Opinião

Filtro de relevância do STJ: mais dados, menos palpites 

Autores

  • Daniel Becker

    é sócio do BBL Advogados diretor de novas tecnologias no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA) membro das Comissões de Assuntos Legislativos e 5G da OAB-RJ e organizador dos livros O Advogado do Amanhã: Estudos em Homenagem ao professor Richard Susskind O fim dos advogados? Estudos em homenagem ao professor Richard Susskind vol. 2Regulação 4.0 vol. I e II e Litigation 4.0.

  • Felipe Barreto Marçal

    é advogado no BBL Advogados.doutorando em Direito Processual pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) mestre em Direito Processual pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) professor de Processo Civil da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) e membro da ProcNet - Rede de Pesquisa.

  • Humberto Chiesi Filho

    é advogado mestre em direito pela Escola Paulista de Direito doutorando pela Faculdade de Direito da Mackenzie diretor jurídico de dispute resolution no Mercado Livre - América Latina.

20 de agosto de 2022, 13h25

No dia 15 de julho de 2022, entrou em vigor a EC nº 125, chamada "PEC da Relevância", que cria novos requisitos de admissibilidade para o recurso especial, semelhante à repercussão geral, existente no recurso extraordinário [1]. Conforme dados apresentados pela relatora da PEC na Câmara dos Deputados, "o STJ julgou 3.711 processos em 1989, primeiro ano de seu funcionamento. Dez anos depois, em 1999, essa cifra anual já chegava a 128.042, até atingir 560.405 processos apenas no ano de 2021". E ela acrescenta que "foram 856 recursos especiais em 1989, chegando a 100.665 em 2018. No ano passado, foram 72.311 recursos especiais julgados pelo Superior Tribunal de Justiça".

Tais números são relevantes, uma vez que demonstram um aumento de 19 vezes na quantidade de recursos em pouco mais de 30 anos, mas, o aumento na quantidade de novas ações judiciais distribuídas aumentou ainda mais. Em 1988, foram aproximadamente 350.000 [2].novas ações contra 25.800.000 novos processos em 2020, representando um aumento de 73 vezes, ou seja, proporcionalmente ao número de novos processos, a quantidade de recursos especiais diminuiu.

Ou seja, a solução encontrada busca atacar o efeito (recursos), sem atacar a causa (excesso de judicialização).

De acordo com a justificativa da PEC, a ideia é resolver "problemas de congestionamento" decorrentes do exercício da competência do STJ, permitindo o "bom funcionamento" tribunal, com "uma atuação mais célere e eficiente". Segundo os próprios ministros do STJ, a criação desse filtro é necessária para que a Corte passe a julgar com mais qualidade, reduzindo a quantidade de processos no tribunal. Nas palavras do presidente do STJ, ministro Humberto Martins, "a PEC corrige uma distorção do sistema, ao permitir que o STJ se concentre em sua missão constitucional de uniformizar a interpretação da legislação federal. O STJ, uma vez implementada a emenda constitucional, exercerá de maneira mais efetiva seu papel constitucional, deixando de atuar como terceira instância revisora de processos que não ultrapassam o interesse subjetivo das partes".

A ideia de que o STJ tem o papel constitucional de atuar como uma "corte de precedentes", e não como "mais uma instância" já vinha sendo fortemente defendida pela doutrina [3].

Conforme se extrai da emenda, tal como disposto no artigo 102, §3º, da Constituição da República [4], além das hipóteses expressamente previstas em tal dispositivo, há uma reserva de lei para a definição do que seria a chamada 'relevância da questão constitucional". Isso significa que caberá à lei, e não ao STJ, estabelecer o conceito do novo requisito de admissibilidade. Essa distinção é, em tese, relevante para que não se cunhe, já num primeiro momento, um filtro absolutamente subjetivo e arbitrário. De todo modo, na prática, a existência de definição da repercussão geral em lei não retirou o poder de o STF definir, de forma quase discricionária, o que irá ou não julgar.

No §3º, a EC contradiz sua própria lógica e cria uma presunção (ao que tudo indica, absoluta) de relevância. Em outras palavras, certamente haverá discussões puramente individuais e/ou de pouca complexidade que serão levadas ao STJ por força da referida presunção. Como apontou Carolina Uzeda, essa presunção gera, em certa medida, ampliação da quantidade de processos que chegam ao STJ, pois, antes da EC, era possível que o tribunal não admitisse um desses recursos por outro fundamento.

Além disso, a presunção também esvazia a lógica de que o STJ estaria mais próximo de sua função de uma "corte de precedentes". De outro lado, o artigo 2º da EC nº 125 traz uma regra de transição, coerente com a aplicação da lógica da sucessão de norma processual no tempo (tempus regit actum), segundo a qual o novo requisito de admissibilidade somente será aplicável aos recursos interpostos após a entrada em vigor da EC.

