobretudo entre 2021 e 2022, cobrar o ICMS com base em percentual incidente sobre a operação (ad valorem) tendia a ser mais "rentável" aos cofres estaduais do que "limitar" o quanto receberiam.

Portanto, encontrar um denominador comum não foi trivial. Mas…

"Se não puder voar, corra. Se não puder correr, ande. Se não puder andar, rasteje, mas continue em frente de qualquer jeito", repetia Rei, quase que como mantra motivacional para seguir adiante com o seu negócio, responsável por quase três dezenas de empregos diretos.

E assim se fez. Ainda que no limite do rastejar financeiro, normativo e judicial, seguiram em frente tanto o empreendimento de Martin, quanto as discussões pela simplificação e pela racionalização do sistema tributário.

Logo de cara, "forçados" pelo artigo 7º da LC nº 192/22, os estados correram para editar ato normativo prevendo a incidência monofásica do ICMS para o diesel. Assim, foi divulgado o Convênio ICMS nº 16/22, que (em tese) se adequava às normas gerais definidas pelo legislador complementar (e pelo constituinte derivado da EC nº 33). No entanto, os "fatores de equalização de carga", previstos pelas cláusulas 4ª e 5ª e respectivos anexos desse convênio, eram burla evidente ao comando nacional. Tratava-se de índices diversos para cada estado, a serem multiplicados por uma alíquota "única" (carga tributária do Acre, a mais alta à época). Essa simples operação aritmética definiria a real alíquota estadual, driblando a uniformidade. Era a "monofasia plurifásica".

"Quase sempre minorias criativas e dedicadas tornam o mundo melhor. Mas essa foi uma daquelas exceções que por pouco não me fez desistir", recorda-se Rei Jr., que "rastejou adiante" e hoje, nesse Natal de 2025, está prestes a inaugurar nova unidade de suas queridas "estações de serviços", o que renderá cerca de mais uma dúzia de empregos diretos, dessa vez do lado paulista da divisa.

Esse presente, assim como o futuro de Martin, de seus funcionários e da vida social e econômica que se retroalimenta do ecossistema de seus negócios começaram a ser reescritos nos tribunais, em especial no Supremo. Primeiro em julgamentos "puros". Depois, por meio de muito diálogo.

De início, a União ajuizou na corte a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7.164. Distribuída ao ministro André Mendonça, questionava justamente a constitucionalidade da "monofasia plurifásica" das cláusulas 4ª e 5ª e respectivos anexos do Convênio nº 16/22. Apesar dos argumentos dos estados de violação ao Pacto Federativo e às suas autonomias, os pedidos foram liminarmente deferidos. E isso, no fim da história, levou à revogação do próprio convênio.

Nesse contexto da "reforma tributária dos combustíveis", na sequência outras ações foram ajuizadas perante a Suprema Corte. Dentre elas, como "contra-ataque" à ADI 7.164, foi distribuída ao ministro Gilmar Mendes a ADI 7.191, por meio da qual alguns estados colocavam em dúvida a constitucionalidade de artigos da própria LC nº 192/22.

"Embora suas regras de simplificação e racionalização do Sistema estivessem na Constituição há mais de 20 anos", repetia e repetia dr. Rei Júnior, àquela altura no limite da fé.

Fé essa colocada à prova ao extremo quando uma segunda "linha de discussão" se iniciou com o ajuizamento de outras ações: a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 984 (Gilmar Mendes) e mais duas ADIs: 7.195 (Rosa Weber) e 7.212 (novamente, André Mendonça). Todas relacionadas, direta ou indiretamente, à questão diferente do debate específico de simplificação e racionalização da LC nº 192/22: colocavam em discussão tanto outra Lei Complementar (nº 194/22), quanto a Emenda Constitucional nº 123/22. Isso porque a primeira definira os combustíveis como "bens essenciais" — assim sendo, suas alíquotas não poderiam ser superiores às gerais de cada Estado — e a segunda alterara o artigo 225 da CF/88 para estabelecer "diferencial de competitividade para os biocombustíveis" (exatamente por conta da limitação da carga tributária dos combustíveis fósseis trazida pela essencialidade da LC nº 194/22).

"Mesmo achando que meu mundo poderia se partir em pedaços amanhã, plantei por vários hojes minhas macieiras de e-mails a parlamentares, textos em todo tipo de mídia, conversas de esperança e trabalho duro com meus funcionários", recorda-se Rei. "E aqui estamos todos agora."

Os frutos da macieira de Martin começaram a crescer quando o diálogo se fez, enfim, presente. A Comissão criada pelo decano ministro Gilmar colocou à mesa do STF todos os interessados: representantes dos Executivos federal, estadual e municipal, do Legislativo, além do próprio Judiciário e dos contribuintes. Ah, sim, porque estes também foram convidados. Afinal, não existe Estado, não existe sociedade, não existe democracia (ao menos a que tentamos construir) sem contribuintes. Lá estavam juristas, economistas, contadores, grandes e pequenos empresários. E, dentre esses, Martin, que teve a sua chance de falar a jornalistas naquele 28 de agosto, do pé da rampa do Supremo, sob os luminosos olhos da escultura da Justiça:

— Eu tenho um sonho de que meus quatro pequenos postos, assim como os restaurantes, as mercearias, as oficinas, as escolas e todos os negócios e as pessoas que neles constroem sua dignidade um dia viverão numa nação onde terão transparência de quanto, como e por que pagam seus tributos. Todas e todos verdadeiros cidadãos fiscais conscientes e orgulhosos em contribuir pelo bem comum.

Dali em diante, esse sonho passou a ser compartilhado por mais e mais pessoas. Todas de alguma maneira representadas e de alguma forma com voz naquela comissão.

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Subindo novamente os degraus, fica claro que os minutos sempre se passam. E aquele se foi, despertando Martin. Descansado, tinha mais um dia a ser vivido.

Já no escritório, percebi como naquela manhã meu amigo e hoje sócio Rei Júnior estava especialmente radiante. Poderia ser a abertura da nossa quinta unidade, a proximidade do Natal, a felicidade por mais um grená título brasileiro que conquistamos poucos dias antes, a expectativa por um 2026 ainda melhor…

Eterno repórter, não me contive e lhe perguntei:

— Martin, voltou a sonhar hoje?

Duas mãos na mesa, olhar baixo, movimento para se erguer, leve sorriso em minha direção:

— Sonhei que me via numa rampa, descobrindo algo pelo qual morreria e me sentindo mais apto que nunca a viver.

Levantou-se, abriu a porta, cumprimentou e convidou para entrar nossa mais nova colaboradora, que começaria conosco, naquele dia, seu caminho.

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