Mas o que muda na prática? Ainda é arriscado apresentar uma projeção sobre o futuro comportamento da norma no tempo. É preciso que se colete uma quantidade razoável de decisões de (in)admissibilidade sob à luz da nova EC, com estudos jurimétricos, para que se possa avaliar o real impacto dessa medida para sabermos o que mudou na prática, para além da teoria [5].

Todavia, já é possível anteciparmos o que não parece mudar. Em primeiro lugar, ainda cabe ao STJ não conhecer dos recursos com base na ausência de relevância. E pior: trata-se de requisito de admissibilidade que não pode ser reconhecido monocraticamente pelo relator, mas apenas por 2/3 dos ministros. Assim, a grande quantidade de recursos ainda precisará ser julgada pelo STJ, e, o que é mais grave, por órgão colegiado.

Parece, portanto, que existe uma grande chance de o STJ manter seus demais mecanismos de jurisprudência defensiva, como a aplicação dos enunciados nos 5 e 7 de sua Súmula, segundo os quais não é possível conhecer do recurso especial quando for necessário reexame de cláusulas contratuais, de fatos ou de provas. Trata-se de mecanismos menos burocráticos e de aplicação mais simples. Caso isso se concretize, pouca coisa mudará.

Talvez, mediante uma equiparação procedimental e de efeitos desse novo requisito com a repercussão geral do STF, seja possível conferir mais eficiência ao sistema. Isso porque o acórdão que nega repercussão geral possui efeito vinculante (arts. 1.030, I, "a", e 1.035, §8º, do CPC), permitindo que as Presidências dos TJs e dos TRFs, e os ministros do STF (monocraticamente) já possam inadmitir os recursos extraordinários posteriores sobre o mesmo tema. Até que essa posição se consolide também para o recurso especial, o filtro de relevância parece mais uma promessa incerta.

Importante destacar, ainda, que o disposto no artigo 105, §3º, V, da CRFB/88, tem causado certo desconforto na doutrina, pois revive a fênix da "jurisprudência dominante" do Superior Tribunal de Justiça, como exceção à aplicação do filtro de relevância. A expressão é, ao mesmo tempo, 1) um convite para que a recorribilidade desenfreada siga no mesmo ritmo, pois gera mais esperança na admissibilidade do recurso especial, e 2) um fator de subjetividade na admissibilidade, pois, diante da falta de um conceito (qualitativo e quantitativo) de jurisprudência dominante, passa a existir um verdadeiro salvo conduto para que os relatores possam contornar o filtro, com base, até mesmo, em poucos julgados esparsos. De qualquer maneira, nos parece importante que um acórdão de 2º grau que desafie a jurisprudência dominante do STJ possa ser recebido na instância superior.

Partindo-se da premissa mais otimista, de que o filtro realmente alcançará uma função de reduzir a recorribilidade para o STJ, não há como escapar da pergunta tabu: e o acesso à justiça, como fica?

Como se sabe, todo direito possui um custo para o Estado, que se reverte em tributos para a população [6]. Fazer o STJ julgar mais recursos especiais, no fim do dia, retira verba pública de outros serviços para que o tribunal tenha mais infraestrutura (de ferramentas e de pessoal). Portanto, reduzir a quantidade de recursos julgados, em certa medida, desafoga o Estado para focar em outras questões essenciais.

De outro lado, o acesso ao STJ, hoje, já é bastante difícil em razão justamente da quantidade de processos. Os ministros acabam por se valer de jurisprudência defensiva para filtrar recursos que não considerem relevantes e, ainda assim, sobra pouco tempo para julgar de forma satisfatória aqueles que são considerados admissíveis. Em outras palavras, o acesso à justiça, hoje, já não depende, a rigor, do julgamento pelo STJ.

Além disso, tal solução ignora a origem do problema que é o excesso de novas ações judiciais que poderiam ser resolvidas muitas vezes por meio de métodos consensuais ou mesmo com alterações legislativas, como no caso das execuções.

Isso significa que nosso país precisa fazer uma escolha subótima (possível com os recursos disponíveis): 1) entupir o STJ de casos para serem julgados de modo insatisfatório e com grande demora, para que os ministros escolham, discricionariamente, quais casos serão julgados, ou 2) tentar filtrar, já de antemão, os casos que serão levados ao STJ, a fim de buscar uma melhora qualitativa das decisões proferidas, ainda que isso implique um sacrifício na quantidade de pessoas que acessarão o tribunal?

Ambas as opções reclamam alguns sacrifícios. Desde 1988, temos visto um paradigma voltado ao amplo acesso ao STJ, que somente começou a ser freado pela jurisprudência defensiva, solução que se revela arbitrária.

A criação de mais filtros de acesso parece uma virada no barco para o sentido diametralmente oposto, de redução do acesso às cortes superiores. A própria repercussão geral, por exemplo, tem sido alvo de duras críticas por parte da doutrina [7]. Mais uma vez, ainda é cedo para que se diga qual caminho é melhor ou pior, tampouco para afirmar se a criação desses filtros (de relevância e de repercussão geral) são, de fato, os melhores mecanismos de se tentar solucionar o problema [8].

O novo filtro de relevância da questão federal discutida no STJ, introduzido pela EC nº 125/2022, ainda precisa ser mais bem compreendido e procedimentalizado pela legislação. A promessa de redução de processos que chegam ao STJ pode nem mesmo se concretizar, caso não haja uma correta implementação desse filtro e adaptações legislativas ao processamento do recurso especial. De todo modo, mesmo que se trate de um bom instrumento para reduzir a quantidade de processos no STJ, ainda não é possível prever seu reflexo sobre o aspecto qualitativo das decisões, tampouco sobre a real relevância dos temas que serão resolvidos.

Resta aos juristas, portanto, a criação de métricas para análise dos dados que serão produzidos a partir da implementação do filtro de relevância, a fim de que a próxima discussão sobre esse tema possa ser mais bem informada de dados e não de palpites [9].


[1] "Artigo 1º O artigo 105 da Constituição Federal passa a vigorar com as seguintes alterações: 'Artigo 105. (…) §2º No recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo Tribunal, o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo pela manifestação de 2/3 dos membros do órgão competente para o julgamento. §3º Haverá a relevância de que trata o §2º deste artigo nos seguintes casos: I – ações penais; II – ações de improbidade administrativa; III – ações cujo valor da causa ultrapasse 500 (quinhentos) salários-mínimos; IV – ações que possam gerar inelegibilidade; V – hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça; VI – outras hipóteses previstas em lei'. Artigo 2º A relevância de que trata o §2º do artigo 105 da Constituição Federal será exigida nos recursos especiais interpostos após a entrada em vigor desta Emenda Constitucional, ocasião em que a parte poderá atualizar o valor da causa para os fins de que trata o inciso III do § 3º do referido artigo".

[2] BAYMA, Fátima (Org.). Desafios da gestão pública da segurança. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 84.

[3] MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. 3. ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

[4] Artigo 102. §3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.

[5] Para algumas considerações sobre a importância da jurimetria: WOLKART, Erik Navarro; BECKER, Daniel. Tecnologia e precedentes: do portão de Kafka ao panóptico digital pelas mãos da jurimeria In ALVES, Isabella Fonseca (org.). Inteligência artificial e processo. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019, p. 7-17.

[6] HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes. W.W. Norton, 2000.

[7] OSNA, GUSTAVO. A "GARANTIA AO RECURSO" E A "REPERCUSSÃO GERAL": CONCILIAÇÃO OU NEGAÇÃO? REVISTA DE DIREITO ADMINISTRATIVO & CONSTITUCIONAL, V. 19, 2019, P. 229-246. DISPONÍVEL EM: HTTP://WWW.REVISTAAEC.COM/INDEX.PHP/REVISTAAEC/ARTICLE/VIEW/1129. ACESSO EM: 14.07.2022.

[8] MERECE DESTAQUE QUE A CORTE DE CASSAÇÃO ITALIANA, EQUIVALENTE AO STJ NO DESENHO ESTRUTURAL DO JUDICIÁRIO, POSSUI MAIS DE 300 MINISTROS. ALIÁS, ENQUANTO O ART. 101 DA CRFB/88 DIZ QUE O STF SERÁ COMPOSTO DE 11 MINISTROS, O ARTIGO 104 PREVÊ QUE O STJ SERÁ INTEGRADO POR "NO MÍNIMO, TRINTA E TRÊS MINISTROS". EXISTE, INCLUSIVE, UM BOATO DE QUE O PRÉDIO DO STJ TERIA SIDO ARQUITETADO COM GABINETES PARA NOVENTA E NOVE MINISTROS, O QUE PODE REPRESENTAR OUTRA SOLUÇÃO PARA O PROBLEMA DO CONGESTIONAMENTO. EVIDENTEMENTE QUE, COMO DITO, ISSO TAMBÉM REPRESENTARÁ UM CUSTO PARA O ESTADO, O QUE NOS TORNA À QUESTÃO DAS ESCOLHAS TRÁGICAS E SUBÓTIMAS.

[9] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Vicissitudes da audiência preliminar, in: Temas de direito processual : nona série. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 140, destaque para a nota de rodapé nº 22: "'The political tradition of making empirical arguments without empirical support has ancient roots': RUSSEL HARDIN, Liberalism, Constitucionalism, and Democracy, Oxford, 2003, p. 123."

Autores

  • é sócio fundador do BBL Advogados, diretor de Novas Tecnologias do CBMA e membro das Comissões de Assuntos Legislativos e 5G da OAB-RJ.

  • é advogado, doutorando em Direito Processual pela UFPR, mestre em Direito Processual pela Uerj, membro dos grupos de pesquisa Transformações nas Estruturas Fundamentais do Processo (Uerj) e Meios Adequados de Solução Heterônoma de Conflitos, Dentro e Fora do Estado (UFPR).

  • é advogado, mestre em direito pela Escola Paulista de Direito, doutorando pela Faculdade de Direito da Mackenzie, diretor jurídico de dispute resolution no Mercado Livre - América Latina.

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